segunda-feira, 18 de março de 2013

João do Rio - 1° Parte










OS NOVOS FEITIÇOS DE SANIN

Pois seja! disse Antônio, tomando coragem. V. S. pode ir, mas não cuspa, não fume e não
coma nessa casa. Eu não vou.
- Acompanhas-me até a porta?
- Até à esquina. Ficarei de alcatéia. Sanin e Ojô são capazes de me acabar com a vida.
A vida de Antônio é uma vida, sob todos os títulos, preciosa, e naquele momento ainda o
era mais, porque a sustentava eu. Refleti e concordei.
- Está direito, ficas à esquina.
Chovia a cântaros. Antônio, sem guarda-chuvas, metido num capote que lhe ia até aos pés,
acendia constantemente um charuto, que apagava.
- Mas, que é esse Sanin, afinal?
- Um feiticeiro danado!
- Mas babaloxá, babalaô, traficante?.
- Babalaô, não senhor. Para ser babalaô é preciso muita coisa. Só de noviciado, leva-se
muito tempo, anos a fio, e a cerimônia é dificílima. Quando um iniciado quer ser babalaô, tem
que levar ao babalaô que o sagra, dois cabritos pretos, duas galinhas d'Angola, duas galinhas
da terra, dois patos, dois pombos, dois bagres, duas preás, um quilo de limo, um ori, um pedaço
de ossum, um pedaço de giz, dois gansos, dois galos, uma esteira, dois caramujos e uma
porção de penas de papagaio encarnadas.
- É difícil.
- E não é tudo. Tem que levar também um quilo de sabão-da-costa, que se chama ochê-iluaiê, e não entra para o ibodoiffá ou quarto dos santos sem estar de roupa nova e levar na
algibeira pelo menos 200$OOO. O futuro babalaô fica sete dias no ibodô, onde não entra
ninguém para não ver o segredo.
- O segredo?
- O segredo é um ovo de papagaio. V. S. já viu um ovo de papagaio? Nunca! É difícil. E
quem vê um ovo desses, arrisca-se a ficar cego. O ovo em africano chama-se éiu, o papagaio
odidé. É o ovo que guardam dentro de uma cuia ou ybadu. O iniciado fica inteiramente nu,
senta-se na esteira, e o velho babalaô indaga se é de seu gosto fazer o iffa. Se a resposta for
afirmativa, lavam-se quarenta e dois caroços de dendê com diversas ervas, e nessa água o
babalaô novo toma banho.
Depois raspa-se-lhe a carapinha, guardando-a para o grande despacho, pinta-se-lhe o
crânio com giz e faz-se a matança.
- Todos os animais?
- Todos caem ao golpe das navalhas afiadas, o sangue enche os alguidares, escorre pela
casa, mas ninguém sabe, porque lá dentro, de vivos, só há os dois babalaôs e o acólito. O
primeiro sacrifício é para exu. Mistura-se o sangue do galo com tabatinga, forma-se um boneco
recheado com os pés, o fígado, o coração e a cabeça dos bichos; metem-se em forma de olhos,
nariz e boca, quatro búzios e está feito o exu. Em seguida esfaqueiam-se os outros bichos,
sacrificando aos iffá. O novo babalaô recebe na cabeça um pouco desse sangue, o acólito ou
ogibanam amarra-lhe na testa uma pena de papagaio com linha preta e, assim pronto, o novo
matemático fica seis dias aprendendo a prática de alguns feitiços temíveis e rezando aos odu
jilá.

Os iffá são dezesseis: - eidi-obé, ojécu-meigi, jori-meigi, uri-meigi, ôrosê-meigi, nani-meigi,
obará-meigi, ocairá-meigi, egundá-meigi, osé-meigi, oturá-meigi, oreté-meigi, icá-meigi, eturáfanmeigi, achemeigi e ogio-ofum. No fim dos sete dias juntam-se os ossos, as cabeças, os pés dos
animais com os restos de comida, a pena de papagaio do jovem professo, as ervas dos serviços
anteriores, coloca-se tudo num alguidar para jogar onde o opelé disser, no mar, num lago, em
qualquer rio. O iniciado é quem leva o alguidar, sem perder a razão, e canta no trajeto três
cantigas...
Estávamos no largo do Capim. A chuva era tanta que nos obrigara a recolher a um
botequim qualquer, e Antônio, já sentado, bebendo vinho do Porto e acendendo pela trigésima
vez a horrenda ponta do seu charuto, preparava-se para entoar as maviosas cantigas. Chegou
mesmo a perpetrar uma, a segunda, a mais curta.
O-ché-yturá a narê praquê
Abá gun-nem-gum gebo
Oury ôcú ou-myn-nan
Essé ouxy-cá gô-xê-nan ló nan.
