sexta-feira, 22 de março de 2013

Red Bull


Tudo aquilo que você sempre suspeitou mas nunca teve certeza

Red Bull foi criado para estimular o cérebro de pessoas submetidas a um grande esforço físico e em “coma de stress”. Nunca para ser consumida como uma bebida inocente e refrescante.
A Red Bull conseguiu chegar a quase 130 países de todo o mundo com um faturamento anual acima de 21 bilhões de euros na venda de 3 bilhões de latas. Os jovens e o esporte foram os símbolos eleitos pela marca para caracterizar a sua imagem – dois segmentos atrativos que foram cativados pelo estímulo causado pela bebida.
Foi criada por Dietrich Mateschitz, um empresário de origem austríaca, que descobriu a bebida por acaso, durante uma viagem de negócios a Hong Kong , quando trabalhava para uma empresa fabricante de escovas de dentes. É interessante notar que o Dietrich não foi apenas um funcionário mongolóide de uma empresinha de escova de dentes, ele trabalhou em multinacionais gigantes como Procter & Gamble e a Unilever. Outra curiosidade sobre o criador é que ele figura entre a lista dos bilionários e é dono das Ilhas Laucala inteiras no Japão (ele comprou dos Forbes por 7 milhões de libras esterlinas)
Uma lata de 250 ml de Red Bull, contém 20 gramas de açúcar, 1000 mg de taurina, 600 mg de glucuronolactona, 80 mg de cafeína e vitaminas do complexo B.
Mas a verdade desta bebida é outra
A França e a Dinamarca acabam de proibir a venda da bebida por ser um cocktail da morte, devido aos seus componentes de vitaminas misturadas com “glucoronolactone“, substância química altamente perigosa – desenvolvida pelo Departamento de Defesa dos EUA durante os anos 60 para estimular o moral das tropas americanas no Vietnã.
A proibição na França deve-se à grande quantidade de cafeína, à presença da glucuronolactone e da taurina cujos efeitos a longo prazo no organismo humano são desconhecidos. Esse é o ponto de vista da AFSSA – Agence Française de Sécurité Sanitaire des Aliments.
Os efeitos do glucoronolactone eram como se fossem o de uma droga alucinógenea. No caso, era usado para acalmar o stress da guerra. Entretanto seus efeitos no organismo dos soldados foram devastadores: alto índice de enxaquecas, tumores cerebrais e doenças do fígado.
Isso é o que eles fazem com o seu dinheiro: patrocinam eventos de corridas de aviões, têm 2 escuderias de Formula 1 e por aí vaí.
Apesar de tudo, na lata de Red Bull ainda se lê entre os seus componentes: glucoronolactone – catalogado medicamente como um estimulante. Mas o que a lata de RED BULL não diz são as consequências do seu consumo – que estão explicitadas a seguir:
 É perigoso tomá-lo se, em seguida, não se fizer exercíco físico, já que a sua função energizante acelera o ritmo cardíaco e pode provocar um infarto fulminante.
 O risco de se sofrer uma hemorragia cerebral, porque o RED BULL contém componentes que diluem o sangue para que seja mais fácil ao coração bombear o sangue e assim se poder fazer esforço físico com menos esgotamento.
 É proibido misturar Red Bull com álcool, porque a mistura transforma a bebida numa “Bomba Mortal” que ataca diretamente o fígado, levando a zona afetada à incapacidade de jamais se regenerar
Um dos componentes principais do RED BULL é a vitamina B12, utilizada em medicina para recuperar pacientes que se encontram em coma etílico; daí o estado de excitação em que se fica após tomá-lo. É como se estívessemos estado de embriaguez.
 O consumo regular de Red Bull provoca uma série de doenças nervosas e neuronais irreversíveis.
Dando uma “googlada” com as palavras-chave: red bull, health, issues, problems, countries, denmark, wiki – são retornados resultados com a proibição do Red Bull em diversos países do mundo (Suíça, Finlândia, Dinamarca, Noruega, França, Uruguai e Islândia). Não é só um país chato que já proibiu a bebida, mas uma série de lugares, entre eles potências econômicas.

Por outro lado, a conclusão pra quem procurou um pouco na Internet é que, na prática, não se sabe muita coisa sobre os efeitos da bebida. No site deles não tem nada documentado, nada esclarecido. Não há efeitos colaterais, não há documentação confiável sobre os supostos efeitos colaterais. Se for seguir o que as fontes dizem, Red Bull é mais um refresco do que um energético.
O que existem são pesquisas de estudantes universitários que analisaram alguns casos isoladamente e publicaram algo a respeito. Apenas com isso, entretanto, é impossível saber se foi a bebida quem causou problema ou algum outro fator relacionado ao ambiente.

O que eu sei é que tomar Red Bull com bebida alcóolica, como vodka e whisky, é uma prática bastante comum e eu, particularmente, nunca vi alguém morrer por conta do consumo de Red Bull – embora já tenha visto alguns problemas psíquicos que podem sim ser relacionados à bebida.

segunda-feira, 18 de março de 2013

João do Rio











As Religiões no Rio 
João do Rio

As Religiões no Rio - João do Rio - Editora Nova Aguilar - Coleção Biblioteca Manancial n.º 47 -
1976


ÍNDICE

No Mundo dos Feitiços
A Igreja Positivista
Os Maronistas
Os Fisiólatras
O Movimento Evangélico
O Satanismo
As Sacerdotisas do Futuro
A Nova Jerusalém
O Culto do Mar
O Espiritismo entre os Sinceros
Os Exploradores
As Sinagogas


AS RELIGIÕES NO RIO
Cecy est un livre de bonne foy.
MONTAIGNE
A
MANUEL JORGE DE OLIVEIRA ROCHA

meu amigo.

A religião? Um misterioso sentimento, misto de terror e de esperança, a simbolização
lúgubre ou alegre de um poder que não temos e almejamos ter, o desconhecido avassalador, o
equívoco, o medo, a perversidade.
O Rio, como todas as cidades nestes tempos de irreverência, tem em cada rua um templo e
em cada homem uma crença diversa.
Ao ler os grandes diários, imagina a gente que está num pais essencialmente católico, onde
alguns matemáticos são positivistas. Entretanto, a cidade pulula de religiões. Basta parar em
qualquer esquina, interrogar. A diversidade dos cultos espantar-vos-á. São swendeborgeanos,
pagãos literários, fisiólatras, defensores de dogmas exóticos, autores de reformas da Vida,
reveladores do Futuro, amantes do Diabo, bebedores de sangue, descendentes da rainha de
Sabá, judeus, cismáticos, espíritas, babalaôs de Lagos, mulheres que respeitam o oceano,
todos os cultos, todas as crenças, todas as forças do Susto. Quem através da calma do
semblante lhes adivinhará as tragédias da alma? Quem no seu andar tranqüilo de homens sem
paixões irá descobrir os reveladores de ritos novos, os mágicos, os nevrópatas, os delirantes, os
possuídos de Satanás, os mistagogos da Morte, do Mar e do Arco-Íris? Quem poderá perceber,
ao conversar com estas criaturas, a luta fratricida por causa da interpretação da Bíblia, a luta
que faz mil religiões à espera de Jesus, cuja reaparição está marcada para qualquer destes
dias, e à espera do Anti-Cristo, que talvez ande por aí? Quem imaginará cavalheiros distintos
em intimidade com as almas desencarnadas, quem desvendará a conversa com os anjos nas
chombergas fétidas?
Eles vão por aí, papas, profetas, crentes e reveladores, orgulhosos cada um do seu culto, o
único que é a Verdade. Falai-lhes boamente, sem a tenção de agredi-los, e eles se confessarão
- por que só uma coisa é impossível ao homem: enganar o seu semelhante, na fé.
Foi o que fiz na reportagem a que a Gazeta de Notícias emprestou uma tão larga  hospitalidade e um tão grande ruído; foi este o meu esforço: levantar um pouco o mistério das crenças nesta cidade
Não é um trabalho completo. Longe disso. Cada uma dessas religiões daria farta messe
para um volume de revelações. Eu apenas entrevi a bondade, o mal e o bizarro dos cultos, mas
tão convencido e com tal desejo de ser exato que bem pode servir de epígrafe a este livro a
frase de Montaigne:

Cecy est un livre de bonne foy.
João do Rio


NO MUNDO DOS FEITIÇOS
OS FEITICEIROS

Antônio é como aqueles adolescentes africanos de que fala o escritor inglês. Os
adolescentes sabiam dos deuses católicos e dos seus próprios deuses, mas só veneravam o
uísque e o schilling. Antônio conhece muito bem N. S.ª das Dores, está familiarizado com os
orixálas da África, mas só respeita o papel-moeda e o vinho do Porto. Graças a esses dois
poderosos agentes, gozei da intimidade de Antônio, negro inteligente e vivaz; graças a Antônio,
conheci as casas das ruas de São Diogo, Barão de S. Felix, Hospício, Núncio e da América,
onde se realizam os candomblés e vivem os pais-de-santo. E rendi graças a Deus, porque não
há decerto, em toda a cidade, meio tão interessante.
Vai V.S. admirar muita coisa! - dizia Antônio a sorrir; e dizia a verdade.
Da grande quantidade de escravos africanos vindos para o Rio no tempo do Brasil colônia e
do Brasil monarquia, restam uns mil negros. São todos das pequenas nações do interior da
África, pertencem ao igesá, oié, ebá, aboum, haussá, itaqua, ou se consideram filhos dos
ibouam, ixáu dos gêge e dos cambindas. Alguns ricos mandam a descendência brasileira à
África para estudar a religião, outros deixam como dote aos filhos cruzados daqui os mistérios e
as feitiçarias. Todos, porém, falam entre si um idioma comum: - o eubá.
Antônio, que estudou em Lagos, dizia:
- O eubá para os africanos é como o inglês para os povos civilizados. Quem fala o eubá
pode atravessar a África e viver entre os pretos do Rio. Só os cambindas ignoram o eubá, mas
esses ignoram até a própria língua, que é muito difícil. Quando os cambindas falam, misturam
todas as línguas... Agora os orixás e os alufás só falam o eubá.
- Orixás, alufás? - fiz eu, admirado.
- São duas religiões inteiramente diversas. Vai ver.
Com efeito. Os negros africanos dividem-se em duas grandes crenças: os orixás e os
alufás.
Os orixás, em maior número, são os mais complicados e os mais animistas. Litólatras e
fitólatras, têm um enorme arsenal de santos, confundem os santos católicos com os seus
santos, e vivem a vida dupla, encontrando em cada pedra, em cada casco de tartaruga, em cada
erva, uma alma e um espírito. Essa espécie de politeísmo bárbaro tem divindades que se
manifestam e divindades invisíveis. Os negros guardam a idéia de um Deus absoluto como o
Deus católico: Orixa-alúm. A lista dos santos é infindável. Há o orixalá, que é o mais velho,
Axum, a mãe dágua doce, Ie-man- já, a sereia, Exu, o diabo, que anda sempre detrás da porta,
Sapanam, o Santíssimo Sacramento dos católicos, o Irocô, cuja aparição se faz na árvore
sagrada da gameleira, o Gunocô, tremendo e grande, o Ogum, S. Jorge ou o Deus da guerra, a
Dadá, a Orainha, que são invisíveis, e muitos outros, como o santo do trovão e o santo das
ervas. A juntar a essa coleção complicada, têm os negros ainda os espíritos maus e os heledás
ou anjos da guarda.
É natural que para corresponder à hierarquia celeste seja necessária uma hierarquia
eclesiástica. As criaturas vivem em poder do invisível e só quem tem estudos e preparo pode
saber o que os santos querem. Há por isso grande quantidade de autoridades religiosas. Às
vezes encontramos nas ruas negros retintos que mastigam sem cessar. São babalaôs,
matemáticos geniais, sabedores dos segredos santos e do futuro da gente; são babás que
atiram o endilogum; são babaloxás, pais-de-santos veneráveis. Nos lanhos da cara puseram o
pó da salvação e na boca têm sempre o obi, noz de cola, boa para o estômago e asseguradora
das pragas
Antônio, que conversava dos progressos da magia na África, disse-me um dia que era
como Renan e Shakespeare: vivia na dúvida. Isso não o impedia de acreditar nas pragas e no
trabalhão que os santos africanos dão.
- V. s. não imagina! Santo tem a festa anual, aparece de repente à pessoa em que se quer
meter e esta é obrigada logo a fazer festa; santo comparece ao juramento das Iauô e passa
fora, do Carnaval à Semana Santa; e logo quer mais festa... Só descansa mesmo de fevereiro a
abril.
- Estão veraneando.
- No carnaval os negros fazem ebó.
- Que vem a ser ebó?
- Ebó é despacho. Os santos vão todos para o campo e ficam lá descansando.
- Talvez estejam em Petrópolis.
- Não. Santo deixa a cidade pelo mato, está mesmo entre as ervas.
- Mas quais são os cargos religiosos?
- Há os babalaôs, os açoba, os aboré, grau máximo, as mães-pequenas, os ogan, as
agibonam...
A lista é como a dos santos, muito comprida, e cada um desses personagens representa
papel distinto nos sacrifícios, nos candomblés e nas feitiçarias. Antônio mostra-me os mais
notáveis, os pais-de-santo: Oluou, Eruosaim, Alamijo, Adé-Oié, os babalaôs Emídio, Oloô-teté,
que significa treme-treme, e um bando de feiticeiros: Torquato requipá ou fogo pára-chuva,
Obitaiô, Vagô, Apotijá, Veridiana, Crioula Capitão, Rosenda, Nosuanan, a célebre Chica de
Vavá, que um político economista protege...
- A Chica tem proteção política?
- Ora se tem! Mas que pensa o senhor? Há homens importantes que devem quantias
avultadas aos alufás e babalaôs que são grau 32 da Maçonaria.
Dessa gente, poucos lêem. Outrora ainda havia sábios que destrinçavam o livro sagrado e
sabiam porque Exu é mau - tudo direitinho e claro como água. Hoje a aprendizagem é feita de
ouvido. O africano egoísta pai-de-santo, ensina ao aboré, as iauô quando lhes entrega a
navalha, de modo que não só a arte perde muitas das suas fases curiosas como as histórias são
adulteradas e esquecidas.
- Também agora não é preciso saber o Saó Hauin. Negro só olhando e sabendo o nome da
pessoa pode fazer mal, diz Antônio.
Os orixás são em geral polígamos. Nessas casas das ruas centrais de uma grande cidade,
há homens que vivem rodeados de mulheres, e cada noite, como nos sertões da África, o leito
do babaloxás é ocupado por uma das esposas. Não há ciúmes, a mais velha anuncia quem a
deve substituir, e todas trabalham para a tranqüilidade do pai. Oloô-Teté, um velho que tem
noventa anos no mínimo, ainda conserva a companheira nas delícias do himeneu, e os mais
sacudidos transformam as filhas-de-santo em huris de serralhos.
Os alulás têm um rito diverso. São maometanos com um fundo de misticismo. Quase todos
dão para estudar a religião, e os próprios malandros que lhes usurpam o título sabem mais que
os orixás.
Logo depois do suma ou batismo e da circuncisão ou kola, os alufás habilitam-se à leitura
do Alcorão. A sua obrigação é o kissium, a prece. Rezam ao tomar banho, lavando a ponta dos
dedos, os pés e o nariz, rezam de manhã, rezam ao pôr-do-sol. Eu os vi, retintos, com a cara
reluzente entre as barbas brancas, fazendo o aluma gariba, quando o crescente lunar aparecia
no céu. Para essas preces, vestem o abadá, uma túnica branca de mangas perdidas, enterram
na cabeça um filá vermelho, donde pende uma faixa branca, e, à noite, o kissium continua,
sentados eles em pele de carneiro ou de tigre.
- Só os alufás ricos sentam-se em peles de tigre, diz-nos Antônio.
Essas criaturas contam à noite o rosário ou tessubá, têm o preceito de não comer carne de
porco, escrevem as orações numas taboas, as atô, com tinta feita de arroz queimado, e jejuam
como os judeus quarenta dias a fio, só tomando refeições de madrugada e ao pôr-do-sol.
Gente de cerimonial, depois do assumy, não há festa mais importante como a do ramadan,
em que trocam o saká ou presentes mútuos. Tanto a sua administração religiosa como a
judiciária estão por inteiro independentes da terra em que vivem.

Há em várias tribos vigários gerais ou ladamos, obedecendo ao lemano, o bispo, e a parte
judiciária está a cargo dos alikaly, Juizes, sagabamo, imediatos de juizes, e assivajiú, mestre de
cerimônias.
Para ser alufá é preciso grande estudo, e esses pretos que se fingem sérios, que se casam
com gravidade, não deixam também de fazer amuré com três e quatro mulheres.
- Quando o jovem alufá termina o seu exame, os outros dançam o opasuma e conduzem o
iniciado a cavalo pelas ruas, para significar o triunfo.
- Mas essas passeatas são impossíveis aqui, brado eu.
- Não são. As cerimônias realizam-se sempre nas estações dos subúrbios, em lugares
afastados, e os alufás, vestem as suas roupas brancas e o seu gorro vermelho.
Naturalmente Antônio fez-me conhecer os alufás:
Alikali; o lemano atual, um preto de pernas tortas, morador à rua Barão de S. Félix, que
incute respeito e terror; o Chico Mina, cuja filha estuda violino, Alufapão, Ojó, Abacajebú, Ginjá,
Manê, brasileiro de nascimento, e outros muitos.
Os alufás não gostam da gente de santo a que chamam auauadó-chum; a gente de santo
despreza os bichos que não comem porco, tratando-os de malés. Mas acham-se todos
relacionados pela língua, com costumes exteriores mais ou menos idênticos e vivendo da
feitiçaria. Os orixás fazem sacrifícios, afogam os santos em sangue, dão-lhes comidas, enfeites
e azeite-de-dendê.
Os alufás, superiores, apesar da proibição da crença, usam dos aligenum, espíritos
diabólicos chamados para o bem e o mal, num livro de sortes marcado com tinta vermelha e
alguns, os maiores, como Alikali, fazem até idams ou as grandes mágicas, em que a uma
palavra cabalística a chuva deixa de cair e obis aparecem em pratos vazios.
Antes de estudar os feitiços, as práticas por que passam as iauô nas camarinhas e a
maneira dos cultos, quis ter uma impressão vaga das casas e dos homens.
Antônio levou-me primeiro à residência de um feiticeiro alufá. Pelas mesas, livros com
escrituras complicadas, ervas, coelhos, esteiras, um calamo de bambu finíssimo.
Da porta o guia gritou:
- Salamaleco.
Ninguém respondeu.
- Salamaleco!
- Maneco Lassalama!
No canto da sala, sentado numa pele de carneiro, um preto desfiava o rosário, com os olhos
fixos no alto.
- Não é possível falar agora. Ele está rezando e não quer conversar. Saímos, e logo na rua
encontramos o Xico Mina. Este veste, como qualquer de nós, ternos claros e usa suíças
cortadas rentes. Já o conhecia de o ver nos cafés concorridos, conversando com alguns
deputados. Quando nos viu, passou rápido.
- Está com medo de perguntas. Chico gosta de fingir.
Entretanto, no trajeto que fizemos do Largo da Carioca à praça da Aclamação,
encontramos, a fora um esverdeado discípulo de Alikali, Omancheo, como eles dizem, duas
mães-de-santo, um velho babalaô e dois babaloxás.
Nós íamos à casa do velho matemático Oloô-Teté.
As casas dos minas conservam a sua aparência de outrora, mas estão cheias de negros
baianos e de mulatos. São quase sempre rótulas lobregas, onde vivem com o personagem
principal cinco, seis e mais pessoas. Nas salas, móveis quebrados e sujos, esteirinhas, bancos;
por cima das mesas, terrinas, pucarinhos de água, chapéus de palha, ervas, pastas de oleado
onde se guarda o opelé; nas paredes, atabaques, vestuários esquisitos, vidros; e no quintal,
quase sempre jabotis, galinhas pretas, galos e cabritos.
Há na atmosfera um cheiro carregado de azeite-de-dendê, pimenta-da-costa e catinga. Os
pretos falam da falta de trabalho, fumando grossos cigarros de palha. Não fosse a credulidade,
a vida ser-lhes-ia difícil, porque em cada um dos seus gestos revela-se uma lombeira secular.
Alguns velhos passam a vida sentados, a dormitar.
- Está pensando! - dizem os outros.

De repente, os pobres velhos ingênuos acordam, com um sonho mais forte nessa confusa
existência de pedras animadas e ervas com espírito.
- Xangô diz que eu tenho de fazer sacrifício!
Xangô, o deus do trovão, ordenou no sono, e o opelê, feito de cascas de tartaruga e
batizado com sangue, cai na mesa enodoada para dizer com que sacrifício se contenta Xangô.
Outros, os mais malandros, passam a existência deitados no sofá. As filhas-de-santo,
prostitutas algumas, concorrem para lhes descansar a existência, a gente que as vai procurar
dá-lhes o supérfluo. A preocupação destes é saber mais coisas, os feitiços desconhecidos, e
quando entra o que sabe todos os mistérios, ajoelham assustados e beijam-lhe a mão,
soluçando:
- Diz como se faz a cantiga e eu te dou todo o meu dinheiro!
À tarde, chegam as mulheres, e os que por acaso trabalham em alguma pedreira. Os
feiticeiros conversam de casos, criticam-se uns aos outros, falam com intimidade das figuras
mais salientes, do país, do imperador, de que quase todos têm o retrato, de Cotegipe, do barão
de Mamanguape, dos presidentes da República.
As mulheres ouvem mastigando obi e cantando melopéas sinistramente doces. Essas
melopéas são quase sempre as preces, as evocações, e repetem sem modalidade, por tempo
indeterminado, a mesma frase.
Só pelos candomblés ou sessões de grande feitiçaria, em que os babalaôs estão atentos e
os pais-de-santo trabalham dia e noite nas camarinhas ou fazendo evocações diante dos
fogareiros com o tessubá na mão, é que a vida dessa gente deixa a sua calma amolecida de
acassá com azeite-de-dendê.
Quando entramos na casa de Oloô-Teté, o matemático macróbio e sensual, uma velha
mina, que cantava sonambulicamente, parou de repente.
- Pode continuar.
Ela disse qualquer coisa de incompreensível.
- Está perguntando se o senhor lhe dá dois tostões, ensina-nos Antônio.
- Não há dúvida.
A preta escancara a boca, e, batendo as mãos, põe-se a cantar:
Baba ounlô, ó xocotám, o ilélê.
- Que vem a ser isso?
- É o final das festas, quando o santo vai embora. Quer dizer: papai já foi, já fez, já acabou;
vai embora!
Eu olhava a réstia estreita do quintal onde dormiam jabotis.
- O jaboti é um animal sagrado?
- Não, diz-nos o sábio Antônio. Cada santo gosta do seu animal. Xangô, por exemplo, come
jaboti, galo e carneiro. Abaluaié, pai de varíola, só gosta de cabrito. Os pais-de-santo são
obrigados pela sua qualidade a fazer criação de bichos para vender e tê-los sempre à
disposição quando precisam de sacrifício. O jaboti é apenas um bicho que dá felicidade. O
sacrifício é simples. Lava-se bem, às vezes até com champanha, a pedra que tem o santo e
põe-se dentro da terrina. O sangue do animal escorre; algumas das partes são levadas para
onde o santo diz e o resto a roda come.
- Mas há sacrifícios maiores para fazer mal às pessoas?
- Há! para esses até se matam bois.
- Feitiço pega sempre, sentencia o ilustre Oloô-Tetê, com a sua prática venerável. Não há
corpo-fechado. Só o que tem é que uns custam mais. Feitiço para pegar em preto é um instante,
para mulato já custa, e então para cair em cima de branco a gente sua até não poder mais. Mas
pega sempre. Por isso preto usa sempre o assiqui, a cobertura, o breve, e não deixa de mastigar
obi, noz de cola preservativa.
Para mim, homem amável, presentes alguns companheiros seus, Oloô-Tetê tirou o opelé
que há muitos anos foi batizado e prognosticou o meu futuro.
Este futuro vai ser interessante. Segundo as cascas de tartaruga que se voltavam sempre
aos pares, serei felicíssimo, ascendendo com a rapidez dos automóveis a escada de Jacó das
posições felizes. É verdade que um inimigozinho malandro pretende perder-me. Eu, porém, o
esmagarei, viajando sempre com cargos elevados e sendo admirado.

Abracei respeitoso o matemático que resolvera o quadrado da hipotenusa do desconhecido.
- Põe dinheiro aqui - fez ele.
Dei-lhe as notas. Com as mãos trêmulas, o sábio a apalpou longamente.
- Pega agora nesta pedra e nesta concha. Pede o que tiveres vontade à concha, dizendo
sim, e à pedra dizendo não.
Assim fiz. O opelé caiu de novo no encerado. A concha estava na mão direita de Antônio, a
pedra na esquerda, e Oloô tremia falando ao santo, com os negros dedos trêmulos no ar.
- Abra a mão direita! ordenou.
Era a concha.
- Se acontecer, ossumcê dá presente a Oloô?
- Mas decerto.
Ele correu a consultar o opelé. Depois sorriu.
- Dá, sim, santo diz que dá. - E receitou-me os preservativos com que eu serei invulnerável.
Também eu sorria. Pobre velho malandro e ingênuo! Eu perguntara apenas,
modestamente, à concha do futuro se seria imperador da China... Enquanto isso, a negra da
cantiga entoava outra mais alegre, com grande gestos e risos.
O loô-ré, xa-la-ré
Camurá-ridé
O loô-ré, xa-la-ré
Camurá-ridé
- E esta, o que quer dizer?
- É uma cantiga de Orixalá. Significa: O homem do dinheiro está aí. Vamos erguê-lo...
Apertei-lhe a mão jubiloso e reconhecido. Na alusão da ode selvagem a lisonja vivia o
encanto da sua vida eterna...

AS IAUÔ

A recordação de um fato triste - a morte de uma rapariga que fora à Bahia fazer-santo -
deu-me ânimo e curiosidade para estudar um dos mais bárbaros e inexplicáveis costumes dos
fetiches do Rio.
Fazer-santo é a renda direta dos babaloxás, mas ser filha-de-santo é sacrificar a liberdade,
escravizar-se, sofrer, delirar.
Os transeuntes honestos, que passeiam na rua com indiferença, não imaginam sequer as
cenas de Salpetrière africana passadas por trás das rótulas sujas.
As iauô abundam nesta Babel da crença, cruzam-se com a gente diariamente, sorriem aos
soldados ébrios nos prostíbulos baratos, mercadejam doces nas praças, às portas dos
estabelecimentos comerciais, fornecem ao Hospício a sua quota de loucura, propagam a
histeria entre as senhoras honestas e as cocottes, exploram e são exploradas, vivem da
crendice e alimentam o caftismo inconsciente. As iauô, são as demoníacas e as grandes
farsistas da raça preta, as obsedadas e as delirantes. A história de cada uma delas, quando não
é uma sinistra pantomima de álcool e mancebia, é um tecido de fatos cruéis, anormais, inéditos,
feitos de invisível, de sangue e de morte. Nas iauô está a base do culto africano. Todas elas
usam sinais exteriores do santo, as vestimentas simbólicas, os rosários e os colares de contas
com as cores preferidas da divindade a que pertencem; todas elas estão ligadas ao rito
selvagem por mistérios que as obrigam a gastar a vida em festejos, a sentir o santo e a respeitar
o pai-de-santo.
Fazer-santo é colocar-se sobre o patrocínio de um fetiche qualquer, é ser batizado por ele,
e por espontânea vontade dele. As negras, insensíveis a quase todas as delicadezas que
produzem ataques na haute-gomme, são, entretanto, de uma impressionabilidade mórbida por
tudo quanto é abusão. Da convivência com os maiores nesse horizonte de chumbo, de
atmosfera de feitiçarias e pavores, nasce-lhes a necessidade iniludível de fazer também o santo;
e não é possível demovê-las, umas porque a miragem da felicidade as cega, outras porque já  estão votadas à loucura e ao alcoolismo. Entre as tribos do interior da África, há o sacrifício do
agamum, em que se esmagam vivas as crianças de seis meses. Ao Moloch das vesânias a raça
preta sacrifica aqui uma quantidade assustadora de homens e de mulheres.
Antônio, que me mostrara a maior parte das casas-de-santo, disse-me um dia:
- Vou levá-lo hoje a ver o 16.º dia de uma iauô.
Para que uma mulher saiba a vinda do santo, basta encontrar na rua um fetiche qualquer,
pedra, pedaço de ferro ou concha do mar. De tal maneira estão sugestionadas, que vão logo
aos babalaôs indagar do futuro. Os babalaôs, a troco de dinheiro, jogam o edilogum, os búzios,
e servem-se também por aproximação dos signos do zodíaco.
- O mês do Capricórnio - diz Antônio - compreende todos os animais parecidos, a cabra, o
carneiro, o cabrito, e segundo o cálculo do dia e o animal preferido pelo santo, os matemáticos
descobrem quem é.
Quando já sabe o santo, babalaô atira a sorte no obelê para perguntar se é de dever fazê-
lo. A natureza mesmo do culto, a necessidade de conservar as cerimônias e a avidez de ganho
da própria indolência fazem o sábio obter uma resposta afirmativa.
Algumas criaturas paupérrimas batem então nas faces e pedem:
- Eu quero ter o santo assentado!
É mais fácil. Os pais-de-santo dão-lhe ervas, uma pedra bem lavada, em que está o santo,
um rosário de contas que se usa no pescoço depois de purificado o corpo por um banho.
Nessas ocasiões o vadio invisível contenta-se com o ebó, despacho, algumas comedorias com
azeite-de-dendê, ervas e sangue, deixadas na encruzilhada dos caminhos.
Quase sempre, porém, as vitimas sujeitam-se, e não é raro, mesmo quando são pobres os
pais, a aceitarem o trabalho com a condição de as vender em leilão ou serem servidos por elas
durante longo tempo. Como as despesas são grandes, as futuras iauô levam meses fazendo
economias, poupando, sacrificando-se. E de obrigação levar comidas, presentes, dinheiro ao
pai-de-santo para a sua estada no ylê ache-ó-ylê-orixá, estada que regula de 12 a 30 dias.
- Isto acontece só para as iauô dos orixás, - diz Antônio.
- Há outras?
- Há as dos negros cambindas. Também essa gente é ordinária, copia os processos dos
outros e está de tal forma ignorante que até as cantigas das suas festas têm pedaços em
português.
- Mas entre os cambindas tudo é diferente?
- Mais ou menos. Olhe por exemplo os santos.
Orixalá é Ganga-Zumba, Obaluaci, Cangira-Mungongo, Exu, Cubango, Orixá-oco,
Pombagira, Oxum, a mãe d'água, Sinhá Renga, Sapanam, Cargamela. E não é só aos santos
dos orixás que os cambindas mudam o nome, é também aos santos das igrejas. Assim S.
Benedito é chamado Lingongo, S. Antônio, Verequete, N. Senhora das Dores, Sinhá Samba.
Para os cambindas serve para santo qualquer pedra, os paralelepípedos, as lascas das
pedreiras e esses pretos sem-vergonha adoram a flor do girassol que simboliza a lua...
Eu estava atônito. Positivamente Antônio achava muito inferiores os cambindas.
- As iauô?
- As filhas-de-santo macumbas ou cambindas chegam a ter uma porção de santos de cada
vez, manifestando-se na sua cabeça. Sabe V.S. o que cantam eles quando a yauô está com a
crise?

Maria Mucangué
Lava roupa de sinhá,
Lava camisa de chita,
Não é dela, é de yayá.
- Quer ouvir outra?


Bumba, bumba, ó calunga,
Tanto quebra cadeira como quebra sofá
Bumba, bumba, ó calunga.

Houve uma pausa e Antônio concluiu:
- Por negro cambinda é que se compreende que africano foi escravo de branco.
Cambinda é burro e sem-vergonha!
Disse e voltou à narrativa da iniciação das iauô.
Antes de entrar para camarinha, a mulher, predisposta pela fixidez da atenção a todas as
sugestões, presta juramento de guardar o segredo do que viu, toma um banho purificador e à
meia-noite começa a cerimônia. A iauô senta-se numa cadeira vestida de branco com o ojá
apertando a cintura. Todos em derredor entoam a primeira cantiga a Exu.

Echu tiriri, lô-nam bará ô bebê.
Tiriri lo-nam Echu tiriri.

O babaloxá pergunta ao santo para, onde deve ir o cabelo que vai cortar à futura filha, e,
depois de ardente meditação, indica com aparato a ordem divina. Essas descobertas são
fatalmente as mesmas no centro de uma cidade populosa como a nossa. Se o santo é a mãe
d'agua doce, Oxum, o cabelo vai para a Tijuca, a Fábrica das Chitas; se é Ié-man-ja fica na praia
do Russel, em Santa Luzia; se é outro santo qualquer, basta um trecho de praça em que as ruas
se cruzem.
As rezas começam então; o pai-de-santo molha a cabeça da iauô com uma composição de
ervas e com afiadíssima navalha faz-lhe uma coroa, enquanto a roda canta triste.
Orixalá otô ô yauô!
Essa parte do cabelo é guardada eternamente e a iauô não deve saber nunca onde a
guardam, porque lhe acontece desgraça. Em seguida, o lúgubre barbeiro raspa-lhe
circularmente o crânio, e quando a carapinha cai no alguidar, a operada já perdeu a razão.
Babaloxá, lava-lhe ainda a cabeça com o sangue dos animais esfaqueados pelos ogans, e
as iauô antigas levam-na a mudar a roupa, enquanto se preparam com ervas os cabelos do
alguidar.
Daí a momentos a iniciada aparece com outros fatos, pega no alguidar e sai acompanhada
das outras, que a amparam e cantam baixo o ofertório ao santo. Em chegando ao lugar
indicado, a hipnotizada deixa a vaso, volta e é recebida pelo pai, que entorna em frente à porta
um copo d'água.
A nova iauô vai então descansar, enquanto os outros rezam na camarinha em frente ao
estado-maior.
- O estado-maior? - indago eu, assustado com o exército misterioso. O estado-maior é a
coleção de terrinas e sopeiras colocadas numa espécie de prateleiras de bazar. Nas sopeiras
estão todos os santos pequenos e grandes. Há desde as terrinas de granito às de porcelanas
com frisos de ouro, rodeando armações de ferro, onde se guarda o Ogum, o São Jorge da
África.
No dia seguinte à cerimônia, a iauô lava-se e vai à presença do pai para ver se tem
espíritos contrários.
Se os espíritos existem, o pai poderoso afasta a influência nefasta por meio de ebós e
ogunguns. A iauô é obrigada a não falar a ninguém: quando deseja alguma coisa, bate palmas e
só a ajuda nesses dias a mãe-pequena ou Iaque-que-rê. As danças para preparo de santo
realizam-se nos 1.º, 3.º, 7
.º,12.º, e no 16.º dia o santo revela-se.
- Mas que adianta isso às iauô?
- Nada. O pai-de-santo domina-as. O erô ou segredo que lhe dá, pode retirá-lo quando lhe
apraz; o poder de as transformar e fazer-lhes mal está em virar o santo sempre que tem
vontade.
- E quando essas criaturas morrem?

- Faz-se a obrigação raspando um pouco de cabelo para saber se o santo também vai, e o
babaloxá procura um colega para lhe tirar a mão do finado.
As cerimônias das iauô renovam-se de resto de seis em seis meses, de ano em ano, até à
morte. São elas que em grande parte sustentam o culto.
Quando a iauô não tem dinheiro, ou o pai vende-a em leilão ou a guarda como serva. Desta
convivência é que algumas chegam a ser mães-de-santo, para o que basta dar-lhe o babaloxá
uma navalha.
- E há muita mãe-de-santo?
- Umas cinqüenta, contando com as falsas. Só agora lembro-me de várias: a Josefa, a Calu
Boneca, a Henriqueta da Praia, a Maria Marota, que vende à porta do Glacier, a Maria do
Bonfim, a Martinha da rua do Regente, a Zebinda, a Chica de Vavá, a Aminam pé-de-boi, a
Maria Luiza, que é também sedutora de senhoras honestas, a Flora Coco Podre, a Dudu do
Sacramento, a Bitaiô, que está agora guiando seis ou oito filhas, a Assiata.
Esta é de força. Não tem navalha, finge de mãe-de-santo e trabalha com três ogans falsos
- João Ratão, um moleque chamado Macário e certo cabra pernóstico, o Germano. A Assiata
mora na rua da Alfândega, 304. Ainda outro dia houve lá um escândalo dos diabos, porque a
Assiata meteu na festa de Iemanjá algumas iauô feitas por ela. Os pais-de-santo protestaram, a
negra danou, e teve que pagar a multa marcada pelo santo. Essa é uma das feiticeiras de
embromação.
Nesse mesmo dia Antônio veio buscar-me à tarde.
- A casa a que vai V.S. é de um grande feiticeiro; verá se não há fatos verdadeiros.
Quando chegamos, a sala estava enfeitada. Em derredor sentavam-se muitos negros e
negras mastigando olobó, ou cola amargosa, com as roupas lavadas e as faces reluzentes. A
um canto, os músicos, fisionomias estranhas, faziam soar, com sacolejos compassados, o
xequerêe, os atabaques e ubatás, com movimentos de braços desvairadamente regulares. Não
se respirava bem.
A cachaça, circulando sem cessar, ensangüentava os olhos amarelos dos assistentes.
- As vezes tudo é mentira, à custa de cachaça e fingimento - diz Antônio. Quando o santo
não vem, o pai fica desmoralizado. Mas aqui é de verdade...
Olhei o célebre pai-de-santo, cujas filhas são sem conta. Estava sentado à porta da
camarinha, mas levantou-se logo, e a negra iniciada entrou, de camisola branca, com um leque
de metal chocalhante. Fula, com uma extraordinária fadiga nos membros lassos, os seus olhos
brilhavam satânicos sob o capacete de pinturas bizarras com que lhe tinham brochado o crânio.
Diante do pai estirou-se a fio comprido, bateu com as faces no assoalho, ajoelhou e beijou-lhe a
mão. Babaloxá fez um gesto de bênção, e ela foi, rojou-se de novo diante de outras pessoas. O
som do agogó arrastou no ar os primeiros batuques e os arranhados do xequeré. A negra
ergueu-se e, estendendo as mãos para um e para outro lado, começou a traçar passos, sorrindo
idiotamente. Só então notei que tinha na cabeça uma esquisita espécie de cone.
- É o ado-chú, que faz vir o santo - explica Antônio. - É feito com sangue e ervas. Se o adochú cai, santo não vem.
A negra, parecia aos poucos animar-se, sacudindo o leque de metal chocalhante.
Em derredor, a música acompanhava as cantigas, que repetiam indefinidamente a mesma
frase.
As dança dessas cerimônias é mais ou menos precipitada, mas sem os pulos satânicos dos
Cafres e a vertigem diabólica dos negros da Luisiania. É simples, contínua e insistente,
horrendamente insistente. Os passos constantes são o alujá, em roda da casa, dando com as
mãos para a direita e para a esquerda, e o jêquedê, em que ao compasso dos atabaques, com
os pés juntos, os corpos se quebram aos poucos em remexidos sinistros. Não sei se o
enervante som da música destilando aos poucos desespero, se a cachaça, se o exercício, o fato
é que, em pouco, a iauô parecia reanimar-se, perder a fadiga numa raiva de louca. De cada
xequexé-xequexé que a mão de um negro sacudia no ar, vinha um espicaçamento de urtiga,
das bocas cusparinhentas dos assistentes escorria a alucinação. Aos poucos, outros negros,
não podendo mais, saltaram também na dança, e foi então entre as vozes, as palmas e os
instrumentos que repetiam no mesmo compasso o mesmo som, uma teoria de cara bêbedas
cabriolando precedidas de uma cabeça colorida que esgareiava lugubremente. A loucura
propagou-se. No meio do pandemônio vejo surgir o babaloxá com um desses vasos furados em
que se assam castanhas, cheio de brasas.