Esta apavorada oração significa: sabão-da-Costa serve para resguardar-se a gente do rei
que come urubu e limo-da-costa. Nós, se comermos limo ou urubu pelo pé, hoje mesmo
morreremos. Ele não defende filho como filho.
- Mas, o Sanin?
- V. S. não quer aprender mesmo? Deixe o Sanin. Está chovendo tanto!
- O Sanin é ou não um sábio?
- É malandro.
- Ainda melhor.
Quando saí, de dentro do botequim, Antônio esticou a mão.
- Orum-my-lá ború ybó, ye, ybó, ybó, xixé!
Negro amável!! Com aquele seu gesto sacerdotal dizia-me:
- Satisfaça ao Deus que faz tudo e tudo entorta, amém!
Abri o guarda-chuva e respondi já de longe.
- Ybó-xixé!
Sanin mora agora na casa do famoso Ojô, o diretor social da feitiçaria. A casa de Ojô fica
na rua dos Andradas, quase no começo, com um aspecto pobre e um cheiro desagradável.
Quando batemos, a chuva rufava em torno um barulho ensurdecedor. Não nos responderam.
Batemos de novo. Alguém decerto nos espiava. Afinal abriu-se a rótula e uma mulher apareceu.
- Baba Sanin?
- Não está.
- Venho mandado por um conhecido. Sem receio.
- A casa é de Emanuel...
- Ojô, sei bem. Foi o Miguel Pequeno que me mandou. Abre.
De novo a rótula fechou. A mulher ia consultar, mas não demorou muito que voltasse
abrindo de esguelha e dizendo misteriosamente.
- Entre.
A sala tinha areia no assoalho, os móveis consertados indicavam que Ojô vive bem. Numa
cadeira um fato branco engomado, e mais longe o chapéu de palha atestava a presença do
feiticeiro.
- Então Sanin?
- Vem já.
Pouco tempo depois apareceu Sanin, de blusa azul e gorro vermelho, o tipo clássico do
mina desaparecido, andando meio de lado, com o olhar desconfiado. O pobre-diabo vive
assustado com a polícia, com os jornais, com os agentes. Para o seu cérebro restrito de
africano, desde que chegou, o Rio passa por transformações fantásticas. É um malandro,
orgulhoso do feitiço e com um medo danado da cadeia. Fora decerto quase à força que
aparecera, e só muito lentamente o pavor o deixou falar.

- Baba Sanin, o Miguel Pequeno mandou-me aqui para um negócio muito grave. Baba tem
uns feitiços novos.
- Não tem...
- Eu sei que tem. Abri a carteira, uma carteira de efeito, como usam os homens da praça,
enorme, com fechos de prata. Não tenha medo. Se o Baba não me faz o trabalho, estou
perdido. É a minha última esperança.
- Que trabalho?
Revolvi as notas da carteira, devagar, para mostrá-las, tirei um papelzinho e
misteriosamente murmurei:
- Aqui tem o nome dela...
Na cara do feiticeiro deslizou um sorriso diabólico:
- Aha! Aha... Está bom.
- Sanin, eu tenho fé nos santos, mas os outros feiticeiros não dão volta ao negócio.
- Você vai acabar. Olhe, pode contar...
Tudo neste mundo é esperança de dinheiro, de felicidade, de paz, e tanto vive de
esperança o feiticeiro que a dá como as pobres criaturas que com ele a vão procurar.
Sanin começou a falar dos feitiços dos outros, lembrou-se dos seus aos bocados, e em
pouco, com a esperança de ganhar mais, fazia-me revelações.
Cada feiticeiro tem feitiços próprios. Abubaca Caolho, o alcoólico da rua do Resende, tem o
ibá, cuia com pimenta-da-costa e ervas para fazer mal. Quando se fala do ibá, diz-se
simplesmente: o feitiço do Abubaca. Gia, cabeça de pato com lesmas e o cabelo da pessoa, é
uma descoberta de Ojô e serve para enlouquecer. Quem quer enlouquecer o próximo, arranja
ou falsifica a obra de Ojô.
- Mas Baba Sanin, como é que sabe tudo isso?...
- Então, não aprendi? Eu sei tudo.
E como sabe tudo, dá-me receitas. Fico sabendo, sem pasmo, sentado numa cadeira, que
giba de camelo com corpo de macaco e um cabrito preto em ervas matam a gente e que esta
descoberta é do celebrado João Alabá, negro rico e sabichão da rua Barão de S. Félix, 76. Não
é tudo. Sanin faz-me vagarosamente dar a volta ao armazém do feitiço. Eu tomo notas curiosas
dessa medicina moral e física.