 - Que vai ele fazer?
- Cala, cala... é o pai, é o pai grande - balbucia Antônio.
As cantigas redobram com um furor que não se apressa. São como uma ânsia de
desesperado essas cantigas, como a agonia de um mesmo gesto arrancando dos olhos a
mesma lâmina de faca, são atrozes! O babaloxá coloca o cangirão ardente na cabeça da iauô,
que não cessa de dançar delirante, insensível, e, alteando o braço com um gesto dominador e
um sorriso que lhe prende o beiço aos ouvidos, entorna nas brasas fumegantes um alguidar
cheio de azeite-de-dendê.
Ouve-se o chiar do azeite nas chamas, a negra, bem no meio da sala, sacoleja-se num
jequedé lancinante, e pela sua cara suada, do cangirão ardente, e que não lhe queima a pele,
escorrem fios amarelos de azeite...
Ie-man-já atô cuaô.
continuava a turba.
- Não queimou, não queimou, ele é grande - fez Antônio.
Eu abrira os olhos para ver, para sentir bem o mistério da inaudita selvageria. Havia uma
hora, a negra dançava sem parar; pela face o dendê quente escorria benéfico aos santos. De
repente, porém ela estacou, caiu de joelhos, deu um grande grito.
- Emim oiá bonmim'. - Bradou.
- É o nome dela, o santo disse pela sua boca o nome que vai ter.
A sala rebentou num delírio infernal. O babaloxá gritava, com os olhos arregalados,
palavras guturais.
- Que diz ele?
- Que é grande, que vejam como é grande!
Criaturas rojavam-se aos pés do pai, beijando-lhes os dedos, negras uivavam, com as
mãos empoladas de bater palmas; dois ou três pretos aos sons dos xequerês sacudiam-se em
danças com o santo, e a iauô revirava os olhos, idiota, como se acordasse de uma grande e
estranha moléstia.
- Que vai ela fazer agora, Deus de misericórdia! - murmurei saindo.
- Vai trabalhar, pagar no fim de três meses a sua obrigação, ochu meta, dar dinheiro a paide-santo, ganhar dinheiro...
- Sempre o dinheiro! - fiz eu olhando a velha casaria.
Antônio parou e disse:
- Não se engana V.S.
E limpando o suor do rosto, o negro concluiu com esta reflexão profunda:
- Neste mundo, nem os espíritos fazem qualquer coisa sem dinheiro e sem sacrifício!
Fomos pela rua estreita com a visão sinistra da pobre mártir aos pulos, dessa cabeça
pintada, entre os chocalhos e os atabaques, que dançava e gritava horrendamente...

O FEITIÇO

Nós dependemos do Feitiço.
Não é um paradoxo, é a verdade de uma observação longa e dolorosa. Há no Rio magos
estranhos que conhecem a alquimia e os filtros encantados, como nas mágicas de teatro, há
espíritos que incomodam as almas para fazer os maridos incorrigíveis voltarem ao tálamo
conjugal, há bruxas que abalam o invisível só pelo prazer de ligar dois corpos apaixonados, mas
nenhum desses homens, nenhuma dessas horrendas mulheres tem para este povo o
indiscutível valor do Feitiço, do misterioso preparado dos negros.
É provável que muita gente não acredite nem nas bruxas, nem nos magos, mas não há
ninguém cuja vida tivesse decorrido no Rio sem uma entrada nas casas sujas onde se enrosca
a indolência malandra dos negros e das negras. É todo um problema de hereditariedade e
psicologia essa atração mórbida. Os nossos ascendentes acreditaram no arsenal complicado da  magia da idade média, na pompa de uma ciência que levava à forca e às fogueiras sábios
estranhos, derramando a loucura pelos campos; os nossos avós, portugueses de boa fibra,
tremeram diante dos encantamentos e amuletos com que se presenteavam os reis entre
diamantes e esmeraldas. Nós continuamos fetiches no fundo, como dizia o filósofo, mas
rojando de medo diante do Feitiço africano, do Feitiço importado com os escravos, e indo buscar
trêmulos a sorte nos antros, onde gorilas manhosos e uma súcia de pretas cínicas ou histéricas
desencavam o futuro entre cágados estrangulados e penas de papagaio!
Vivi três meses no meio dos feiticeiros, cuja vida se finge desconhecer, mas que se
conhece na alucinação de uma dor ou da ambição, e julgo que seria mais interessante como
patologia social estudar, de preferência, aos mercadores da paspalhice, os que lá vão em busca
de consolo.
Vivemos na dependência do Feitiço, dessa caterva de negros e negras, de babaloxás e
iauô, somos nós que lhe asseguramos a existência, com o carinho de um negociante por uma
amante atriz. O Feitiço é o nosso vício, o nosso gozo, a degeneração. Exige, damos-lhes;
explora, deixamo-nos explorar, e, seja ele maitre-chanteur, assassino, larápio, fica sempre
impune e forte pela vida que lhe empresta o nosso dinheiro.
Os feiticeiros formigam no Rio, espalhados por toda a cidade, do cais à Estrada de Santa
Cruz.
Os pretos, alufás ou orixás, degeneram o maometismo e o catolicismo no pavor dos
aligenum, espíritos maus, e do exu, o diabo, e a lista dos que praticam para o público não acaba
mais. Conheci só num dia a Isabel, a Leonor, a Maria do Castro, o Tintino, da rua Frei Caneca; o
Miguel Pequeno, um negro que parece os anões de D. Juan de Byron; o Antônio, mulato
conhecedor do idioma africano; Obitaiô, da rua Bom Jardim; o Juca Aboré, o Alamijo, o Abede,
um certo Maurício, ogan de outro feiticeiro - o Brilhante, pai-macumba dos santos cabindas; o
Rodolfo, o Virgílio, a Dudu do Sacramento, que mora também na rua do Bom Jardim; o Higino e
o Breves, dois famosos tipos de Niterói, cuja crônica é sinistra; o Oto Ali, Ogan-Didi, jogador da
rua da Conceição; Armando Ginja, Abubaca Caolho, Egidio Aboré, Horácio, Oiabumin, filha e
mãe-de-santo atual da casa de Abedé; Ieusimin, Torquato Arequipá, Cipriano, Rosendo, a Justa
de Obaluaei, Apotijá, mina famoso pelas suas malandragens, que mora na rua do Hospício, 322
e finge de feiticeiro falando mal do Brasil; a Assiata, outra exploradora, a Maria Luiza, sedutora
reconhecida, e até um empregado dos Telégrafos, o famoso pai Deolindo...
Toda essa gente vive bem, à farta, joga no bicho como Oloô-Teté, deixa dinheiro quando
morre, às vezes fortunas superiores a cem contos, e achincalha o nome de pessoas eminentes
da nossa sociedade, entre conselhos às meretrizes e goles de parati. As pessoas eminentes
não deixam, entretanto, de ir ouvi-los às baiucas infectas, porque os feiticeiros que podem dar
riqueza, palácios e eternidade, que mudam a distância, com uma simples mistura de sangue e
de ervas, a existência humana, moram em casinholas sórdidas, de onde emana um
nauseabundo cheiro.
Para obter o segredo do feitiço, fui a essas casas, estive nas salas sujas, vendo pelas
paredes os elefantes, as flechas, os arcos pintados, tropeçando em montes de ervas e lagartos
secos, pegando nas terrinas sagradas e nos obélês, cheios de suor.
- V. S., se deseja saber quais são os principais feitiços, é preciso acostumar-se antes com
os santos, dizia-me o africano.
Acostumei-me. São inumeráveis. As velhas que lhes discutem o preço em conversa, até
confundem as histórias. Em pouco tempo estava relacionado com Exu, o diabo, a que se
sacrifica no começo das funçanatas, Obaluaiê, o santo da varíola, Ogum, o deus da guerra,
Oxóocí, Eíulé, Oloro-quê, Obalufan, Orixá-agô, Exu-maré, Orixá-ogrinha Aíra, Orominha, Ogodô,
Oganju, Baru, Orixalá, Bainha, Dadá, Percuã, Coricotó, Doú, Alabá, Ari e as divindades
beiçudas, esposas dos santos - Aquará, Oxum-gimoun, Aíá-có, a mãe da noite, Inhansam, Obiam, esposa de Orixá-lá; Orainha, Ogango, Jená, mulher de Elôquê; Io-máo-já, a dona de
Orixáocô; Oxum de Xangô e até Obá, que, príncipe neste mundo, é no éter hetairia do
formidável santo Ogodô.
Os fetiches contaram-me a história de Orixá-alum, o maior dos santos que aparece raras
vezes só para mostrar que não é de brincadeiras, e eu assisti às cerimônias do culto, em que
quase sempre predomina a farsa pueril e sinistra. Diante dos meus olhos de civilizado,
passaram negros vestidos de Xangô, com calça de cor, saiote encarnado enfeitado de búzios e
lantejoulas, avental, babadouro e gorro; e esses negros dançavam com Oxum, várias negras
fantasiadas, de ventarolas de metal na mão esquerda e espadinha de pau na direita. Concorri   para o sacrifício de Obaluaiê, o santo da varíola, um negro de bigode preto com a roupa de
Polichinelo e uma touca branca orlada de urtigas. O santo agitava uma vassourinha, o seu
xaxará, e nós todos em derredor do babaloxá víamos morrer sem auxílio de faca, apenas por
estrangulamento, uma bicharada que faria inveja ao Jardim Zoológico.
Os africanos porém continuavam a guardar o mistério da preparação.
- Vamos lá, dizia eu, camarário, como é que faz para matar uni cidadão qualquer?
Eles riam, voltavam o rosto com uns gestos quase femininos.
- Sei lá!
Outros porém tagarelavam:
- V. S. não acredita? É que ainda não viu nada. Aqui está quem fez um deputado! O...
Os nomes conhecidos surgiam, tumultuavam, empregos na polícia, na Câmara, relações no
Senado, interferências em desaguisados de famílias notáveis.
- Mas como se faz isso?
- Então o senhor pensa que a gente diz assim o seu meio de vida?
E imediatamente aquele com quem eu falava, descompunha o vizinho mais próximo -
porque, membros de uma maçonaria de defesa geral, de que é chefe o Ojó da rua dos
Andradas, os pretos odeiam-se intimamente, formam partidos de feiticeiros africanos contra
feiticeiros brasileiros, e empregam todos os meios imagináveis para afundar os mais
conhecidos.
Acabei julgando os babaloxás sábios na ciência da feitiçaria como o Papa João XXII e não
via negra mina na rua sem recordar logo o bizarro saber das feiticeiras de d'Annunzio e do Sr.
Sardou. A lisonja, porém, e o dinheiro, a moeda real de todas as maquinações dessa ópera
pregada aos incautos, fizeram-me sabedor dos mais complicados feitiços.
Há feitiços de todos os matizes, feitiços lúgubres, poéticos, risonhos, sinistros. O feiticeiro
joga com o Amor, a Vida, o Dinheiro e a Morte, como os malabaristas dos circos com objetos de
pesos diversos. Todos entretanto são de uma ignorância absoluta e afetam intimidades
superiores, colocando-se logo na alta política, no clero e na magistratura. Eu fui saber, aterrado,
de uma conspiração política com os feiticeiros, nada mais nada menos que a morte de um
passado presidente da República. A principio achei impossível, mas os meus informantes
citavam com simplicidade nomes que estiveram publicamente implicados em conspirações,
homens a quem tiro o meu chapéu e aperto a mão. Era impossível a dúvida.
- O presidente está bem com os santos, disse-me o feiticeiro, mas bastava vê-lo à janela do
palácio para que dois meses depois ele morresse.
- Como?!
- E difícil dizer. Os trabalhos dessa espécie fazem-se na roça, com orações e grandes
matanças. Precisa a gente passar noites e noites a fio diante do fogareiro, com o tessubá na
mão, a rezar. Depois matam-se os animais, às vezes um boi que representa a pessoa e é logo
enterrado. Garanto-lhe que dias depois o espírito vem dizer ao feiticeiro a doença da pessoa.
- Mas por que não matou?
- Porque os caiporas não me quiseram dar sessenta contos.
- Mas se você tivesse recebido esse dinheiro e um amigo do governo desse mais?
- O feitiço virava. A balança pesa tudo e pesa também dinheiro. Se Deus tivesse permitido a
essa hora, os somíticos estariam mortos.
Esse é o feitiço maior, o envoutement solene e caro. Há outros, porém, mais em conta.
Para matar um cavalheiro qualquer, basta torrar-lhe o nome, dá-lo com algum milho aos
pombos e soltá-los numa encruzilhada. Os pombos levam a morte... É poético. Para ulcerar as
pernas do inimigo um punhado de terra do cemitério é suficiente. Esse misterioso serviço
chama-se etu, e os babaloxás resolvem todo o seu método depois de conversar com os iffá,
uma coleção de 12 pedras. Quando os iffá estão teimosos, sacrifica-se um cabrito metendo as
pedras na boca do bicho com alfavaca de cobra.
Os homens são em geral volúveis. Há o meio de os reter per eternum sujeitos à mesma
paixão, o effifá, uma forquilha de pau preparada com besouros, algodão, linhas e ervas, sendo
que durante a operação não se deve deixar de dizer o ojó, oração. Se eu amanhã desejar a
desunião de um casal, enrolo o nome da pessoa com pimenta-da-costa, malagueta e linha
preta, deito isso ao fogo com sangue, e o casal dissolve-se; se resolver transformar Catão, o  honesto, no mais desbriado gatuno, arranjo todo esse negócio apenas com um bom tira, um rato
e algumas ervas! E maravilhoso.
Há também feitiços porcos, o mantucá, por exemplo, preparado com excremento de vários
animais e coisas que a decência nós salva de dizer; e feitiços cômicos como o terrível
xuxuguruxu... Esse faz-se com um espinho de Santo Antônio besuntado de ovo e enterra-se à
porta do inimigo, batendo três vezes e dizendo:
- Xuxuguruxu io le bará....
Para ô homem ser absolutamente fatal, D. Juan, Rotschild, Nicolau II e Morny, recolhi com
carinho uma receita infalível; É mastigar orobó quando pragueja, trazer alguns tiras ou breves
escritos em árabe na cinta, usar do ori para o feitiço não pegar, ter aléni do xorá, defesa própria,
o essiqui, cobertura e o irocó, defumação das roupas, num fogareiro cm que se queima azeitede-dendê, cabeças de bichos e ervas, visitar os babaloxás e jogar de vez em quando o até ou a
praga. Se apesar de tudo isso a amante desse homem fugir, há um supremo recurso: espera-se
a hora do meio-dia e crava-se um punhal detrás da porta.
Mas o que não sabem os que sustentam os feiticeiros, é que a base, o fundo de toda a sua
ciência é o Livro de S. Cipriano. Os maiores alufás, os mais complicados pais-de-santo, têm
escondida entre os tiras e a bicharada uma edição nada fantástica do S. Cipriano. Enquanto
criaturas chorosas esperam os quebrantos e as misturadas fatais os negros soletram o S.
Cipriano, à luz dos candeeiros...
O feitiço compõe-se apenas de ervas arrancadas ao campo depois de lá deixar dinheiro
para o saci, de sangue, de orações, de galos, cabritos, cágados, azeite-de-dendê e do livro
idiota. É o desmoronamento de um sonho!
Os feiticeiros, porém, pedem retratos, exigem dos clientes coisas de uma depravação sem
nome para agir depois fazendo o egum, ou evocação dos espíritos, o maior mistério e a maior
pândega dos pretos; e quase todos roubam com descaro, dando em troco de dinheiro sardinhas
com pó-de-mico, cebolas com quatro pregos espetados, cabeças de pombo em salmoura para
fortalecer o amor, uma infinita série de extravagâncias. Os trabalhos são tratados como nos
consultórios médicos: a simples consulta de seis a dez mil réis, a morte de homem segundo a
sua importância social e o recebimento da importância por partes. Quando é doença, paga-se
no ato - porque os babaloxás são médicos, e curam com cachaça, urubus, penas de papagaio,
sangue e ervas.
A policia visita essas casas como consultante. Soube nesses antros que um antigo
delegado estava amarrado a uma paixão, graças aos prodígios de um galo preto. A polícia não
sabe pois que alguns desses covis ficam defronte de casas suspeitas, que há um tecido de
patifarias inconscientes ligando-as. Mas não é possível a uma segurança transitória acabar com
um grande vício como o Feitiço. Se um inspetor vasculhar amanhã os jabotis e as figas de uma
das baiúcas, à tarde, na delegacia os pedidos choverão...
Eu vi senhoras de alta posição saltando, às escondidas, de carros de praça, como nos
folhetins de romances, para correr, tapando a cara com véus espessos, a essas casas; eu vi
sessões em que mãos enluvadas tiravam das carteiras ricas notas e notas aos gritos dos negros
malcriados que bradavam.
- Bota dinheiro aqui!
Tive em mãos, com susto e pesar, fios longos de cabelos de senhoras que eu respeitava e
continuarei a respeitar nas festas e nos bailes, como as deusas do Conforto e da Honestidade.
Um babaloxá da costa da Guiné guardou-me dois dias às suas ordens para acompanhá-lo aos
lugares onde havia serviço, e eu o vi entrar misteriosamente em casas de Botafogo e da Tijuca,
onde, durante o inverno, há recepções e conversationes às 5 da tarde como em Paris e nos
palácios da Itália. Alguns pretos, bebendo comigo, informavam-me que tudo era embromação
para viver, e, noutro dia, tílburis paravam à porta, cavalheiros saltavam, pelo corredor estreito
desfilava um resumo da nossa sociedade, desde os homens de posição às prostitutas
derrancadas, com escala pelas criadas particulares. De uma vez mostraram-me o retrato de
uma menina que eu julgo honesta.
- Mas para que isso?
- Ela quer casar com este.
Era a fotografia de um advogado.
- E vocês?
- Como não quer dar mais dinheiro, o servicinho está parado. A pequena já deu trezentos e  cinqüenta.
Tremi romanticamente por aquela ingenuidade que se perdia nos poços do crime à procura
do Amor...
Mas esse caso é comum. Encontrei papelinhos escritos em cursivo inglês, puro Coraçãode-Jesus, cartões-bilhetes, pedaços de seda para misteres que a moralidade não pode
desvendar. Eles diziam os nomes com reticências, sorrindo, e eu acabei humilhado,
envergonhado, como se me tivessem insultado.
- A curiosidade tem limites, disse a Antônio que desaparecera havia dias para levar aos
subúrbios umas negras. Se eu dissesse metade do que vi, com as provas que tenho!...
Continuar é descer o mesmo abismo vendo a mesma cidade misteriosamente rojar-se diante do
Feitiço... Basta!
- V. S. não passou dos primeiros quadros da revista. É preciso ver as loucuras que o Feitiço
faz, as beberagens que matam, os homicídios nas camarinhas que nunca a polícia soube; é
preciso chegar à apoteose. Venha...
E Antônio arrastou-me pela rua, do General Gomes Carneiro.