Para matar, ainda há outros processos. O malandrão Bonifácio da Piedade acaba um
cidadão pacato apenas com cuspo, sobejos e treze orações; João Alabá conseguirá matar a
cidade com um porco, um carneiro, um bode, um galo preto, um jaboti e a roupa das criaturas,
auxiliado apenas por dois negros nus com o tessubá, rosário, na mão, à hora da meia-noite;
pipocas, braço de menino, pimenta-malagueta e pé-de-anjo arrancados ao cemitério matam em
três dias; dois jabotis e dois caramujos, dois abis, dois orobós e terra de defunto sob sete
orações que demorem sete minutos chamando sete vezes a pessoa, é a receita do Emídio para
expedir desta vida os inimigos..
Há feitiços para tudo. Sobejo de cavalo com ervas e duas orações, segundo Alufá Ginja,
produz ataques histéricos; um par de meias com o rastro da pessoa, ervas e duas orações, tudo
dentro de uma garrafa, fá-la perder a tramontana; cabelo de defunto, unhas, pimenta-da-costa e
ervas obrigam o indivíduo a suicidar-se; cabeças de cobras e de cágado, terra do cemitério e
caramujos atrasam a vida tal qual como os pombos com ervas daninhas, e não há como
pombas para fazer um homem andar para trás...
- Mas para dar sorte, caro tio?
- Há mão de anjo roubada ao cemitério em dia de sexta-feira.
- E para tornar um homem ladrão, por exemplo?
- Um rato, cabeça de gato, ervas, o nome da pessoa e orações.
- E para fazer um casal brigar?
- Cabeça de macaco, aranha e uma faca nova.
- E para amarrá-los por toda a vida?
O negro pensou, olhando-me fixamente:
- Um obi, um orobô, unhas dos pés e das mãos, pestanas e lesmas...
- Tudo isso?

- Preparado por mim.
Então Sanin fala-me dos seus feitiços. Sanin é poeta e é fantasista.
Sob a dependência de Ojô, quase seu escravo, esse negro forte, de quarenta anos, trouxe
do centro da África a capacidade poética daquela gente de miolos torrados, as últimas
novidades da fantasia feiticeira. Para conquistar, Sanin tem um breve, que se põe ao pescoço.
O breve contém dois tiras, uma cabeça de pavão e um colibri tudo colorido e brilhante; para
amar eternamente, cabeças de rola em saquinhos de veludo; para apagar a saudade, pedras
roxas do mar.
Quando lhe pagam para que torne um homem judeu errante, o preto prepara cabeças de
coelho, a presteza assustada; pombos pretos, a dor; ervas do campo, e enterra em frente à
porta do novo Ashaverus; quando pretende prender para sempre uma mulher, faz um breve de
essências que o apaixonado sacode ao avistá-la. Sanin é também mau - mas de maneira
interessante.
Os seus trabalhos de morte são os mais difíceis. Sanin ao meio-dia levanta no terreiro uma
vara e reza. Pouco tempo depois sai da vara um maribondo e o maribondo parte, vai procurar a
vítima, e não pára enquanto não lhe inocula a morte.
O maribondo é vulgar à vista do boto vivo metido dentro de uma caveira humana; em
presença do feitiço do morcego, a asa que roça e mata, a raposa e o lenço, e eu o fui encontrar
pondo em execução o maior feitiço: baiacu de espinho com ovo de jacaré - que é o babalaô da
água, baiacu que faz secar e inchar à vontade das rezas e domina as almas para todo o sempre.
Mas por que você, um homem tão poderoso, não me queria receber?
- Por que andam a falar de nós, porque a polícia vem aí. Fizemos outro dia até um
despacho no campo de Santana com os dentes, os olhos de um carneiro, jabotis, ervas e duas
orações para quem fala de nós deixar de falar.
- Mas por que um carneiro?
- Porque o carneiro morre calado. Foi o Antônio Mina quem fez o despacho e todos nós
rezamos de bruços e todos nós demos para o despacho, que custou cento e oitenta e três mil
reis.
Então eu apanhei o meu chapéu, apertei a mão do fantasista Sanin.
- Pois fez mal, Baba, fez muito mal em dar o seu dinheiro, porque quem fala de vocês sou
eu.
E como o negro aterrado abrisse a boca enorme, eu abri a carteira e o convenci de que
todas as suas fantasias, arrancadas ao sertão da África, não valem o prazer de as vender bem.
Dinheiro, mortes, e infâmia as bases desse templo formidável do feitiço!

A IGREJA POSITIVISTA

O amor por principio
E a ordem por base.
O progresso por fim.
Era domingo, à porta do templo da Humanidade, na rua Benjamim Constant.
Com o céu luminosamente azul e o sol tépido, havia muita concorrência nessa rua, de
ordinário deserta: - senhoras, cavalheiros de sobrecasaca, militares, crianças. Uns subiam logo
as escadas do templo, cuja fachada recorda um templo grego; outros mais íntimos, seguiam
para o fundo, pelo lado direito. Teixeira Mendes fazia a sua prédica dominical.
Tínhamos ido a conversar com um velho positivista. A princípio ele anunciara um profundo
desprezo pela frivolidade jornalística e a imprensa. Mas depois, como eu risse sem rancor,
permitiu-se levar-me até a Igreja e foi tão bondoso que ali estávamos, tagarelando de coisas
superiores, enquanto ao templo continuava a afluir a onda de fardas, de senhoras e de
cavalheiros solenes.
- Não é possível negar a influência positivista na nossa política, sobre os brasileiros cultos,
ia eu dizendo, mas o público..
- Os jornais...
- ... o grande público não compreende e irrita-se. O meu amigo pode falar de Spencer, de   Kant, de outros filósofos. Passa por erudito e é respeitado. Basta, porém, falar de Comte para
que o tomem por um esquisitão e perguntem injuriosamente se essa é a religião de Clotilde de
Vaux.
- É natural. É a gentinha que não conhece o culto, adulterado por espíritos anárquicos. Mas
você vê que os honestos já começam a compreender a doce religião que submeteu a
inteligência ao sentimento.
- Tem-lhes custado.
- O positivismo tem quarenta anos de propaganda no Brasil. Em 1864, o Dr. Barreto de
Aragão publicava urna aritmética dando a hierarquia científica de Comte e o Dr. Brandão
escrevia a Escravidão no Brasil. Foram esses os primeiros livros positivistas, hoje quase
desconhecidos. Depois é que o positivismo começou a ser falado entre matemáticos e que os
professores da Central e da Escola Militar deram em citar a Astronomia e o primeiro volume da
Filosofia.
- Era o tempo em que se considerava a Política um livro ímpio...
- Ainda não se fizera sentir a necessidade de dispensar os serviços provisórios de Deus. O
caráter religioso do positivismo não era conhecido. Isso não impediu que Benjamim Constant,
fazendo concurso na Escola Militar, declarasse ser positivista ortodoxo e republicano, e que o
próprio Benjamim, com os Drs. Oliveira Guimarães e Abreu Lima, constituísse o núcleo dos
ortodoxos em 1872.
- A influência foi nula... - interrompi eu, olhando uma senhora loura que entrava com o
catecismo encadernado em veludo verde.
- Nada se perde. Oliveira Guimarães deixou um discípulo, Oscar de Araújo; Benjamim levou
às escolas a palavra religiosa do mestre, regenerou o ensino da matemática e foi o primeiro
brasileiro que teve no seu quarto o retrato de Clotilde de Vaux. Os trabalhos adotados na Escola
Militar são quase todos de discípulos seus. No meio inteligente desses últimos surgiram
Raimundo e Miguel Lemos; era um momento de agitação. Pereira Barreto publicava o 1.º
volume da obra As três filosofias, e tanto Miguel como Teixeira Mendes eram litréistas,
considerando a parte religiosa de Comte como obra de louco.
Foi com eles que Oliveira Guimarães fez aliança para fundar a biblioteca positivista e abrir
cursos científicos.
- Era a filosofia da Academia...
- Sem jardins. O começo do positivismo no Brasil é absolutamente acadêmico. Em 1876 a
Escola de Medicina manifestou-se com a tese Da Nutrição, de Ribeiro de Mendonça, e a
primeira sociedade positivista foi feita de professores ortodoxos e de estudantes litréistas.
- Seria curioso saber como estes mudaram.
- As pequenas causas têm às vezes grandes efeitos. Uma censura ao diretor da escola
motivou serem suspensos, por dois anos, Teixeira Mendes e Miguel Lemos, que foram para a
Europa; e enquanto só, Benjamim propagava aqui, os dois em Paris litréizavam. Mendes veio o
mesmo, achando o Comte da Política maluco. Miguel ficou, e lá, sponte sua, abandonou Littré e
relacionou-se com Laffite.
- E converteu-se?
- A 4 de julho de 1879.
Solenemente, o meu amigo positivista apanhava sol. Levei-o com carinho para o jardim,
onde devia florir o bosque sagrado com as sepulturas dos homens dignos. Não havia bosques,
nem sepulturas. Apenas algumas árvores. O positivista acendeu o cigarro, depois de o fazer
com um forte fumo Rio Novo. Eu perguntei pasmado:
- Toma café?
Ele riu.
- Como toda a gente! Essa história de não tomar café e não fumar é apenas uma léria.
Então você pensa que Augusto Comte imaginasse, de mau, fazer o mundo deixar o café e o
fumo, só para arruinar o Brasil? O fato é outro. O grande filósofo não fumava nem bebia
excitantes, porque lhe faziam mal; Miguel Lemos, doente como é, não se atira a esses
excessos; Teixeira Mendes, um homem que reflete dezesseis horas a fio, não se pode dar aos
devaneios da fumaça... Não há proibições formais para o horrendo vício; há apenas medo...