A CASA DAS ALMAS

Os negros "cambindas" do Rio guardam com terror a história de um branco que lhes
apareceu certa vez em pleno sertão africano. Quando o rei deu por ele, que por ali vinha calmo,
com as suas barbas de sol, precipitou-se mais a tribo em atitude feroz. O branco tirou da cinta
um pequeno feitiço de metal e prostrou morto, golfando sangue, o babaláo.
- Exu! Exu! ganiu a tribo, recuando de chofre.
- Quem és tu, santo que eu não conheço? perguntou trêmulo o poderoso rei.
- Sou o que pode tudo, bradou o branco. Vê.
Estendeu a mão de novo e matou outros negros.
- Só te deixarei em paz se me mostrares todos os teus feitiços.
Sua Majestade, apavorada, levou-o à tenda real e durante o dia e durante a noite, sem
parar, lhe deu tudo quanto sabia.
- Perdôo-te, disse o branco. Adeus! Levo para o mistério a rainha.
Aconchegou o feitiço, que parecia egum, o deus da guerra, no seio da preferida, deixou-a
cair, e partiu devagar pela estrada a fora...
Não precisei dos meios violentos do Caramuru da África, para saber do mais terrível
mistério da religião dos minas: - o egum ou evocação das almas. Naquela mesma noite em que
encontrara Antônio, o negro serviçal levou-me a uma casa nas imediações da praia de Santa
Luzia.
- Em tudo é preciso mistério, dizia ele. V. S. vai à casa do babaloxá, finge acreditar e depois
é convidado para uma cerimônia na casa das almas. Poderá então ver o segredo da pantomima.
Quem descobre o segredo do egum, morre. Eu me arrisco a morrer.
A sua voz era trêmula.
- Tens medo?
- Não, mas se morrer amanhã, todos os feiticeiros dirão que foi o feitiço. Do egum depende
toda a traficância. O negro parou. Não imagina! Abubáca Caolho, que mora na rua do Resende,
é um dos tais. Quando há uma morte, vai logo dizer que foi quem a fez. Se fôssemos acreditar
nas suas mentiras, Abubáca tinha mais mortes no costado que cabelos na cabeça. V. S. já o viu.
É um negro que usa gravata do lado e pontas - as roupas velhas dos outros... Apotijá é outro.
- Mas há desse gênero de morte, Antônio? indaguei eu acendendo o cigarro com um gesto
shakespereano.
- Ora se há! Vou provar quando quiser. De morte misteriosa lembro a Maria Rosa Duarte,
sogra do mama Pão Baltazar, alufá muito amigo de um político conhecido; o Salvador Tapa, a
Esperança Laninia, Larê-quê, Fantuchê, o Jorge da rua do Estácio, Ougu-olusaim... Todos
morreram por ter descoberto o egum. Na Bahia, então, esses assassinatos são comuns. Hei de
lembrar sempre o velho feiticeiro Aguidi, coitado! Era dos que sabem. Um dia, farto de viver,
descobriu a traficância e logo depois morria no incêndio do Tabão, com os braços cruzados,
impassível e a sorrir. Aguidi na minha língua significa: - o que quer morrer... Ele quis.

Pela praia de Santa Luzia o luar escorria silenciosamente, e de leve o vento, sacudindo as
folhas das árvores em melancólico sussurro, entristecia Antônio.
- Ah! meu senhor. Não é só por causa do egum que negro mata. Quando as iauô não
andam direito, quando não fingem bem, quase nunca escapam de morrer. Há vários processos
de morte, a morte lenta, com beberagens e feitiços diretos, a morte na camarinha por
sufocação... Muitos negros apertam uma veia que a gente tem no pescoço e dentro de um
minuto qualquer pessoa está morta. Outros dependuram as criaturas e elas ficam bracejando no
ar com os olhos arregalados.
A Morte e a Loucura nem sempre se limitam ao estreito meio dos negros. As beberagens e
o pavor atuam suficientemente nas pessoas que os freqüentam. A Assiata, uma negra baixa,
fula e presunçosa, moradora à rua da Alfândega, dizem os da sua roda que pôs doida na Tijuca
uma senhora distinta, dando-lhe misturadas para certa moléstia do útero. Apotijá, o malandro da
rua do Hospício, que aproveita os momentos de ócio para descompor o Brasil, tem também uma
vastíssima coleção de casos sinistros.
A Morte e todas as vesânias não são apenas os sustentáculos dos seus ritos e das suas
transações religiosas, são também o meio de vida extra-cultual, o processo de apanhar
heranças. Alikali, lemamo atual dos alufás, e Amando Ginja, cujo nome real é Fortunato
Machado, quando morre negro rico vão logo à polícia participar que não deixou herdeiros. Alikali
é testamenteiro de quase todos e bicho capaz de fazer amuré com as negras velhas, só para
lhes ficar com as casas. A certidão de óbito é dada sem muitas observações.
- Mas, você conhece mais feiticeiros, Antônio?
- Pois não! O João Mussê, alufá feiticeiro tremendo, que mora na rua Senhor dos Passos,
222 e é respeitado por todos; Obalei-ié, Obio Jamin, Ochu-Toqui, Ochu-Bumin, Emin-Ochun,
Oumigi, Obitaiô-homem, Obitaiô-mulher, Ochu Taiodé, a Ochu-boheió, da rua do Catete, Siê,
Xangô-Logreti, Ajagum-baru, Eçu-hemin, Angelina, o ogan Conrado... Mais de cem feiticeiros,
mais cem.
- Quase todos com os nomes dos santos...
- Os negros usam sempre o nome do santo que têm no corpo...
Mas de repente Antônio parou entre as árvores.
- Temos ebó de iê-man-já. A negralhada vem ..... Se quer ver, esconda-se detrás de algum
tronco.
Com efeito, sentiam-se vozes surdas ao longe, cantando.
O despacho, ou ebó, da mãe-d'Água salgada, é um alguidar com pentes, alfinetes, agulhas,
pedaços de seda, dedais, perfumes, linhas, tudo o que é feminino.
Detrás da árvore, pouco depois eu vi aparecer no plenilúnio a teoria dos pretos. À frente
vinha uma com o alguidar na cabeça, e cantavam baixo.
Baô de ré se equi je-man-já
Pelé bé Apotá auo yo tô toro fym la cho
Ere...
Era o ofertório. Ao chegar à praia, na parte em que há uns rochedos, a negra desceu,
depositou o alguidar. Uma onda mais forte veio, bateu, virou o vaso de barro, quebrou-o, levou
as linhas e todos balbuciaram, rojando:
- Iê-man- já!
A santa aparecera na fosforescência lunar, agradecendo...
Depois os sacerdotes ergueram-se, reuniram e nós ficamos de novo sós, enquanto o
oceano rugia e, ao longe, tristemente a canzoada ladrava.
- Ainda apanhamos o candomblé, disse Antônio. É preciso que o babaloxá convide V. S.
para o egum...
Noutro dia, pouco mais ou menos à meia-noite, estávamos no ilê-saim ou casa das almas.
O egum é uma cerimônia quase pública, a que os feiticeiros convidam certos brancos para
presenciar a pantomima do seu extraordinário poder. Esses curiosos fetiches, que para fazer o
guincho de santo Ossaim amarram nas pernas bonecas de borracha, com assobio; cujos santos
são uni produto de bebedeiras e de hipnose, têm na evocação dos espíritos a máxima  encenação da sua força sobre o invisível. Quando morre alguém, quando todos estão diante do
corpo, um dos pretos esconde-se e dá um grito. No meio da confusão geral, então, mudando a
voz, esse negro grita:
- Emim, toculoni mopé, cá-um-pé, emim! Eu que morri hoje, quero que chamem por mim.
Os donos do defunto arranjam o dinheiro para a evocação, pessoas estranhas ajudam
também com a sua quota para aproveitar e saber do futuro. O babaloxá não faz o egum
enquanto não tem pelo menos trezentos mil réis. Arranjada a quantia, começa a cerimônia.
Quando entramos na sala das almas, à luz fumarenta dos candeeiros a cena era estranha.
Havia brancas, meretrizes de grandes rodelas de carmim nas faces, mulatas em camisa,
mostrando os braços com desenhos e iniciais em azul dos proprietários do seu amor, e negros,
muitos negros. Estes últimos, sentados em roda do assoalho, estavam quase nus, e algumas
negras mesmo inteiramente nuas com os seios pendentes e a carapinha cheia de banha.
- Por que estão eles assim?
- Para mais facilmente receber o espírito.
Junto à porta do fundo, três negros de vara em punho quedavam-se estáticos. Eram os
annichans, que faziam guarda ao saluin ou quarto-dos-espíritos. Ouvi dentro do saluin um
barulho de pratos, de copos tocados, de garrafas desarrolhadas; um momento pareceu-me ouvir
até o estouro forte do champanha barato.
- Há gente lá dentro?
- As almas. Está-se banqueteando. O banquete foi pago pelos presentes. Mas, psiu! Daqui
a pouco começarão as cantigas, que ninguém compreende. Os africanos inventam nomes para
a cena parecer mais fantástica.
Com efeito, minutos depois, aos primeiros sons dos atabaques, as negras bradaram:
- Aluá! o espírito! e romperam uma cantiga assustadora e trôpega.
Anu-ha, a o ry au od á
San-ná-elê-o ou baba
Locá-aló
A porta continuava fechada, mas eu vi surgir de repente um negro vestido de dominó com
os pés amarrados em panos. Os três annichans ergueram as varas, o dominó macabro
começou a bater a sua no chão, os xeguedês sacudiram-se, e outra cantiga estalou medrosa:
Lou-â gége ou-rou ó uá
Xó la-ry la-ry lary
Que què oura ô uchô
La-ry la mamau rú nam babá
Quando o santo aos pulos aproximava-se de alguma mulher, ela recuava bradando com
desespero:
- Afapão!
- Vão aparecer as almas, avisou Antônio, a cantiga diz: Procuramos a alma de Fulano e de
Sicrano e não a encontramos dormindo. Cansamos sem saber o mistério que a envolvia. A alma
está aqui e entrou pela porta do quintal.
- Mas quem é este dominó?
- É Baba-Egum. As almas têm vários cargos. O que traz uma gamela chama-se Ala-té-
orum, o 2.º Opocó-echi, o 3.º Eguninhansan, e no meio de sete espíritos aparece o invocado.
Entretanto o dominó Baba-Egum batia furiosamente no chão com a sua vara de marmelo, e
no alarido aumentado apareceu aos pulos outro dominó, o Alabá, que por sua vez também se
pôs a bater. Era o ritual da entrega das almas. Por fim apareceu Ousaim, enfiado numa fantasia
de bebê, de xadrez variado, com duas máscaras: uma nas costas, outra tapando o rosto.
- Quem é esse?
- O Bonifácio da Piedade, um malandro de cavaignac, que faz sempre de Eruosaim.
Eruosaim também dançava. Entre as cantigas, os annichans ergueram de novo as varas, a   porta abriu-se, dois negros ficaram um de cada lado, o atafim, ou confidente, e o anuxam,
secreta. De dentro saíram mais três dominós cheios de figas e espelhinhos, com os pés
embrulhados nos trapos. As negras aterrorizadas uivavam, com o amarelo dos olhos virados e
os espíritos, naquela algazarra, pareciam cambalear. Havia gente porém que os reconhecia.
- Eles fingem os gestos dos mortos, segredou-me Antônio. Palmas ressoavam estridentes
saudando a chegada do invisível, as varas de marmelo lanhavam o ar e as almas, e naquele
círculo silvante, ao som dos xeguedés e dos atabaques batiam surdamente no chão aos pulos
da dança demoníaca.
Um dos espíritos, porém, sentiu-se numa espécie de trono de mágica. Como por encanto a
dança cessou e naquela pávida atmosfera, em que o medo gemia, as mulheres de borco, os
homens contorsionados, o negro fantasiado guinchou do alto.
- Guilhermina ocê percisa gostá de Antônio... José tem que fazê ebô para espírito mau.
Chica, um home há de vi aí, ocê vai com ele...
- Veja V. S. a chantage, murmurou Antônio. Os negros recebem dinheiro antes dos homens
e obrigam as criaturas pelo terror a tudo quanto quiserem. Por isso quem descobre o egum,
morre.
A Chica, uma mulatinha, coitada! tremia convulsivamente, mas já outras, nuas, em camisa,
sacudindo os membros lassos, ganiam de longe, batendo as varas num terror exaustivo.
- E eu? e eu?
- E eu? e eu?
- Ocê tá dereita, sua vida vai pr'a frente.
- E eu? e eu? gargolejaram outras bocas em estertores.
- Ocê está pra traz, percisa ebô.
Aproximei-me de um dos espíritos; cheirava a espírito de vinho; estava literalmente bêbedo.
Quando a cerimônia atingia ao desvario e já os espíritos tinham pastosidade na voz, caiu na
sala, como um bedengó, Inhansam, um negro fingindo de santo materializado e, em meio do
pavor geral, ao som das cantigas, esticou a mão sinistra, foi pedindo a cada criatura 16 obis, 16
orobôs, 16 galos, 16 galinhas, 16 pimentas-de-costa, 16 mil réis, um cabrito, um carneiro. Ao
chegar às meretrizes brancas, Inhansam ferozmente exigia peças de chita, fazendas e objetos
caros. A turba gritava toda: Inhansam! Inhansam! gente nova entrava na sala, e de repente,
como todos se voltassem a um grito da porta, os espíritos desapareceram... Tinham fugido
tranqüilamente pelo corredor.
- Está acabado, fez Antônio. Os espíritos vão se despir, e voltam daí a pouco para ver se o
pessoal acreditou mesmo...
A cena mudara entretanto. Dissipado o sudário apavorado, todas aquelas carnes
hiperestizadas erguiam-se ainda vibrantes para a bacanal.
O álcool e a queda na realidade estabeleciam o desejo. Negros arrastavam-se para quintal,
para os cantos, longos sorrisos lúbricos abriam em bocejos as bocas espumantes, risinhos
rebentavam e negros fortes, estendidos no chão, rolavam as cabeças numa sede de gozo.
Há entre as negras uma propensão sinistra para o tribadismo. Em pouco, naquela casinhola
suja e mal-cheirosa, eu via como uma caricatura horrenda as cenas de deboche dos romances
históricos em moda. Mais dois negros entraram.
- Então egum esteve bom?
- E eu que não cheguei em tempo...
- Veja, mostrou Antônio, lá está o Bonifácio Eruosaim, vendo se causou efeito fantasiado de
bebê. Venha até o quarto do banquete.
Fomos. Antônio empurrou uma porta e logo nos achamos numa sala com garrafas pelo
chão, pratos servidos, copos entornados, rolhas, os destroços de uma fome voraz. Num canto a
Chica dizia baixinho para um lindo rapaz de calças bombachas:
- É você que o espírito disse?...
Quando reaparecemos o babaloxá murmurava:
- A festa está acabada, companheiros... É não deixar de trazer o que Inhansam pediu.
Saímos então. Vinha pelo céu raiando a manhã. Palidamente, na calote cor de pérola, as
estrelas tremiam e desmaiavam. Antônio cambaleava. Chamei um carro que passava, meti-o   dentro. Em torno tudo dizia o mistério e a incompreensão humana, o éter puro, os vagalhões do
mar, as árvores calmas. Tinha a cabeça oca, e, apesar dos assassinatos, dos roubos, da
loucura, das evocações sinistras, vinha da casa das almas julgando babalaôs, babaloxás, mãesde-santo e feiticeiros os arquitetos de uma religião completa. Que fazem esses negros mais do
que fizeram todas as religiões conhecidas?
O culto precisa de mentiras e de dinheiro. Todos os cultos mentem e absorvem dinheiro. Os
que nos desvendaram os segredos e a maquinação morreram. Os africanos também matam.
E eu, perdoando o crime desse sacerdócio mina, que se impõe e vive regaladamente, tive
vontade de ir entregar Antônio negro e a dormir à casa de Ojô, para que nunca mais
desvendasse a ninguém o sinistro segredo da casa das almas.