Puxei com vigor uma baforada.
- A propaganda desapareceu com a estada de Miguel Lemos em Paris?

 - Não. A sociedade passou a chamar-se Sociedade Positivista do Rio de Janeiro, sendo
aclamado presidente o Dr. Ribeiro de Mendonça, que se filiou a Laffite:
- Começou a era do lafitismo...
- E com excesso. Concorríamos até pecuniariamente para o subsídio sacerdotal da igreja
em Paris. Lemos influiu de tal modo sobre Teixeira Mendes, que pouco tempo depois este
também se convertia. Foi, ligada a Laffite, que a nossa igreja iniciou as comemorações de
caráter religioso com a festa de Camões em 1886; que se comemorou o 22.º passamento de
Comte e a festa da Humanidade; e é dessa época que data a primeira procissão cívica no Rio
de Janeiro, com andores e o busto de Camões esculpido por Almeida Reis.
- Quando Miguel voltou, aspirante ao Apostolado, as reuniões tornaram-se regulares aos
domingos, na rua do Carmo, n.
0 14, e Ferreira de Araújo abriu uma seção na Gazeta com o título
Centro Positivista, cujo primeiro artigo dava a teoria científica do calendário. Em 1881, já
presidente Miguel Lemos, o Centro passou para a rua Nova do Ouvidor, as exposições da
religião tornaram-se regulares, e Raimundo fez no Liceu um curso do catecismo, interrompido
pelas suas célebres conferências de antigo litréista contra o sofisma de Littré.
- Era a prosperidade.
- Nesse ano, em que se comemorou a Tomada da Bastilha, Lemos foi a São Paulo, fez
nove conferências, fundou uma filial com Ferreira Souto, Carvalho de Mendonça, Oliveira
Marcondes, Godofredo Martins e Silva Jardim, e as intervenções do Centro na nossa vida
política acentuaram-se contra a imoralidade da colonização chinesa, traçando o programa do
candidato positivista, protestando contra as loterias, exigindo o registro civil, a abolição, opondose às universidades...
- Já nesse tempo?
- Os artigos foram publicados na Gazeta de Notícias e fizeram que o imperador se
opusesse à idéia, aconselhando ao ministro que reformasse o ensino por outro qualquer meio
que não fosse as universidades.
O meu velho amigo andou alguns passos pelo futuro bosque sagrado. Acompanhei-o.
Ouvia-se lá dentro o som múltiplo de uma orquestra. Raros retardatários entravam.
- Neste ano também, continuou com calma, uma circular instituiu o subsídio sacerdotal, o
que deu lugar à retirada de Benjamim Constant, e foram conferidos os primeiros sacramentos
aos filhos de Miguel Lemos, Teixeira Mendes e do Dr. Coelho Barreto.
- Hoje esses sacramentos são comuns?
- Como os do matrimônio, em grande número.
- A ruptura com Laffite deu-se logo depois?
- Em 1883. Lemos ficou o único responsável do positivismo no Brasil, continuando a ingerirse na vida pública da sua pátria.
- Mas este templo como foi feito?
- O Apostolado deixou a sede da rua Nova do Ouvidor para a rua do Lavradio. A mudança
determinou o lançamento de um empréstimo em 1891 para a construção do templo, no que
muito concorreram Pereira Reis, Otero, Rufino de Almeida, Décio Vilares. A inauguração foi em
1894, e a igreja custou 250 contos.
- É mais uma prova da importância do Centro no regime republicano.
- A nossa intervenção no início da República foi de primeira ordem. Basta citar a Bandeira
Nacional, a separação da Igreja do Estado, a liberdade dos professores, a reforma do código no
caso da tutela de filhos menores.
- O Centro também tem uma casa em Paris?
O semblante do positivista anuviou-se.
- Sim, a casa em que morreu Clotilde. Foi comprada por 70 mil francos. É triste. Em Paris
não estavam preparados para compreender Teixeira Mendes. Era tarde para a campanha... Mas
venha ver a nossa tipografia.
Caminhamos com intimidade pela avenida estreita. De vez em quando ouvia-se o som de
uma voz acre. Era a prédica.
A tipografia fica embaixo, correspondendo a toda a extensão da nave em cima. É completa.
Pergunto respeitoso o número de publicações dessa oficina.
- As obras de maior valor são o Ano sem Par, a Biografia de Benjamim Constant, a Visita  aos Lugares Santos do Positivismo, a Química Positiva, as Últimas Concepções de A. Comte
(onde se acha a teoria dos números sagrados), todas obras de Raimundo Mendes. A publicação
de folhetos é talvez superior a 600.