João do Rio - 1° Parte










OS NOVOS FEITIÇOS DE SANIN

Pois seja! disse Antônio, tomando coragem. V. S. pode ir, mas não cuspa, não fume e não
coma nessa casa. Eu não vou.
- Acompanhas-me até a porta?
- Até à esquina. Ficarei de alcatéia. Sanin e Ojô são capazes de me acabar com a vida.
A vida de Antônio é uma vida, sob todos os títulos, preciosa, e naquele momento ainda o
era mais, porque a sustentava eu. Refleti e concordei.
- Está direito, ficas à esquina.
Chovia a cântaros. Antônio, sem guarda-chuvas, metido num capote que lhe ia até aos pés,
acendia constantemente um charuto, que apagava.
- Mas, que é esse Sanin, afinal?
- Um feiticeiro danado!
- Mas babaloxá, babalaô, traficante?.
- Babalaô, não senhor. Para ser babalaô é preciso muita coisa. Só de noviciado, leva-se
muito tempo, anos a fio, e a cerimônia é dificílima. Quando um iniciado quer ser babalaô, tem
que levar ao babalaô que o sagra, dois cabritos pretos, duas galinhas d'Angola, duas galinhas
da terra, dois patos, dois pombos, dois bagres, duas preás, um quilo de limo, um ori, um pedaço
de ossum, um pedaço de giz, dois gansos, dois galos, uma esteira, dois caramujos e uma
porção de penas de papagaio encarnadas.
- É difícil.
- E não é tudo. Tem que levar também um quilo de sabão-da-costa, que se chama ochê-iluaiê, e não entra para o ibodoiffá ou quarto dos santos sem estar de roupa nova e levar na
algibeira pelo menos 200$OOO. O futuro babalaô fica sete dias no ibodô, onde não entra
ninguém para não ver o segredo.
- O segredo?
- O segredo é um ovo de papagaio. V. S. já viu um ovo de papagaio? Nunca! É difícil. E
quem vê um ovo desses, arrisca-se a ficar cego. O ovo em africano chama-se éiu, o papagaio
odidé. É o ovo que guardam dentro de uma cuia ou ybadu. O iniciado fica inteiramente nu,
senta-se na esteira, e o velho babalaô indaga se é de seu gosto fazer o iffa. Se a resposta for
afirmativa, lavam-se quarenta e dois caroços de dendê com diversas ervas, e nessa água o
babalaô novo toma banho.
Depois raspa-se-lhe a carapinha, guardando-a para o grande despacho, pinta-se-lhe o
crânio com giz e faz-se a matança.
- Todos os animais?
- Todos caem ao golpe das navalhas afiadas, o sangue enche os alguidares, escorre pela
casa, mas ninguém sabe, porque lá dentro, de vivos, só há os dois babalaôs e o acólito. O
primeiro sacrifício é para exu. Mistura-se o sangue do galo com tabatinga, forma-se um boneco
recheado com os pés, o fígado, o coração e a cabeça dos bichos; metem-se em forma de olhos,
nariz e boca, quatro búzios e está feito o exu. Em seguida esfaqueiam-se os outros bichos,
sacrificando aos iffá. O novo babalaô recebe na cabeça um pouco desse sangue, o acólito ou
ogibanam amarra-lhe na testa uma pena de papagaio com linha preta e, assim pronto, o novo
matemático fica seis dias aprendendo a prática de alguns feitiços temíveis e rezando aos odu
jilá.

Os iffá são dezesseis: - eidi-obé, ojécu-meigi, jori-meigi, uri-meigi, ôrosê-meigi, nani-meigi,
obará-meigi, ocairá-meigi, egundá-meigi, osé-meigi, oturá-meigi, oreté-meigi, icá-meigi, eturáfanmeigi, achemeigi e ogio-ofum. No fim dos sete dias juntam-se os ossos, as cabeças, os pés dos
animais com os restos de comida, a pena de papagaio do jovem professo, as ervas dos serviços
anteriores, coloca-se tudo num alguidar para jogar onde o opelé disser, no mar, num lago, em
qualquer rio. O iniciado é quem leva o alguidar, sem perder a razão, e canta no trajeto três
cantigas...
Estávamos no largo do Capim. A chuva era tanta que nos obrigara a recolher a um
botequim qualquer, e Antônio, já sentado, bebendo vinho do Porto e acendendo pela trigésima
vez a horrenda ponta do seu charuto, preparava-se para entoar as maviosas cantigas. Chegou
mesmo a perpetrar uma, a segunda, a mais curta.
O-ché-yturá a narê praquê
Abá gun-nem-gum gebo
Oury ôcú ou-myn-nan
Essé ouxy-cá gô-xê-nan ló nan.
Esta apavorada oração significa: sabão-da-Costa serve para resguardar-se a gente do rei
que come urubu e limo-da-costa. Nós, se comermos limo ou urubu pelo pé, hoje mesmo
morreremos. Ele não defende filho como filho.
- Mas, o Sanin?
- V. S. não quer aprender mesmo? Deixe o Sanin. Está chovendo tanto!
- O Sanin é ou não um sábio?
- É malandro.
- Ainda melhor.
Quando saí, de dentro do botequim, Antônio esticou a mão.
- Orum-my-lá ború ybó, ye, ybó, ybó, xixé!
Negro amável!! Com aquele seu gesto sacerdotal dizia-me:
- Satisfaça ao Deus que faz tudo e tudo entorta, amém!
Abri o guarda-chuva e respondi já de longe.
- Ybó-xixé!
Sanin mora agora na casa do famoso Ojô, o diretor social da feitiçaria. A casa de Ojô fica
na rua dos Andradas, quase no começo, com um aspecto pobre e um cheiro desagradável.
Quando batemos, a chuva rufava em torno um barulho ensurdecedor. Não nos responderam.
Batemos de novo. Alguém decerto nos espiava. Afinal abriu-se a rótula e uma mulher apareceu.
- Baba Sanin?
- Não está.
- Venho mandado por um conhecido. Sem receio.
- A casa é de Emanuel...
- Ojô, sei bem. Foi o Miguel Pequeno que me mandou. Abre.
De novo a rótula fechou. A mulher ia consultar, mas não demorou muito que voltasse
abrindo de esguelha e dizendo misteriosamente.
- Entre.
A sala tinha areia no assoalho, os móveis consertados indicavam que Ojô vive bem. Numa
cadeira um fato branco engomado, e mais longe o chapéu de palha atestava a presença do
feiticeiro.
- Então Sanin?
- Vem já.
Pouco tempo depois apareceu Sanin, de blusa azul e gorro vermelho, o tipo clássico do
mina desaparecido, andando meio de lado, com o olhar desconfiado. O pobre-diabo vive
assustado com a polícia, com os jornais, com os agentes. Para o seu cérebro restrito de
africano, desde que chegou, o Rio passa por transformações fantásticas. É um malandro,
orgulhoso do feitiço e com um medo danado da cadeia. Fora decerto quase à força que
aparecera, e só muito lentamente o pavor o deixou falar.

- Baba Sanin, o Miguel Pequeno mandou-me aqui para um negócio muito grave. Baba tem
uns feitiços novos.
- Não tem...
- Eu sei que tem. Abri a carteira, uma carteira de efeito, como usam os homens da praça,
enorme, com fechos de prata. Não tenha medo. Se o Baba não me faz o trabalho, estou
perdido. É a minha última esperança.
- Que trabalho?
Revolvi as notas da carteira, devagar, para mostrá-las, tirei um papelzinho e
misteriosamente murmurei:
- Aqui tem o nome dela...
Na cara do feiticeiro deslizou um sorriso diabólico:
- Aha! Aha... Está bom.
- Sanin, eu tenho fé nos santos, mas os outros feiticeiros não dão volta ao negócio.
- Você vai acabar. Olhe, pode contar...
Tudo neste mundo é esperança de dinheiro, de felicidade, de paz, e tanto vive de
esperança o feiticeiro que a dá como as pobres criaturas que com ele a vão procurar.
Sanin começou a falar dos feitiços dos outros, lembrou-se dos seus aos bocados, e em
pouco, com a esperança de ganhar mais, fazia-me revelações.
Cada feiticeiro tem feitiços próprios. Abubaca Caolho, o alcoólico da rua do Resende, tem o
ibá, cuia com pimenta-da-costa e ervas para fazer mal. Quando se fala do ibá, diz-se
simplesmente: o feitiço do Abubaca. Gia, cabeça de pato com lesmas e o cabelo da pessoa, é
uma descoberta de Ojô e serve para enlouquecer. Quem quer enlouquecer o próximo, arranja
ou falsifica a obra de Ojô.
- Mas Baba Sanin, como é que sabe tudo isso?...
- Então, não aprendi? Eu sei tudo.
E como sabe tudo, dá-me receitas. Fico sabendo, sem pasmo, sentado numa cadeira, que
giba de camelo com corpo de macaco e um cabrito preto em ervas matam a gente e que esta
descoberta é do celebrado João Alabá, negro rico e sabichão da rua Barão de S. Félix, 76. Não
é tudo. Sanin faz-me vagarosamente dar a volta ao armazém do feitiço. Eu tomo notas curiosas
dessa medicina moral e física.
Para matar, ainda há outros processos. O malandrão Bonifácio da Piedade acaba um
cidadão pacato apenas com cuspo, sobejos e treze orações; João Alabá conseguirá matar a
cidade com um porco, um carneiro, um bode, um galo preto, um jaboti e a roupa das criaturas,
auxiliado apenas por dois negros nus com o tessubá, rosário, na mão, à hora da meia-noite;
pipocas, braço de menino, pimenta-malagueta e pé-de-anjo arrancados ao cemitério matam em
três dias; dois jabotis e dois caramujos, dois abis, dois orobós e terra de defunto sob sete
orações que demorem sete minutos chamando sete vezes a pessoa, é a receita do Emídio para
expedir desta vida os inimigos..
Há feitiços para tudo. Sobejo de cavalo com ervas e duas orações, segundo Alufá Ginja,
produz ataques histéricos; um par de meias com o rastro da pessoa, ervas e duas orações, tudo
dentro de uma garrafa, fá-la perder a tramontana; cabelo de defunto, unhas, pimenta-da-costa e
ervas obrigam o indivíduo a suicidar-se; cabeças de cobras e de cágado, terra do cemitério e
caramujos atrasam a vida tal qual como os pombos com ervas daninhas, e não há como
pombas para fazer um homem andar para trás...
- Mas para dar sorte, caro tio?
- Há mão de anjo roubada ao cemitério em dia de sexta-feira.
- E para tornar um homem ladrão, por exemplo?
- Um rato, cabeça de gato, ervas, o nome da pessoa e orações.
- E para fazer um casal brigar?
- Cabeça de macaco, aranha e uma faca nova.
- E para amarrá-los por toda a vida?
O negro pensou, olhando-me fixamente:
- Um obi, um orobô, unhas dos pés e das mãos, pestanas e lesmas...
- Tudo isso?

- Preparado por mim.
Então Sanin fala-me dos seus feitiços. Sanin é poeta e é fantasista.
Sob a dependência de Ojô, quase seu escravo, esse negro forte, de quarenta anos, trouxe
do centro da África a capacidade poética daquela gente de miolos torrados, as últimas
novidades da fantasia feiticeira. Para conquistar, Sanin tem um breve, que se põe ao pescoço.
O breve contém dois tiras, uma cabeça de pavão e um colibri tudo colorido e brilhante; para
amar eternamente, cabeças de rola em saquinhos de veludo; para apagar a saudade, pedras
roxas do mar.
Quando lhe pagam para que torne um homem judeu errante, o preto prepara cabeças de
coelho, a presteza assustada; pombos pretos, a dor; ervas do campo, e enterra em frente à
porta do novo Ashaverus; quando pretende prender para sempre uma mulher, faz um breve de
essências que o apaixonado sacode ao avistá-la. Sanin é também mau - mas de maneira
interessante.
Os seus trabalhos de morte são os mais difíceis. Sanin ao meio-dia levanta no terreiro uma
vara e reza. Pouco tempo depois sai da vara um maribondo e o maribondo parte, vai procurar a
vítima, e não pára enquanto não lhe inocula a morte.
O maribondo é vulgar à vista do boto vivo metido dentro de uma caveira humana; em
presença do feitiço do morcego, a asa que roça e mata, a raposa e o lenço, e eu o fui encontrar
pondo em execução o maior feitiço: baiacu de espinho com ovo de jacaré - que é o babalaô da
água, baiacu que faz secar e inchar à vontade das rezas e domina as almas para todo o sempre.
Mas por que você, um homem tão poderoso, não me queria receber?
- Por que andam a falar de nós, porque a polícia vem aí. Fizemos outro dia até um
despacho no campo de Santana com os dentes, os olhos de um carneiro, jabotis, ervas e duas
orações para quem fala de nós deixar de falar.
- Mas por que um carneiro?
- Porque o carneiro morre calado. Foi o Antônio Mina quem fez o despacho e todos nós
rezamos de bruços e todos nós demos para o despacho, que custou cento e oitenta e três mil
reis.
Então eu apanhei o meu chapéu, apertei a mão do fantasista Sanin.
- Pois fez mal, Baba, fez muito mal em dar o seu dinheiro, porque quem fala de vocês sou
eu.
E como o negro aterrado abrisse a boca enorme, eu abri a carteira e o convenci de que
todas as suas fantasias, arrancadas ao sertão da África, não valem o prazer de as vender bem.
Dinheiro, mortes, e infâmia as bases desse templo formidável do feitiço!

A IGREJA POSITIVISTA

O amor por principio
E a ordem por base.
O progresso por fim.
Era domingo, à porta do templo da Humanidade, na rua Benjamim Constant.
Com o céu luminosamente azul e o sol tépido, havia muita concorrência nessa rua, de
ordinário deserta: - senhoras, cavalheiros de sobrecasaca, militares, crianças. Uns subiam logo
as escadas do templo, cuja fachada recorda um templo grego; outros mais íntimos, seguiam
para o fundo, pelo lado direito. Teixeira Mendes fazia a sua prédica dominical.
Tínhamos ido a conversar com um velho positivista. A princípio ele anunciara um profundo
desprezo pela frivolidade jornalística e a imprensa. Mas depois, como eu risse sem rancor,
permitiu-se levar-me até a Igreja e foi tão bondoso que ali estávamos, tagarelando de coisas
superiores, enquanto ao templo continuava a afluir a onda de fardas, de senhoras e de
cavalheiros solenes.
- Não é possível negar a influência positivista na nossa política, sobre os brasileiros cultos,
ia eu dizendo, mas o público..
- Os jornais...
- ... o grande público não compreende e irrita-se. O meu amigo pode falar de Spencer, de   Kant, de outros filósofos. Passa por erudito e é respeitado. Basta, porém, falar de Comte para
que o tomem por um esquisitão e perguntem injuriosamente se essa é a religião de Clotilde de
Vaux.
- É natural. É a gentinha que não conhece o culto, adulterado por espíritos anárquicos. Mas
você vê que os honestos já começam a compreender a doce religião que submeteu a
inteligência ao sentimento.
- Tem-lhes custado.
- O positivismo tem quarenta anos de propaganda no Brasil. Em 1864, o Dr. Barreto de
Aragão publicava urna aritmética dando a hierarquia científica de Comte e o Dr. Brandão
escrevia a Escravidão no Brasil. Foram esses os primeiros livros positivistas, hoje quase
desconhecidos. Depois é que o positivismo começou a ser falado entre matemáticos e que os
professores da Central e da Escola Militar deram em citar a Astronomia e o primeiro volume da
Filosofia.
- Era o tempo em que se considerava a Política um livro ímpio...
- Ainda não se fizera sentir a necessidade de dispensar os serviços provisórios de Deus. O
caráter religioso do positivismo não era conhecido. Isso não impediu que Benjamim Constant,
fazendo concurso na Escola Militar, declarasse ser positivista ortodoxo e republicano, e que o
próprio Benjamim, com os Drs. Oliveira Guimarães e Abreu Lima, constituísse o núcleo dos
ortodoxos em 1872.
- A influência foi nula... - interrompi eu, olhando uma senhora loura que entrava com o
catecismo encadernado em veludo verde.
- Nada se perde. Oliveira Guimarães deixou um discípulo, Oscar de Araújo; Benjamim levou
às escolas a palavra religiosa do mestre, regenerou o ensino da matemática e foi o primeiro
brasileiro que teve no seu quarto o retrato de Clotilde de Vaux. Os trabalhos adotados na Escola
Militar são quase todos de discípulos seus. No meio inteligente desses últimos surgiram
Raimundo e Miguel Lemos; era um momento de agitação. Pereira Barreto publicava o 1.º
volume da obra As três filosofias, e tanto Miguel como Teixeira Mendes eram litréistas,
considerando a parte religiosa de Comte como obra de louco.
Foi com eles que Oliveira Guimarães fez aliança para fundar a biblioteca positivista e abrir
cursos científicos.
- Era a filosofia da Academia...
- Sem jardins. O começo do positivismo no Brasil é absolutamente acadêmico. Em 1876 a
Escola de Medicina manifestou-se com a tese Da Nutrição, de Ribeiro de Mendonça, e a
primeira sociedade positivista foi feita de professores ortodoxos e de estudantes litréistas.
- Seria curioso saber como estes mudaram.
- As pequenas causas têm às vezes grandes efeitos. Uma censura ao diretor da escola
motivou serem suspensos, por dois anos, Teixeira Mendes e Miguel Lemos, que foram para a
Europa; e enquanto só, Benjamim propagava aqui, os dois em Paris litréizavam. Mendes veio o
mesmo, achando o Comte da Política maluco. Miguel ficou, e lá, sponte sua, abandonou Littré e
relacionou-se com Laffite.
- E converteu-se?
- A 4 de julho de 1879.
Solenemente, o meu amigo positivista apanhava sol. Levei-o com carinho para o jardim,
onde devia florir o bosque sagrado com as sepulturas dos homens dignos. Não havia bosques,
nem sepulturas. Apenas algumas árvores. O positivista acendeu o cigarro, depois de o fazer
com um forte fumo Rio Novo. Eu perguntei pasmado:
- Toma café?
Ele riu.
- Como toda a gente! Essa história de não tomar café e não fumar é apenas uma léria.
Então você pensa que Augusto Comte imaginasse, de mau, fazer o mundo deixar o café e o
fumo, só para arruinar o Brasil? O fato é outro. O grande filósofo não fumava nem bebia
excitantes, porque lhe faziam mal; Miguel Lemos, doente como é, não se atira a esses
excessos; Teixeira Mendes, um homem que reflete dezesseis horas a fio, não se pode dar aos
devaneios da fumaça... Não há proibições formais para o horrendo vício; há apenas medo...
Puxei com vigor uma baforada.
- A propaganda desapareceu com a estada de Miguel Lemos em Paris?