- Mas os subescritores são muitos?
- São suficientes. A Igreja do Brasil tem recebido também auxílios de Londres.
O pavimento embaixo não é só ocupado pela tipografia. Há também o gabinete luxuoso de
Miguel Lemos e a sala Daniel Encontre, onde Teixeira Mendes expõe aos jovens discípulos da
humanidade, e a quem quiser ouvi-lo, as sete ciências. Ouvem-no lentes de academias e
professores notáveis.
- É grande o número de positivistas?
- No Brasil os ortodoxos devem ser uns 700. Os simpáticos não se podem mais contar. As
gerações que saem da nossa Escola Militar são quase que compostas de simpáticos.
- E a influência moral aumenta?
O positivista confessou com tristeza.
- Vai-se tornando fraca. Não se admire. Será por fraqueza dos apóstolos? Será porque o
público se afasta da realidade, corrompido moralmente? O fato é patente. Ainda há pouco o
privilégio funerário foi uma campanha perdida... Mas entremos.
Com o chapéu na mão, nós entramos. Havia luxo e conforto. De um lado a secretária, onde
se vendem as obras editadas pela igreja, de outro, a sala onde está a escada para o coro, com
orquestra e uma rica biblioteca de carvalho lavrada. Degraus atapetados dão acesso à nave.
O templo da humanidade é lindo. Ao alto, junto ao teto correm janelas que arejam o
ambiente. Todo pintado de verde-mar, está-se dentro como num suave banho de esperança.
Sentam-se os homens na nave, que tem catorze capelas; - colunas de pau negro sustentando
em portais abertos bustos esculturados por Décio Vilares. Os bustos representam os meses do
calendário: Moisés ou Teocracia inicial, Homero, Aristóteles, Arquimedes ou a poesia, filosofia
e a ciência antiga; César ou a civilização militar; São Paulo, ou o catolicismo; Carlos Magno ou a
civilização feudal: Dante, Gutenberg, Shakespeare, Descartes, Frederico Bichat, ou a epopéia, a
indústria, o drama, a filosofia, a política, a ciência moderna, e Heloisa, a santa entre as santas,
que fica na última capela, voltando o seu semblante magoado para a porta.
Na capela-mor, rica de tapetes e de madeiras esculpidas, há uma cátedra, onde se senta
Teixeira Mendes com as vestes sacerdotais negras debruadas de verde. Por trás fica um busto
de bronze de A. Comte, e, dominando toda a sala, o quadro de carvalho lavrado com letras de
ouro, de onde surge a figura delicada de Clotilde, a humanidade simbolizada por Décio numa
das suas miríficas atmosferas sonhadoras.
A voz de Raimundo corre com a continuidade de uma queda de águas; na nave cheia
cintilam galões e lunetas graves; na capela-mor, senhoras ouvem com atenção essa palavra,
que não deixa de ser demolidora.
- Que é positivismo? sussurro eu, sentando-me.
- É uma religião que respeita as religiões passadas e substitui a revelação pela
demonstração. Nasceu da ruptura do catolicismo e da evolução científica do século XVII para
cá. De Maistre dizia que o catolicismo ia passar por muitas transformações para ligar a ciência
a religião. Comte descobriu a lei dos três estados, a chave da sociologia, e quando era o grande
filósofo, Clotilde apareceu e ensinou que a inteligência é apenas o ministro do coração.
Agir por afeição,
Pensar para agir.
Comte proclamou que o homem e a mulher se completam sob o tríplice aspecto:
sentimento, inteligência e atividade. A religião divide-se em Culto, Dogma e Regime, o que vem
a ser bem amar, bem conhecer e bem servir a humanidade, o Grande Ser, o conjunto das
gerações passadas e futuras pela geração presente. A existência do Grande Ser está ligada à
terra, o Grande-Fetiche, e ao espaço, o Grande Meio...
- Mas quantas senhoras!
- As mulheres devem amar o positivismo. Comte dignificou-as. A mulher é a força
moderadora, o sentimento puro do amor que faz a sociabilidade, é a sacerdotiza espontânea da

Humanidade que modifica pela afeição o orgulho vão e o reino da força: a mulher é a
humildade, o fogo do culto no lar, é Beatriz, é Clotilde, é Heloisa, mãe, esposa e filha, a
Veneração, a Doçura e o Bem. As mulheres deviam ser todas positivistas.
Enquanto o meu amigo assim falava, Raimundo Mendes, do alto da cátedra, relampejava.
Na catadupa das palavras faltavam rr, havia repetições do pensamento, de frases, mas na
explicação cultual, de repente, inconoclastamente, o azorrague partia contra os fatos, contra a
anarquia atual: e um esto de amor, de amor indizível, de amor pela Vida, subia, como um
incensório, à alma das mulheres.
Fiquei enlevado a ouvi-lo. Esse mesmo homem, puro como um cristal, que tem o saber nas
mãos, eu já o vira uma vez, de manhã, carregando com dignidade um embrulho de carvão...
As mulheres sorriam; em toda a translúcida claridade parecia vibrar a alma do grande
filósofo terno e bom, e do alto, Clotilde, a Humanidade, abria como um lírio a graça suave do
seu lábio.

OS MARONITAS

O povo maronita, dizia o papa Benedito, é como uma flor entre os espinhos. Se o pontífice
notável tinha esta doce frase para pintar os homens do monte Líbano, os que lhe sucederam
guardaram tão perfumada imagem, e hoje, quando se fala dos maronitas, logo se recorda a flor
e os espinhos antigos. Tudo, porém, neste mundo tem o vinco fatal do destino. A frase dos
papas tornou-se profética e através da vida imensa, os de Marun continuam a perfumar a crença
impoluta entre os espinhos das hostilidades.
Os maronitas, gente extremamente religiosa, habitam a Síria e descendem dos Aramilas,
filhos de Aram, de Sem, de Noé.
Ascendência tão digna de respeito só os preparou para um longo e pungente sofrer. Desde
os tempos dos Apóstolos, dizem os Atos no versículo 22 do capítulo XV, eram cristãos,
conservando a fé ortodoxa havida do príncipe dos Apóstolos no ano 38 da era de Jesus Cristo.
Quando no quarto século começaram a aparecer no Oriente as heresias e as doutrinas falsas,
protegidas pelos soberanos coroados de pedrarias, impostas pelas armas, e a fé e a soberania
ao mesmo tempo vacilavam, S. Marun, chefe dos eremitas da Síria, saiu de sua toca de cilícios
e orações e veio salvá-los.
- Quem é esse homem de grandes barbas, meio roto? indagavam os homens, vendo a
figura ressurgida do santo sem pecado.
S. Marun não respondia; seguia pelas estradas cheias de sol, na atmosfera de milagre do
azul sem mancha, e pregava a doutrina pura, exortava o povo a conservar a sua verdadeira fé.
- Acredita sempre em Deus, tal qual te ensinaram os Apóstolos, e conservarás a tua
liberdade!
A gente, que dos seus lábios ouvia as palavras ungidas pela meditação contínua, seguia
num novo esplendor de crença, em cada coração a esperança brotava, e em pouco tempo o
povo da província do monte Líbano era chamado maronita. Os heresiarcas quiseram caluniá-lo,
mas Marun era puro como o cristal. S. João Crisóstomo, o boca-d'oiro, na carta que lhe
escrevia, rogava que por ele orasse, e a ironia como a calúnia fenderam-se de encontro ao seu
broquel de bondade.
Quando a sua alma irradiou, deixando o invólucro terreno, o povo maronita tinha inabalável
a crença para suportar todas as sangrentas perseguições, e tem sido desde então o mesmo
ordeiro e persistente auxiliar da obra divina.
Durante as cruzadas combateu ao lado dos cristãos contra os ímpios. Ao aproximarem-se
os exércitos, desciam da montanha, alimentavam e vestiam os cruzados nus e com fome.
Sempre que os turcos entravam sedentos de sangue pelo seu território, sofriam como mártires o
sacrifício sem protestar. O ódio do Maometano seguia-os, entretanto, na vida simples e
indolente dos mosteiros. Em 1860 os druzos, povo pagão e feroz, recordando velhos ódios
religiosos, atiraram-se subitamente sobre os pobres maronitas, traídos e abandonados.
A carnificina foi horrenda. A França então, sempre benevolente para os cristãos do Oriente,
mandou uma esquadra às águas do Levante, forçando o Turco a modificar o governo do Líbano
e a dar-lhe uma certa autonomia. Desde essa época o governo é cristão nomeado pelas sete
grandes potências européias, a câmara dos representantes faz-se por eleição livre e o chefe da
policia deve ser cristão. O chefe da polícia em todos os povos do Oriente representa um papel  formidável.
Extremamente religiosos, os maronitas dependem civil, militar e religiosamente, em
qualquer parte em que se achem, dos sacerdotes, e a hierarquia da sua igreja compõe-se de um
prelado, com o título de Patriarca de Antióquia e de todo o Oriente, de doze bispos diretores de
doze dioceses e de um número infindável de sacerdotes inteligentes e bons.
A intervenção européia, entretanto, espalhou pelo mundo a flor pontifícia. A imigração
esvazia aos poucos o Líbano. Não se pode viver com farturas em terras tão antigas, as
autoridades conservam a influência aterradora do Sultão. Os que primeiro saíram, com os
ortodoxos e outros crentes de Jesus, escreveram chamando os que ficavam, a perspicácia
maometana facilitou a emigração para enfraquecer os libertos da sua prepotência e os
maronitas vêm para os Estados Unidos, para a Argenúna, para o Brasil, num lento êxodo...