 - Não. A sociedade passou a chamar-se Sociedade Positivista do Rio de Janeiro, sendo
aclamado presidente o Dr. Ribeiro de Mendonça, que se filiou a Laffite:
- Começou a era do lafitismo...
- E com excesso. Concorríamos até pecuniariamente para o subsídio sacerdotal da igreja
em Paris. Lemos influiu de tal modo sobre Teixeira Mendes, que pouco tempo depois este
também se convertia. Foi, ligada a Laffite, que a nossa igreja iniciou as comemorações de
caráter religioso com a festa de Camões em 1886; que se comemorou o 22.º passamento de
Comte e a festa da Humanidade; e é dessa época que data a primeira procissão cívica no Rio
de Janeiro, com andores e o busto de Camões esculpido por Almeida Reis.
- Quando Miguel voltou, aspirante ao Apostolado, as reuniões tornaram-se regulares aos
domingos, na rua do Carmo, n.
0 14, e Ferreira de Araújo abriu uma seção na Gazeta com o título
Centro Positivista, cujo primeiro artigo dava a teoria científica do calendário. Em 1881, já
presidente Miguel Lemos, o Centro passou para a rua Nova do Ouvidor, as exposições da
religião tornaram-se regulares, e Raimundo fez no Liceu um curso do catecismo, interrompido
pelas suas célebres conferências de antigo litréista contra o sofisma de Littré.
- Era a prosperidade.
- Nesse ano, em que se comemorou a Tomada da Bastilha, Lemos foi a São Paulo, fez
nove conferências, fundou uma filial com Ferreira Souto, Carvalho de Mendonça, Oliveira
Marcondes, Godofredo Martins e Silva Jardim, e as intervenções do Centro na nossa vida
política acentuaram-se contra a imoralidade da colonização chinesa, traçando o programa do
candidato positivista, protestando contra as loterias, exigindo o registro civil, a abolição, opondose às universidades...
- Já nesse tempo?
- Os artigos foram publicados na Gazeta de Notícias e fizeram que o imperador se
opusesse à idéia, aconselhando ao ministro que reformasse o ensino por outro qualquer meio
que não fosse as universidades.
O meu velho amigo andou alguns passos pelo futuro bosque sagrado. Acompanhei-o.
Ouvia-se lá dentro o som múltiplo de uma orquestra. Raros retardatários entravam.
- Neste ano também, continuou com calma, uma circular instituiu o subsídio sacerdotal, o
que deu lugar à retirada de Benjamim Constant, e foram conferidos os primeiros sacramentos
aos filhos de Miguel Lemos, Teixeira Mendes e do Dr. Coelho Barreto.
- Hoje esses sacramentos são comuns?
- Como os do matrimônio, em grande número.
- A ruptura com Laffite deu-se logo depois?
- Em 1883. Lemos ficou o único responsável do positivismo no Brasil, continuando a ingerirse na vida pública da sua pátria.
- Mas este templo como foi feito?
- O Apostolado deixou a sede da rua Nova do Ouvidor para a rua do Lavradio. A mudança
determinou o lançamento de um empréstimo em 1891 para a construção do templo, no que
muito concorreram Pereira Reis, Otero, Rufino de Almeida, Décio Vilares. A inauguração foi em
1894, e a igreja custou 250 contos.
- É mais uma prova da importância do Centro no regime republicano.
- A nossa intervenção no início da República foi de primeira ordem. Basta citar a Bandeira
Nacional, a separação da Igreja do Estado, a liberdade dos professores, a reforma do código no
caso da tutela de filhos menores.
- O Centro também tem uma casa em Paris?
O semblante do positivista anuviou-se.
- Sim, a casa em que morreu Clotilde. Foi comprada por 70 mil francos. É triste. Em Paris
não estavam preparados para compreender Teixeira Mendes. Era tarde para a campanha... Mas
venha ver a nossa tipografia.
Caminhamos com intimidade pela avenida estreita. De vez em quando ouvia-se o som de
uma voz acre. Era a prédica.
A tipografia fica embaixo, correspondendo a toda a extensão da nave em cima. É completa.
Pergunto respeitoso o número de publicações dessa oficina.
- As obras de maior valor são o Ano sem Par, a Biografia de Benjamim Constant, a Visita  aos Lugares Santos do Positivismo, a Química Positiva, as Últimas Concepções de A. Comte
(onde se acha a teoria dos números sagrados), todas obras de Raimundo Mendes. A publicação
de folhetos é talvez superior a 600.
- Mas os subescritores são muitos?
- São suficientes. A Igreja do Brasil tem recebido também auxílios de Londres.
O pavimento embaixo não é só ocupado pela tipografia. Há também o gabinete luxuoso de
Miguel Lemos e a sala Daniel Encontre, onde Teixeira Mendes expõe aos jovens discípulos da
humanidade, e a quem quiser ouvi-lo, as sete ciências. Ouvem-no lentes de academias e
professores notáveis.
- É grande o número de positivistas?
- No Brasil os ortodoxos devem ser uns 700. Os simpáticos não se podem mais contar. As
gerações que saem da nossa Escola Militar são quase que compostas de simpáticos.
- E a influência moral aumenta?
O positivista confessou com tristeza.
- Vai-se tornando fraca. Não se admire. Será por fraqueza dos apóstolos? Será porque o
público se afasta da realidade, corrompido moralmente? O fato é patente. Ainda há pouco o
privilégio funerário foi uma campanha perdida... Mas entremos.
Com o chapéu na mão, nós entramos. Havia luxo e conforto. De um lado a secretária, onde
se vendem as obras editadas pela igreja, de outro, a sala onde está a escada para o coro, com
orquestra e uma rica biblioteca de carvalho lavrada. Degraus atapetados dão acesso à nave.
O templo da humanidade é lindo. Ao alto, junto ao teto correm janelas que arejam o
ambiente. Todo pintado de verde-mar, está-se dentro como num suave banho de esperança.
Sentam-se os homens na nave, que tem catorze capelas; - colunas de pau negro sustentando
em portais abertos bustos esculturados por Décio Vilares. Os bustos representam os meses do
calendário: Moisés ou Teocracia inicial, Homero, Aristóteles, Arquimedes ou a poesia, filosofia
e a ciência antiga; César ou a civilização militar; São Paulo, ou o catolicismo; Carlos Magno ou a
civilização feudal: Dante, Gutenberg, Shakespeare, Descartes, Frederico Bichat, ou a epopéia, a
indústria, o drama, a filosofia, a política, a ciência moderna, e Heloisa, a santa entre as santas,
que fica na última capela, voltando o seu semblante magoado para a porta.
Na capela-mor, rica de tapetes e de madeiras esculpidas, há uma cátedra, onde se senta
Teixeira Mendes com as vestes sacerdotais negras debruadas de verde. Por trás fica um busto
de bronze de A. Comte, e, dominando toda a sala, o quadro de carvalho lavrado com letras de
ouro, de onde surge a figura delicada de Clotilde, a humanidade simbolizada por Décio numa
das suas miríficas atmosferas sonhadoras.
A voz de Raimundo corre com a continuidade de uma queda de águas; na nave cheia
cintilam galões e lunetas graves; na capela-mor, senhoras ouvem com atenção essa palavra,
que não deixa de ser demolidora.
- Que é positivismo? sussurro eu, sentando-me.
- É uma religião que respeita as religiões passadas e substitui a revelação pela
demonstração. Nasceu da ruptura do catolicismo e da evolução científica do século XVII para
cá. De Maistre dizia que o catolicismo ia passar por muitas transformações para ligar a ciência
a religião. Comte descobriu a lei dos três estados, a chave da sociologia, e quando era o grande
filósofo, Clotilde apareceu e ensinou que a inteligência é apenas o ministro do coração.
Agir por afeição,
Pensar para agir.
Comte proclamou que o homem e a mulher se completam sob o tríplice aspecto:
sentimento, inteligência e atividade. A religião divide-se em Culto, Dogma e Regime, o que vem
a ser bem amar, bem conhecer e bem servir a humanidade, o Grande Ser, o conjunto das
gerações passadas e futuras pela geração presente. A existência do Grande Ser está ligada à
terra, o Grande-Fetiche, e ao espaço, o Grande Meio...
- Mas quantas senhoras!
- As mulheres devem amar o positivismo. Comte dignificou-as. A mulher é a força
moderadora, o sentimento puro do amor que faz a sociabilidade, é a sacerdotiza espontânea da

Humanidade que modifica pela afeição o orgulho vão e o reino da força: a mulher é a
humildade, o fogo do culto no lar, é Beatriz, é Clotilde, é Heloisa, mãe, esposa e filha, a
Veneração, a Doçura e o Bem. As mulheres deviam ser todas positivistas.
Enquanto o meu amigo assim falava, Raimundo Mendes, do alto da cátedra, relampejava.
Na catadupa das palavras faltavam rr, havia repetições do pensamento, de frases, mas na
explicação cultual, de repente, inconoclastamente, o azorrague partia contra os fatos, contra a
anarquia atual: e um esto de amor, de amor indizível, de amor pela Vida, subia, como um
incensório, à alma das mulheres.
Fiquei enlevado a ouvi-lo. Esse mesmo homem, puro como um cristal, que tem o saber nas
mãos, eu já o vira uma vez, de manhã, carregando com dignidade um embrulho de carvão...
As mulheres sorriam; em toda a translúcida claridade parecia vibrar a alma do grande
filósofo terno e bom, e do alto, Clotilde, a Humanidade, abria como um lírio a graça suave do
seu lábio.

OS MARONITAS

O povo maronita, dizia o papa Benedito, é como uma flor entre os espinhos. Se o pontífice
notável tinha esta doce frase para pintar os homens do monte Líbano, os que lhe sucederam
guardaram tão perfumada imagem, e hoje, quando se fala dos maronitas, logo se recorda a flor
e os espinhos antigos. Tudo, porém, neste mundo tem o vinco fatal do destino. A frase dos
papas tornou-se profética e através da vida imensa, os de Marun continuam a perfumar a crença
impoluta entre os espinhos das hostilidades.
Os maronitas, gente extremamente religiosa, habitam a Síria e descendem dos Aramilas,
filhos de Aram, de Sem, de Noé.
Ascendência tão digna de respeito só os preparou para um longo e pungente sofrer. Desde
os tempos dos Apóstolos, dizem os Atos no versículo 22 do capítulo XV, eram cristãos,
conservando a fé ortodoxa havida do príncipe dos Apóstolos no ano 38 da era de Jesus Cristo.
Quando no quarto século começaram a aparecer no Oriente as heresias e as doutrinas falsas,
protegidas pelos soberanos coroados de pedrarias, impostas pelas armas, e a fé e a soberania
ao mesmo tempo vacilavam, S. Marun, chefe dos eremitas da Síria, saiu de sua toca de cilícios
e orações e veio salvá-los.
- Quem é esse homem de grandes barbas, meio roto? indagavam os homens, vendo a
figura ressurgida do santo sem pecado.
S. Marun não respondia; seguia pelas estradas cheias de sol, na atmosfera de milagre do
azul sem mancha, e pregava a doutrina pura, exortava o povo a conservar a sua verdadeira fé.
- Acredita sempre em Deus, tal qual te ensinaram os Apóstolos, e conservarás a tua
liberdade!
A gente, que dos seus lábios ouvia as palavras ungidas pela meditação contínua, seguia
num novo esplendor de crença, em cada coração a esperança brotava, e em pouco tempo o
povo da província do monte Líbano era chamado maronita. Os heresiarcas quiseram caluniá-lo,
mas Marun era puro como o cristal. S. João Crisóstomo, o boca-d'oiro, na carta que lhe
escrevia, rogava que por ele orasse, e a ironia como a calúnia fenderam-se de encontro ao seu
broquel de bondade.
Quando a sua alma irradiou, deixando o invólucro terreno, o povo maronita tinha inabalável
a crença para suportar todas as sangrentas perseguições, e tem sido desde então o mesmo
ordeiro e persistente auxiliar da obra divina.
Durante as cruzadas combateu ao lado dos cristãos contra os ímpios. Ao aproximarem-se
os exércitos, desciam da montanha, alimentavam e vestiam os cruzados nus e com fome.
Sempre que os turcos entravam sedentos de sangue pelo seu território, sofriam como mártires o
sacrifício sem protestar. O ódio do Maometano seguia-os, entretanto, na vida simples e
indolente dos mosteiros. Em 1860 os druzos, povo pagão e feroz, recordando velhos ódios
religiosos, atiraram-se subitamente sobre os pobres maronitas, traídos e abandonados.
A carnificina foi horrenda. A França então, sempre benevolente para os cristãos do Oriente,
mandou uma esquadra às águas do Levante, forçando o Turco a modificar o governo do Líbano
e a dar-lhe uma certa autonomia. Desde essa época o governo é cristão nomeado pelas sete
grandes potências européias, a câmara dos representantes faz-se por eleição livre e o chefe da
policia deve ser cristão. O chefe da polícia em todos os povos do Oriente representa um papel  formidável.
Extremamente religiosos, os maronitas dependem civil, militar e religiosamente, em
qualquer parte em que se achem, dos sacerdotes, e a hierarquia da sua igreja compõe-se de um
prelado, com o título de Patriarca de Antióquia e de todo o Oriente, de doze bispos diretores de
doze dioceses e de um número infindável de sacerdotes inteligentes e bons.
A intervenção européia, entretanto, espalhou pelo mundo a flor pontifícia. A imigração
esvazia aos poucos o Líbano. Não se pode viver com farturas em terras tão antigas, as
autoridades conservam a influência aterradora do Sultão. Os que primeiro saíram, com os
ortodoxos e outros crentes de Jesus, escreveram chamando os que ficavam, a perspicácia
maometana facilitou a emigração para enfraquecer os libertos da sua prepotência e os
maronitas vêm para os Estados Unidos, para a Argenúna, para o Brasil, num lento êxodo...
Nós temos uma considerável pétala da celebrada flor. Uma das nossas maiores colônias
hoje é incontestavelmente a colônia síria. Há oitenta mil sírios no Brasil, dos quais cinqüenta mil
maronitas. Só o Rio de Janeiro possui para mais de cinco mil.
Quando os primeiros apareceram aqui, há cerca de vinte anos, o povo julgava-os
antropófagos, hostilizava-os e na província muitos fugiram corridos à pedra. Até hoje quase
ninguém os separa desse qualificativo geral e deprimente de turcos. Eles, todos os que
aparecem, são turcos!
Os sírios, arrastados na sua imensa necessidade de amizade e amparo, davam com a
muralha de uma língua estranha, num país que os não suportava. Agremiaram-se, fizeram vida
à parte e, como a colônia aumentava, foram por aí, mascates a crédito, fiando a toda a gente,
montaram botequins, armarinhos, fizeram-se negociantes. Quem os amparou? Ninguém! Só,
por um acaso, Ferreira de Araújo, o Mestre admirável, escreveu defendendo-os. Os sacerdotes
maronitas respeitam-lhe a memória, e na data da sua morte rezam-lhe missas por alma,
guardando delicadamente uma gratidão duradoura.
No mais, a hostilidade, os espinhos da frase papal.
Há nessa gente operários hábeis, médicos, doutores, homens instruídos que discutem com
clareza questões de política internacional, jornalistas e até oradores. A vida é dura, porém;
jornalistas e doutores vendem alfinetes e linhas em casas pouco claras da rua da Alfândega, do
Senhor dos Passos, do Núncio e dos subúrbios. A totalidade ainda ignora o português!
Conversei com alguns maronitas, sempre de uma amabilidade penetrante. Um deles,
dando-me a satisfação da sua prosa torrencial, falou como um estrategista da guerra russojaponesa. Esse homem não falava, redigia um artigo de jornal com a retórica empolada que fez
a delícia dos nossos pais e ainda hoje é a força do jornalismo dogmático. Eu ouvia-o de lábios
entreabertos.
- Se a justiça de Deus não desapareceu, se a vida humana decorre dos desejos da
divindade, é possível crer que os japoneses possam vencer?
- Oh! não!
Eu respondera, como no teatro, mas estava interessado por esses organismos simples,
criados na chama de uma crença inabalável, desses românticos do Oriente.
Todos são feitos de exagero, de entusiasmo, de amor e de ilusão. Os dois jornais sírios têm
os títulos simbólicos e extremos: - A Justiça, A Razão. Os homens naturalmente perdem o limite
do natural. Numa outra casa em que sou recebido, um gordo cavalheiro preocupa-se com o
problema da colonização.
- A colonização síria, diz, é a melhor para o Brasil. Os brasileiros ainda não a
compreenderam. O sírio não é só o comerciante, é também agricultor, operário. Desprezamnos? Este país não vê que conosco, povo tranqüilo e dócil, não poderia haver complicações
diplomáticas? Os espanhóis, os portugueses, os italianos enriquecem, partem, pedem
indenizações. Nós, pobres de nós! não pedimos nada, queremos ser apenas do Brasil.
Não respondo. Talvez bem cedo os sírios sejam assimilados à família heterogênea da
nossa pátria. Estas criaturas têm qualidades muito parecidas com as dos brasileiros.
Vários negociantes que comigo discutem, porque os sírios discutem sempre, são como
jornais retóricos e brandos; diziam naturalmente:
- No Amazonas perdi há pouco 400 contos. A colônia síria teve na baixa do café um
prejuízo de 70 mil contos. As últimas remessas de fazendas elevam-se a 200 contos.
A princípio eu os acreditei um bando de Vanderbilts, falando com desprendimento do ouro e  das riquezas. Mas não. Um sacerdote amigo nos desfaz o sonho. Há fortunas restritas. A totalidade porém tem relações com o alto comércio, compra a crédito para vender a crédito aos
mercadores ambulantes do interior e às vezes a situação complica-se, quando lhes falta o
pagamento dos últimos, tudo por causa do exagero, a mania de aparentar riqueza. Cada
cérebro oriental tem um Potosi nas circunvoluções.
- Os sírios chegam, ganham dois mil réis por dia e já estão contentes. Nunca serão
verdadeiramente ricos, porque aparentam ter oito quando apenas têm dois.
Este feitio os há de fazer compreendidos dos brasileiros.
Mas os maronitas, sob a proteção do velho santo austero, são essencialmente bons, de
uma bondade à flor da pele, que se desfaz em gentilezas ao primeiro contacto com um
bombom. Os homens falam sempre, as mulheres olham com os seus líquidos olhos insondáveis
e por todas essas casas, há, inseparável da vida, o mistério da religião, no amor que as
mulheres, algumas inefavelmente belas, proporcionam, nos negócios, nas idéias e nas
refeições. Quando um maronita enferma, a primeira coisa que faz é chamar um padre para se
confessar; quando um negócio vai mal, aconselha-se com o sacerdote, só casa pelo seu rito, o
único verdadeiro, e trabalhando para viver, funda irmandades, colégios e pensa em edificar
capelas.
De 1900 data a fundação da Irmandade Maronita, posterior a outras duas que se
desfizeram. Foram sócios fundadores: Dieb Aical, Arsanius Mandur Galep Toyam, Seba Preod
Curi, Miguel Carmo, Acle Miguel, João Facad, Antonio Nicobá, Antonio Kairur, Bichara Bueri,
Gabriel Ranie, Salbab, José Chalhub e Bichara Duer. Brevemente abrirá as suas portas o
colégio dos Jovens Sírios.
Apesar da permissão para dizer missa em todas as igrejas católicas e de celebrarem aos
domingos na Saúde e em Cascadura, já compraram o terreno na rua do Senhor dos Passos
para edificar a capela maronita, e a propaganda se faz mesmo entre os sírios ortodoxos e
maometanos, porque uma ordem do Papa lhes indica que pela bondade façam voltar à crença
única as ovelhas tresmalhadas.
Atualmente há três padres maronitas em São Paulo e quatro no Rio, os Revs. Pedro
Abigaedi, Pedro Zaghi, Luiz Trah e Luiz Chediak. Andam todos de barba cerrada, usam óculos e
são suavemente eruditos. Trah, por exemplo, esteve oito anos na Bélgica e discursa como um
regato tranqüilo; Chediak é professor, e cada palavra sua vem repassada de doçura. É sabido
que a reconciliação dos maronitas com a igreja romana data de 1182. A reconciliação foi
incompleta a princípio, mas hoje é quase integral. Os padres, podendo casar, abandonam essa
idéia; há o maior respeito pelo Sumo Pontífice, e a política do Vaticano consegue aos poucos
outras reformas.
Como os padres me levassem a ver o terreno donde a igreja maronita surgirá, interrogueios a respeito do rito da sua seita.
- É quase idêntico ao romano, dizem-me. A liturgia é redigida em siríaco. É uma
necessidade. Há sírios que sabem de cor o sacrifício da missa. Talvez o mesmo não aconteça
numa igreja romana, que conserva o latim.
- A começar pelos sacristãos.
- Há além disso as missas privadas, a regra é a de Santo Antônio e seguimos o
martirológio de S. Marun.
- Dizem que os maronitas foram a princípio monotelistas...
- Dizem tanta coisa no mundo!
Eles tinham parado diante de uns velhos muros.
- Será aqui a igreja?
- Querendo Deus!
E não sei porque, vendo-os tão simples diante das paredes carcomidas, esses sacerdotes
de um povo religiosamente bom, eu recordei a frase profética dos papas. O povo maronita é
como uma flor entre espinhos, mas uma flor cujo viço é eterno. Os espinhos continuam
persistentes mas a velha flor espalha-se pelo mundo, recendendo a mais doce ternura e a mais
profunda crença...

OS FISIÓLATRAS


Quando resolvi interrogar o hierofante Magnus Sondhal, sabia da fisiolatria o que os
prosélitos deixavam entrever em artigos de jornal cheios de nomes arrevezados e nos
comunicados, nos copiosos comunicados trazidos aos diários por homens apressados e
radiantes. Pelos artigos ficara imaginando a fisiolatria um conjunto de positivismo, ocultismo e
socialismo; pelos comunicados vira que os fisiólatras, quase todos doutores, criavam
cooperativas e academias. Entretanto o Sr. Magnus Sondhal certa vez à porta de um café
definira para meu espanto a sua religião.
- A fisiolatria não é um culto no sentido vulgar da palavra, mas uma verdadeira cultura
mental. É, antes, a sistematização racional do processo espontâneo da educação dos seres
vivos, donde resultaram todas as aptidões, mesmo físicas e fisiológicas, respectivamente
adquiridas.
Pus as mãos na cabeça assombrado. Magnus tossiu, revirou os olhos azuis.
- A fisiolatria baseia-se, como toda a reforma sociocrático-libertária, na sistematização da
lógica universal ou natural que o hierofonte + SUN intitula ortologia.
- Ortologia? fiz sem compreender.
- Do grego orthos, logos - reta razão.
A religião também é chamada ortolatria, ou verdadeira cultura, como ortodoxia significa
verdadeira doutrina. Os fisiólatras pretendem fazer uma remodelação de todas as coisas
humanas, não limitando a sua ação à modificação dos conceitos.
- Mas o remodelamento geral é possível?
Sondhal sorriu com calma:
- Nós somos onibondosos, oniscientes e onipotentes.
- Os atributos de Deus.
- Nós nos intitulamos os verdadeiros deuses. A reforma abrange as opiniões, os
costumes, o Homem e a própria Terra.
Arregalei os olhos, pus o pé bem firme no chão, passei o lenço trêmulo na fronte e olhei
os verdadeiros deuses. Para o que falava, envolto na sobrecasaca, com uma barbinha rala e o
nariz ao vento, escavoquei a religião do ideal divino e não lhe achei comparação. O outro torcia
um bigode sensual por cima do lábio rosado.
- Com que então deuses? Dera-me de repente a vontade de ser também onisciente e
onipotente. Mas que é preciso para eu ser também?
- A propaganda toma um cunho secreto. Os aspirantes à Ortologia têm de passar pela
iniciação esotérica, que custa, além das provas morais, quinhentos mil réis em moeda corrente.
Era relativamente barato, e eu pensava em fazer uma redução shilockeana, quando
Magnus começou a desdobrar a beleza útil da vida fisiólatra.
A iniciação dá entrada na Universidade Ortológica resumida no hierofante, a qual se
intitula Maçonaria + Católica. A Maçonaria Católica divide-se em lojas, cujo conjunto, em três
graus, constitui o respectivo templo. Os aspirantes representam as lojas, o templo só pode ser
representado pelo hierofante ou por um areopagita.
- Onde esse templo?
- Os fisiólatras, os que praticam a magia ortológica, não precisam de local determinado.
São os novos homens, fazem excursões pelos prados, montes e lagos em Fraterias Estéticas,
Filosóficas ou Ortológicas, conforme o grau do ludâmbulos.
- Ludâmbulos?
- Uma palavra da língua universal!
- O volapuck? O esperanto?
- Não, uma língua inventada por mim, o Al-tá.
- Mas que vem a ser o Al-tá?
- Aplicando a Ortologia (ou Lógica Universal) aos fatos da Linguagem, verifica-se que os
elementos fonéticos, sons e entonações (ou consoantes e vogais) são por toda a parte
idênticos. Deduz-se que são oriundos das mesmas impressões e resultantes das mesmas
aptidões expressionais. Colocando em sínese, descobre-se que os sons, que exprimem
relações, formam uma escala semitonal, como a da música, e composta de treze notas, ou
graves primárias como todas as escalas, aliás: - U (grave fundamental) A (dominante e geratriz)
e I (sensível superior) estabelecem todas as relações sinésicas:
U A I (e U)
Gênese Megaforema Metaforema
Origem Crescimento Transformaçio
Passado Presente Futuro
Corpo Espaço Movimento
Sentir Pensar Agir
Opressio Libertaçio Aspiraçao
Escuro Amarelo Rubro e Branco
etc. etc. etc.
Quanto às Entonações, essas formam três teclas, donde três escalas, também, analógicas
mas distintas:
H (Geratriz)
TECLA GUTURAL TECLA DENTAL TECLA LABIAL
Metafonias Metafonias Metafonias
K (Chave) T (Chave) P (Chave)
G (guê) D B
Ch R F
J r (brando) V
- L -
- Lh -
- S -
- Z -
- N -
- Nh M
Aplicando a Sínese ortológica às Teclas orais, como se fez relativamente aos Sons,
temos:
TECLA GUTURAL TECLA DENTAL TECLA LABIAL
Gênese Megaforema Metaforema
Objetivo Subjetivo Ativo
Eidonomia Eimologia Ergonomia
e
Erostergia
Detalhando, enfim, o valor fracional dos fonemas em geral, obtém-se, por dedução lógica,
a expressão natural; - de qualquer espécie de impressão: - sensacional, emocional ou acional...
e a Língua Universal está, enfim, racionalmente instituída.
Exemplo perfunctório:
K é a raiz de Corpo, concreto, etc.
A significa o atual e ação,
donde:
Ativo: K A - O Corpo que se apresenta e se move.
e

Passivo: A K - O Corpo que é impelido ou sofre a ação.
M é o símbolo do sentir e agir, donde:
Passivo A M=Eu=amo=sou...
e
Ativo: M A=Mu=mover=mãe, mulher... criar.
Eu não compreendera muito bem, não compreendera mesmo nada. Magnus Sondhal
porém foi íntimo e educador.
- Vou dar-lhe alguns nomes esotéricos dos iniciados da Maçonaria Católica. Sobem a
milhares, além de alguns que foram condenados ao olvido, ao au-tá...
Fez uma pausa, depois como quem se confessa:
- Eu devo dizer esotericamente, o espírito que preside à Propaganda da Razão. A minha
emancipação de Ortólogo, vai a um extremo inacessível para a totalidade dos homens coevos.
Por isso, tudo que eu faço toma o aspecto joco-sério, desde o deboche até o sagrado, desde a
Orgia até o Culto da Natureza!... De fato estou exterminando pelo ridículo todas as velhas e
caducas crenças e instituições e todos os preconceitos, mesmo científicos e filosóficos! Em mim
a Consciência superior, a dignidade e a nobreza destruíram por completo toda espécie de
Veneração, Respeito ou Tolerância!... Mas, voltemos aos nomes esotéricos.
Todo Iniciado na Maçonaria Católica toma um Nome, por sua própria escolha, em
substituição ao nome, sem sentido, que lhe deram seus pais Gorilhas. Esse novo Nome é a
síntese de seu verdadeiro Ideal ou Aspiração superior para o Progresso. Em torno desse novo
Símbolo o Iniciado constrói a sua nova Existência Subjetiva, isto é, o seu KARMA. Quem souber
identificar-se com o seu Nome de Regenerado, está, ipso facto, isento de toda e qualquer
perturbação subjetiva, causada habitualmente pelos ataques malévolos da Canalha humana.
Mas a adoção voluntária do novo Nome é, além disso, um ato belamente revolucionário, e um
protesto solene contra todas as velharias e convenções hipócritas e perversivas. Quem
escolheu o seu próprio NOME, também rompeu, ipso facto, com todas as imposições e
Imposturas que tendam a tiranizar a sua Vontade e tolher a sua Liberdade de Indivíduo!... Mil
outros motivos há que advogam esse Rito da Adoção.
- Os nomes esotéricos! supliquei, vendo que se eternizava num misterioso falar.
Ele sentou-se com um papel e um lápis.
- Antes de tudo, é preciso conhecer o esquema da figura da Lei Universal, ou Ciclo da
Matéria, donde se deduz a Ortologia, ou a Sabedoria Universal.
Diante daquele lápis hostil, tremi.
- Os nomes sem figuras, Magnus.
Ele coçou a ponta do nariz.
- Ei-los:
SUN, nome do HIEROFONTE (+) atual; Significa: - sol no NADIR, ou Sol posto e, por extensão,
Luz Invisível, isto é, Sol subjetivo.
Etimologia: - S ... símbolo de Fonte e de Brilho em sua máxima intensidade e, portanto,
símbolo de SOL; - N... . símbolo de infinito e indefinido, de espaço e de espírito, portanto:
num ponto indefinido do Espaço. A quer dizer: presente, ou visível, donde SAN - Sol acima
da horizonte visual. I significa o que está para vir e o que sobe, donde SIN - o Sol que vai
nascer ou nascituro. U quer dizer o que está embaixo, donde - SUN o Sol no Nadir.
BLUM-SAN-UR - A Flor que o Sol gerou. Nome de um Areopagita, cujo símbolo é a cruz.
AM-VA - Viver para o Amor. Nome de outro Areopagita em São Paulo.
UN-AN - O espírito de Origem, engerador. Nome de outro Areopagita, em Minas.
GVAM-IL - Viver, Amar e ser Livre. Nome de um iniciado do 2.º grau.
AL-GAI - Aquele que quer que todos folguem. Nome de um cientista bom e inteligente. Iniciado
do 2.º grau.
VAR-UN - A vida que palpita imperceptivelmente no seio da Matéria. Nome de um distinto
iniciado do 1.º grau.
SIR-US - O Filho da Aurora Boreal. Nome de um companheiro dedicadíssimo que propulsionou
a Propaganda da Razão no Estado do Paraná.
GAM-AR - Aquele que vai alegrar-se e folgar agindo com entusiasmo pela Regeneração  Humana.
Um instante calamo-nos. O hierofante Sun limpava o suor. Mas dentro em pouco
continuou a falar.
- Temos, disse, idealizados quatro templos para serem erigidos no centro de cada uma
das quatro partes em que dividimos a terra. Os templos chamam-se os templos da Razão.
Também em épocas que todos chamam das grandes transformações, os homens deram
templos à Razão encarnada.
- Há muita gente iniciada? indaguei, afundando em amargas comparações históricas.
- Muita. Só agora, porém, é que a iniciação deixou de ser grátis. Não imagina como
progredimos.
Há quatro ou cinco anos que em Minas Gerais se fazem festas sociolátricas. As
peripatéias ou excursões cultuais são comuns em todos os Estados, máxime no Paraná.
- E aqui?
- Vamos entre as árvores discutindo e conversando.
Platão! Aristóteles! Jesus! Dellile! Procurei acalmar o meu estado nervoso. Assistira à
missa-negra, vivera entre os negros orixalás, que sobre o opelê dizem a vida da gente, ouvira os
espíritas, o ocultistas, os gnósticos católicos. Essa reforma desorganizava-me.
- Mas isso tudo foi inventado pelo senhor?
- Foi.
- E desde quando pensa na reforma?
- Desde a idade de cinco anos, em que aprendia a ler sozinho. Só porém em 1884 é que
cheguei aos resultados práticos em Cataguazes.
- É brasileiro?
- Descendente de islandeses, os verdadeiros descobridores da América.
Recolhi meditando a questão. Aquele homem que aprendera a ler com tenções de
reformar a sociedade, a ortologia, as peripatéias, a reforma da terra - tudo isso assustava.
Refleti entretanto. Magnus era um vasto saber, calmo e prático, formado em Cabala, tendo
viajado o mundo inteiro.
Se apenas nessa qualidade dissesse ter inventado o motocontínuo nas asas das
borboletas, eu, deplorando-o, levá-lo-ia ao hospício. Mas Sondhal inventara uma religião, a
religião que é o bálsamo das almas, uma religião brasileira, e, como Jesus à beira do lago
Tiberíade, ensinava aos iniciados à beira da lagoa Rodrigo de Freitas e da lagoa dos Patos. Era
mais um profeta, venerei-o; e assim fazendo quis saber quem comigo o venerava. A fisiolatria é
uma religião de doutores; numa lista de 200 ortólogos, sessenta por cento são bacharéis.
As listas são feitas com pompa, e em cada uma eu li: - Drs. Toledo de Loiola, Tavares
Bastos, Jango Fischer, Flávio de Moura, Luís Caetano de Oliveira, Antônio Ribeiro da Silva
Braga, Adolfo Gomes de Albuquerque, Floripes Rosas Júnior, José Vicente Valentim, Ulisses
Faro, Barbosa Rodrigues Júnior... Uma série interminável de bacharéis!
Tantos doutores devem assegurar a doutrina doutíssima. Fui então procurar o hierofante
no seu templo, que tem percorrido várias casas na Cidade Nova. Magnus Sondhal recebeu-me
com o seu inalterável sorriso e o seu inalterável pince-nez.
- Há tantos doutores na sua religião, hierofante, que eu a considero.
- Pois, ergonte, uma das idéias da minha religião é acabar com os doutores!
Sentamo-nos divinamente e eu o interroguei:
- A sua religião tem qualquer coisa de positivismo?
- Fui apóstolo da Humanidade seis anos. Só depois é que comecei a propaganda da
União Universal, a princípio com um filósofo dinamarquês, depois com os Drs. Adolfo de
Albuquerque, Silva Braga e outros Areopagistas. A fisiolatria transforma as palavras e
expressões das outras línguas, transformando as instituições humanas existentes e inexistentes
em fatos positivos. Os fenômenos sobrenaturais tornam-se até sensíveis.
- A reforma é então geral?
- Até no vestuário. Acredita o senhor que no futuro continuaremos a usar sobrecasasa?
Pois, não!
As roupas dos ergontes serão determinadas pelas estações do ano com um cunho  simbólico e as cores tiradas da figura universal. No verão, por exemplo, 1.ª estação, macrofísica
e que representa o dia da vida, usar-se-ão as três cores fundamentais; no outono, 2.ª estação, a
tarde da vida, cores sombrias; no inverno, 3.ª estação, microfísica, a noite da vida, roupas
negras, e na primavera, a 4.ª estação, roupas brancas para corresponder ao albor da
existência...
- Muito poético. As nossas casacas passarão a ser empregadas apenas nos bailes de
máscaras, como fantasias de gosto. Também, que seria do vestido de Maria Stuart se não fosse
o carnaval? Consolemo-nos com a homenagem dos futuros ergontes!
Enquanto essas loucuras eram ditas, Magnus Sondhal sorria.
- Uma religião tão nova deve ter o seu custo especial.
- Tem, com efeito: o kratu, ou culto público, e a magia, ou culto íntimo.
O kratu tem um quadro sinótico.
Ei-lo:
KARMA
(ou: - a Criação e Transformação Eterna, geradas e contempladas pelo Amor).
__________________________ _______________________
KOSMOS ONTOS | ETOS
| e
| ESTETOS
____________________________
EIDONOMIA E EIMOLOGIA | ERGONOMIA
| e
| EROSTERGIA
1.º Grau 2.º Grau 3.º Grau
__________________________ _______________________
FISIOLATRIA
__________________________ ___________________________
IDOLATRIA BIOLATRIA PSICOLATRIA
--------------- ---------------------- --------------------------
1.º Dia SOL Fecundação Sentir Amor
2.º Dia LUA Gestação Conceber Sabedoria
3.º Dia TERRA Procriação Construir Poesia
4.º Dia MAR Nutrição Mecânica Sensualismo
5.º Dia AR Respiração Química Vitalismo
6.º Dia CÉU Lhômição Al-Químia Animismo
7.º Dia NOITE Subjetivação Hiper-Químia Idealismo
---------------- ----------------------- -------------------------
Donde REFLEXÃO... CONSCIÊNCIA... MAGIA

A palavra MAGIA é empregada no sentido de sua etimologia Altaíca, isto é, derivada de
MAC - Força ou Ação e I - sobre ou para o Futuro. Representa o estado superior da Vida, em
que o Espírito ou a Razão dirige a Força Inconsciente.
A magia começa a revelar-se nas próprias iniciações maçônicas pela adoção de um nome
esotérico que liberta das más influências. Só eu a posso empregar, porque sou o único a
conhecer a hiperquímica ortológica, ou as leis naturais das influências psíquicas.
A hiperquímica, de hyper e da língua universal kim, que significa a parte invisível e
indestrutível da matéria, tem duas ciências preliminares: a alquimia, ou tratado da reação das   matérias em estado das correntes puras, e a químia. O princípio alquímico é que a matéria é
una, vive, evolui e se transforma. O princípio unitário Lhôma entra como causa em todas as
reações e por ele se explicam o fenômeno microfísico das funções cerebrais, a função das
imagens interiores e a influência da moral sobre o físico.
Mas tudo isso está nos nossos livros: - A Reforma Sociocrática e a maior evolução do
mundo, o Catecismo Ortológico a Arte de Enriquecer ou extinção do pauperismo pela instituição
da plutometria em substituição à plutocracia, a Explicação de Deus ao Papa, a Pré-história
segundo a Ortologia e outros volumes. O essencial acha-se porém num livro manuscrito, que
não se imprime: - o Catecismo Esotérico.
Depois paternalmente o hierofante disse:
- Venha hoje ver uma sessão de magia. Nós comemoramos a morte de um iniciado. O
templo é uma sala, mas é de dever deduzi-lo da figura da Lei Universal ou Al-Miz: ao norte a loja
azul, ou do 1.º grau; a este a loja amarela, ou do 2.º grau; ao sul a loja rubra, ou do 3.º grau; a
oeste o dumma, ou sala negra, no canto o templo ou empíreo. O dumma e o empíreo significam
o branco e o negro, dois elementos antitéticos do Binário Universal... Venha às 11½.
Eu fui. Era uma noite úmida, de chuva, no dia 5 de agosto. O iniciado que morrera, meu
amigo, um gênio musical, passara pela vida agarrado a todas as fantasias. Eu fui e delirei
tranqüilamente. Tínhamos combinado estar na pensão de Sondhal. Quando lá cheguei,
encontrei treze homens de chapelão desabado e manto negro. Pareciam conspiradores. Abri o
manto de um deles e vi que estava forrado de seda roxa; abri o de outro, também, e todos
tinham varinhas na mão, onde brilhavam ametistas, a pedra da magia! Reparei então que o
hierofante era um deles.
- De que é feita essa bagueta? inquiri.
- De uma liga metálica que é um segredo alquímico! respondeu uma voz. E com o
hierofante à frente, todos deslizaram pelo corredor escuro. Eu os seguia como a sombra dos
seus mantos. De repente, pararam a um sinal seco e eu retive um grito. Na extremidade
superior do cetro do hierofante, começava a bruxulear uma luz fosforescente.
- Meu Deus!
- Cala-te, é a luz física, e o au-lis!
Todos os magos ergueram verticalmente as baguetas estendendo o braço direito para o
ar, e na extremidade de cada uma, como uma misteriosa gambiarra de vagalumes, o au-lis
acendia a sua fulguração indizível. Nas copas dos chapéus dos magos vibrava o telegormo, que
transmite as palavras pensadas.
A luz porém cessou, as varas abateram-se e os treze saíram para a rua como simples
transeuntes.
No curto trajeto do hotel à sala do templo, eu tive a impressão de um ser à parte num
mundo à parte, e quando cavamente a porta se fechou num cavo rebôo e subimos aos tropeços
as escadas, pareceu-me cair outra vez, na amada vida. A luz reaparecera.
Na sala, cheia dessa luz, o hierofante subiu os três degraus do altar, voltou-se para os
magos, deu na ara três pancadas e falou. Era a prece da Evocação. Agarrei-me a um portal,
tremendo. Com toda a solenidade o homem foi ao outro canto e fez a segunda prece, a
Invocação. Depois, voltado para o oriente disse a Efusão. Terminado que foi, sentou-se. Reparei
então que havia um estrado e em cada canto sentavam-se quatro magos.
- Aquele estrado? fiz num sopro.
- É o palco dos Fantasmas, ou lig-ôma!
De novo três pancadas bateram. O hierofante, em pé, fez um gesto sagrado, colocando a
mão esquerda sobre o coração, fonte do Viver e do Sentir, e a direita, ou da ação, na fronte,
centro psíquico. Depois um gesto para o ar e para a fronte indicou o porvir e o ideal.
Todos os magos bradaram:
- Au-ár! An-ár!
E a voz do hierofante abriu na treva:
- "Pobre e triste humanidade de mortos!... Pressentiste o poder da alma humana, e
inventaste a invocação, o culto e a prece!... Mas, a quem te dirigias tu? - As ficções impotentes!
"Não conhecias a matéria no seu estado unitário de Lhôma, embora teus grandes filósofos
chegassem quase a determinar sua existência.

"Que era o culto do Lhôma na Pérsia antiga e o do Sôma, na Índia, senão o grande
vislumbre da grande magia fisiolátrica!...
"Mas agora o Universo nos está revelado, em todas as suas maravilhosas manifestações:
- aquímicas, químicas e hiperquímicas!...
"Pelo Cérebro, abalamos o Lhôma, que penetra toda a Matéria orgânica ou inorgânica!...
"E o Cérebro é um universo microfísico, onde os átomos valem os astros do espaço
sideral!...
"E lá dentro do crânio há luz, por que é do Lhôma tenebroso que, por toda parte, ela se
gera?...
"Que mais pode surpreender ao Ortólogo?!... Onde pode haver um canto no Universo que
sua Vontade não penetre?!... Onde um Ser ou Fato que sua Microtagia não desvende?!...
"Homens mortos!... Vítimas da Feitiçaria teolátrica e da negra magia das forças brutas e
inconscientes da Matéria!... Sede eternamente malditos!... Mostrai-vos ali! no palco dos
fantasmas, em toda nudez do vosso hediondo Sofrimento!..."
Eu bati os dentes com um frio que traspassava os ossos. A luz acendia de vez em
quando, e naquele estrado, onde os espíritos mais deviam estar, eu via o vazio, o vazio horrível,
o vazio doloroso.
- "Surgi. Vós também, ó Heróis do Bem - continuara o mago - que vivereis eternamente,
impulsionando os Progressos que só a Razão inspira!
"Ei-los!...
Eis os quadros da vida humana!... torpe, miserável!...
"Quem é aquele sublime LIC-UR, cercado de Amores e de Harmonias, e cuja presença de
Luz dissipa e dissolve os tenebrosos e estúpidos NUROS corruptores?!...
"É o SAN-A'R...
"Ei-lo, sorridente e vitorioso!... vitorioso da própria Morte!
"Ei-lo sublime que nos aponta o Futuro, onde fulgura também a nossa suprema Vitória!
"Assim como ele anulou a corrupção dos Mortos, nos quadros telefênicos do Espaço
sideral, nós também anularemos a corrupção dos Vivos decadentes, que são de mais na
superfície do Planeta'
De mais! os que são de mais! eu ali dentro estava de mais! Então abri a porta, saí,
olhando para trás, aterrado do san-ár; dos nuros, desci agarrado aos balaústres da escada e
quando sentei na soleira da porta, fatigado, com o cérebro vazio, senti que suava e que me
ardiam as faces.
No outro dia encontrei o fisiólatra Magnus acompanhado de vários iniciados.
- Vou fundar uma Universidade no Liceu de Artes e Ofícios. Não deixe de ir assistir às
conferências preparatórias.
- Mas ontem, ontem que fizeram vocês?
Houve uma pausa.
- Meditamos até de manhã à beira da Sabedoria para que a Sabedoria viesse.
E Magnus Sondhal, com um volume de Nietzsche debaixo do braço, seguiu com os
iniciados pela rua a fora, como se fosse um ser natural...

O MOVIMENTO EVANGÉLICO
A IGREJA FLUMINENSE

A Igreja Fluminense data de 1858. Foi a primeira congregação evangélica estabelecida no
Brasil, graças ao espírito de um homem rico e feliz.
O Sr. Robert Reid Kalley trabalhava na ilha da Madeira, quando, em 1855, lembrou-se de
vir ao Rio de Janeiro. Era escocês, médico, ministro evangélico e possuía bens da fortuna. Ao
deixar o clima delicioso da ilha por esta cidade, naquele tempo foco de algumas moléstias
terríveis, não o enviava nenhum board estrangeiro, vinha espontaneamente apenas por amor do
evangelho de Jesus Cristo.
O Brasil sempre foi um centro de reunião de colônias diversas praticando as suas crenças  com a mais inteira liberdade.
Entre a prática da religião, porém, e a pregação à grande massa vai uma diferença radical.
Robert Kalley vinha para uma monarquia católica, em que a Igreja era um desdobramento do
Estado; aportara a uma terra em que cada data festiva fazia repicar no ar os sinos das catedrais
e desdobrava por sobre a cidade os pálios e as sedas roxas dos paramentos sacros; vinha
pregar ao povo, amante de procissões, que rojava na poeira das ruas quando passavam as
imagens seguidas de soldados. E Kalley veio e pregou contra os pálios, contra as imagens e
contra o povo a rojar, escudado na doce crença de Jesus...
Íamos os dois, eu e o Rev. Marques, pelo asfalto do campo da Aclamação. Muito cedo
ainda, os pássaros cantavam indiferentes ao bulício da grande praça, e eu, cada vez mais
encantado, ia a ouvir tão suave conversa.
Era o diletantismo da evangelização.
- Era o conforto moral que a religião dá. Se até hoje os nossos evangelizadores são
apedrejados, se nos fecham as igrejas, imagine a impressão do protestante naquele tempo.
Kalley, o ousado capaz de afirmar meia dúzia de idéias desconhecidas, teve uma série
infindável de inimigos.
- O protestante! Que recordação de épocas históricas. Carlos IX, os huguenotes, o êxodo
para a América, o horror das imagens...
- Os populares naquele tempo não admitiam o funcionamento regular, com entrada franca,
das igrejas evangélicas. KalIey, três anos depois da sua chegada, fundava sem bulha, com
alguns adeptos, o primeiro templo evangélico, que chamou Fluminense.
- Há temperamentos de missionários. Kalley era um desses. Olhe que podia viver muito
bem na Escócia, à beira dos lagos, entre os verdes lindos dos vales. Preferiu a nossa cidade de
há meio século, bárbara, feia, cheia de calor; esteve vinte anos no Rio, e só voltou à pátria
quando teve a certeza de deixar uma igreja completamente organizada.
- E deixou?
- Ao partir, em 1876, a igreja tinha uns cem membros, havia um pastor substituto, João
Manuel Gonçalves dos Santos, eram presbíteros Francisco da Gama, Francisco da Silva Jardim
e Bernardo Guilherme da Silva e diáconos João Severo de Carvalho, Antônio Soares de
Oliveira, Manuel Antônio Pires de Melo, José Antônio Dias França, Manuel Joaquim Rodrigues,
Manuel José da Silva Viana e Antônio Vieira de Andrade. O esforço fora recompensado.
Frutificara a semente, e já outras igrejas iam nascendo.
- A Igreja Fluminense tem muitas filiais?
- Tem. Há outras Igrejas organizadas por ela, e a essas seria mais apropriado chamar
igrejas congregacionais. São essas a de Niterói, cujo pastor é o Rev. Leônidas da Silva, e que
possui um belo edifício na rua da Praia, tendo cerca de cem membros; a de Pernambuco, a de
Passa-Três, a de São José de Bonjardim e a que eu pastoreio no Encantado, organizada a 10
de maio, com 56 membros.
Antônio Marques terminara a sua frase com tal carinho que o interrompi:
- Vejo que ama o seu rebanho!
- Não há melhor!... gente simples, boa, capaz de ouvir a palavra do Senhor...
Fez uma pausa, sorriu.
- Devo-lhe dizer que essas igrejas têm também as suas missões. Só a de Passa-Três tem
no Cipó, no Arrozal de São João Batista e em toda a zona mais próxima do Estado do Rio.
- A Igreja Fluminense é só de nacionais?
- É a única no Brasil que não tem proteção estrangeira, que vive dos seus próprios
recursos apenas; - é o completo atestado do nosso esforço moral. Já educou três jovens para o
mistério, sustenta três missionários, acabou de construir um templo e, apesar disso, ainda o ano
passado teve no seu "budget" um saldo de oito contos. Sendo nacional, recebe entretanto na
sua comunhão pessoas de ambos os sexos crentes em Cristo.
- E tem uma escola?
- Tem duas: a dominical, de leitura bíblica, e uma outra diária para as crianças, dirigida
pelo Sr. Joaquim Alves e D. Carlota Pires. A característica da igreja é a evangelização da
cidade, uma evangelização que vai de porta em porta, levando auxílios, carinhos, paz moral. Há
a Sociedade de Evangelização, a União Bíblica Auxiliadora de Moços, a União das Senhoras, a
União das Moças, das Crianças... Os templos congregacionais também têm idênticas  sociedades.
No Encantado, além de duas outras, nós, que estamos em caminho de ter um templo,
vamos organizar agora o Esforço Cristão Juvenil.
- Mas uma evangelização assim constante?
- Os rapazes distribuem folhetos, fazem a expedição pelo Correio, vão de porta em porta
com subscrições para mandar companheiros estudar na Europa. Eu lhe posso citar os nomes de
João Menezes, Isaac Gonçalves, Luiz Fernandes Braga, Antônio Maria de Oliveira... São tantos!
E todos brasileiros.
Havia na voz do pastor um justo orgulho. Eu emudeci um instante, acompanhando-o.
Nesta cidade de comércio, em que o dinheiro parece o único deus, homens moços e fortes
pregam a bondade de porta em porta, como os pobrezinhos pedem pão! Ou eu delirava, ou
aquele cavalheiro calmo, de redingote de alpaca, dava-me o favo da ilusão, como outrora Platão
entre árvores mais belas e discípulos mais argutos.
- A igreja tem hoje um patrimônio grande? - fiz com o desejo de voltar à realidade.
- Sempre aumentado, mas regulado ainda pelos estatutos de 1886, aprovados pelo
governo imperial, quando ministro o Barão Homem de Melo. O patrimônio criado com donativos
e legados consiste em prédios e títulos da dívida pública. A administração é eleita anualmente
dentre os membros da igreja, compõe-se de um presidente, dois secretários, um tesoureiro e um
procurador, que têm a seu cargo representar a igreja em todos os seus negócios. Deus tem
abençoado a nossa obra.
- As igrejas evangélicas abundam entre nós, pastor. Falam-me agora numa seita, os
miguelistas, que dizem ter Jesus Cristo voltado ao mundo, encarnado no Dr. Miguel Vieira
Ferreira...
- As verdadeiras igrejas evangélicas do Rio são a Fluminense, a Metodista, a
Presbiteriana, a Batista e a Episcopal para os ingleses e os alemães. Nós propriamente, filhos
da Fluminense, somos congregacionistas.
A religião é uma só, havendo apenas diferença no ritual e na forma do governo
eclesiástico.
O nosso governo é congregacionista, composto de pastor, presbítero e diáconos.
Atualmente na Igreja Fluminense o pastor é Gonçalves dos Santos, os presbíteros José Novais,
José Fernandes Braga e Gonçalves Lopes, os diáconos Antônio de Assunção, Guilherme Tâner,
José Valença e José Martins.
- Há uma tal subdivisão de ritos entre os evangelistas.
- Nós nos regulamos por 28 artigos de fé. Cremos na existência de um Deus, na trindade
de pessoas, na divindade de Jesus Cristo, na sua encarnação, nascendo de Maria e sendo
verdadeiro Deus e homem.
Estávamos à esquina da rua Floriano Peixoto. Verdadeiro homem! Ia perguntar,
aprofundar a intenção da frase. O pastor, porém, continuava.
- A Bíblia foi escrita por inspiração divina.
- Não há dúvida.
- Só acreditamos em doutrinas que por ela possam ser provadas. E por isso cremos na
imortalidade da alma, na vida futura, na punição eterna dos que não pensam em Jesus, na
ressurreição dos mortos, no julgamento do tribunal de Deus.
Antônio Marques parara defronte da igreja, um casarão que tem em letras grandes este
apelo convidativo. - Vinde e vede!
- Custou muito?
- Uns setenta contos.
- E o pastor ainda é o substituto de Kelley?
- Ainda. Conhece-o?
- É um ancião de maneiras secas.
- Oh! tem-se esforçado tanto. Há vinte e sete anos que trabalha sem cessar. Foi a Londres
estudar o ministério, voltou e nunca mais nos deixou. É o mais antigo ministro evangélico do
Brasil, e hoje os seus sessenta e dois anos curvam-se a um trabalho insano. Entre; hoje é o dia
da comunhão.
Entrei. Uma sombra tranqüila aquietava-se na sala. Os ruídos de fora, da alegria  movimentada da rua, chegavam apagados. No coro, nem viva alma; pelos bancos, alguns perfis
emergindo da sombra, muitos atentos e calmos; ao fundo, em derredor de uma mesa onde
havia garrafas e pratos de prata, vários senhores. E naquela paz vozes cantavam:
Disposta a mesa, ó Salvador,
Vem presidir aqui,
Ministra o vinho, parte o pão
Tipos, Jesus, de ti!
Depois, no silêncio que se fizera, o pastor disse:
- Bendito Deus! e a prece evoluía-se direta, pedindo para que se retificasse o fato em
memória da morte de Cristo. Era a consagração.
Gonçalves dos Santos tomou do pão e o partiu, os presbíteros foram pela sala com os
pratos lavrados de prata, onde branquejavam os pedaços do bolo sem fermento.
- Tomai isso e comei!
Sentei-me humilde no último banco. Como nos evangelhos, eu via os homens darem de
comer o pão de Deus, e darem a beber o sangue de Jesus. Era tocante, naquele mistério, na
paz da vasta sala, quase deserta. E, com gula, a cada um que eu seguia no gozo da suprema
felicidade, parecia-me ver o seu olhar, - o olhar, a janela da alma! - voltar-se para o céu na
certeza tranqüila de um repouso celeste.
Quando a cerimônia terminou, como um ruflo de asas brancas, de novo as vozes
sussurraram.
Eu trouxe a salvação
Dos altos céus louvor,
É livre o meu perdão,
É grande o meu amor.
- Que faz tão triste aí? - disse-me o pastor Antônio. - Aos moços quer Deus alegres! E eu
que lhe fora buscar uma Bíblia e o Cristão, o nosso jornalzinho! Venha falar ao pastor.
Ergui-me. Manuel Gonçalves dos Santos, com a sua barba alvadia e o seu duro olhar,
fitava-me.
Voltei do sonho para reflorir uma lisonja. Eu já o sabia um probo, praticando o ministério
sem remuneração de espécie alguma. Santos conservava-se de gelo. Falei da coesão das
igrejas, da propaganda, do evidente progresso do evangelismo no Brasil, com a sua simples
essência de fé, gabei o hospital que estão a concluir.
O pastor então discorreu. A única religião compatível com a nossa República é
exatamente o evangelismo cristão. Submete-se às leis, prega o casamento civil, obedece ao
código e é, pela sua pureza, um esteio moral. A propaganda torna cada vez mais clara essas
idéias, no espírito público aos poucos se cristaliza a nítida compreensão do dever religioso. Os
evangelistas serão muito brevemente uma força nacional, com chefes intelectuais, dispondo de
uma grande massa. E, de repente, com convicção, o velho reverendo concluiu:
- Havemos de ter muito breve na representação nacional um deputado evangelista.
Apertei a mão do mais antigo ministro evangélico do Brasil. Diante dos esforços que me
contara Antônio Marques, a minha alma se extasiara; durante a comunhão, vendo o grave grupo
beber o sangue de Jesus, eu sentira o bálsamo do sonho. Mas enquanto meus olhos olhavam
com inveja o outro lado da vida, a margem diamantina da Crença, o pastor sonhava com o
domínio temporal e a Câmara dos Deputados...
Eterna contradição humana, que não se explicará nunca, nem mesmo com o auxílio
daquele que no Apocalipse sonda o coração e os rins e anda entre sete candeeiros de ouro!
Eterna contradição, que cativa a alma de uns e faz as religiões triunfarem através dos
séculos!

Revolução dos Cravos