Nós temos uma considerável pétala da celebrada flor. Uma das nossas maiores colônias
hoje é incontestavelmente a colônia síria. Há oitenta mil sírios no Brasil, dos quais cinqüenta mil
maronitas. Só o Rio de Janeiro possui para mais de cinco mil.
Quando os primeiros apareceram aqui, há cerca de vinte anos, o povo julgava-os
antropófagos, hostilizava-os e na província muitos fugiram corridos à pedra. Até hoje quase
ninguém os separa desse qualificativo geral e deprimente de turcos. Eles, todos os que
aparecem, são turcos!
Os sírios, arrastados na sua imensa necessidade de amizade e amparo, davam com a
muralha de uma língua estranha, num país que os não suportava. Agremiaram-se, fizeram vida
à parte e, como a colônia aumentava, foram por aí, mascates a crédito, fiando a toda a gente,
montaram botequins, armarinhos, fizeram-se negociantes. Quem os amparou? Ninguém! Só,
por um acaso, Ferreira de Araújo, o Mestre admirável, escreveu defendendo-os. Os sacerdotes
maronitas respeitam-lhe a memória, e na data da sua morte rezam-lhe missas por alma,
guardando delicadamente uma gratidão duradoura.
No mais, a hostilidade, os espinhos da frase papal.
Há nessa gente operários hábeis, médicos, doutores, homens instruídos que discutem com
clareza questões de política internacional, jornalistas e até oradores. A vida é dura, porém;
jornalistas e doutores vendem alfinetes e linhas em casas pouco claras da rua da Alfândega, do
Senhor dos Passos, do Núncio e dos subúrbios. A totalidade ainda ignora o português!
Conversei com alguns maronitas, sempre de uma amabilidade penetrante. Um deles,
dando-me a satisfação da sua prosa torrencial, falou como um estrategista da guerra russojaponesa. Esse homem não falava, redigia um artigo de jornal com a retórica empolada que fez
a delícia dos nossos pais e ainda hoje é a força do jornalismo dogmático. Eu ouvia-o de lábios
entreabertos.
- Se a justiça de Deus não desapareceu, se a vida humana decorre dos desejos da
divindade, é possível crer que os japoneses possam vencer?
- Oh! não!
Eu respondera, como no teatro, mas estava interessado por esses organismos simples,
criados na chama de uma crença inabalável, desses românticos do Oriente.
Todos são feitos de exagero, de entusiasmo, de amor e de ilusão. Os dois jornais sírios têm
os títulos simbólicos e extremos: - A Justiça, A Razão. Os homens naturalmente perdem o limite
do natural. Numa outra casa em que sou recebido, um gordo cavalheiro preocupa-se com o
problema da colonização.
- A colonização síria, diz, é a melhor para o Brasil. Os brasileiros ainda não a
compreenderam. O sírio não é só o comerciante, é também agricultor, operário. Desprezamnos? Este país não vê que conosco, povo tranqüilo e dócil, não poderia haver complicações
diplomáticas? Os espanhóis, os portugueses, os italianos enriquecem, partem, pedem
indenizações. Nós, pobres de nós! não pedimos nada, queremos ser apenas do Brasil.
Não respondo. Talvez bem cedo os sírios sejam assimilados à família heterogênea da
nossa pátria. Estas criaturas têm qualidades muito parecidas com as dos brasileiros.
Vários negociantes que comigo discutem, porque os sírios discutem sempre, são como
jornais retóricos e brandos; diziam naturalmente:
- No Amazonas perdi há pouco 400 contos. A colônia síria teve na baixa do café um
prejuízo de 70 mil contos. As últimas remessas de fazendas elevam-se a 200 contos.
A princípio eu os acreditei um bando de Vanderbilts, falando com desprendimento do ouro e  das riquezas. Mas não. Um sacerdote amigo nos desfaz o sonho. Há fortunas restritas. A totalidade porém tem relações com o alto comércio, compra a crédito para vender a crédito aos
mercadores ambulantes do interior e às vezes a situação complica-se, quando lhes falta o
pagamento dos últimos, tudo por causa do exagero, a mania de aparentar riqueza. Cada
cérebro oriental tem um Potosi nas circunvoluções.
- Os sírios chegam, ganham dois mil réis por dia e já estão contentes. Nunca serão
verdadeiramente ricos, porque aparentam ter oito quando apenas têm dois.
Este feitio os há de fazer compreendidos dos brasileiros.
Mas os maronitas, sob a proteção do velho santo austero, são essencialmente bons, de
uma bondade à flor da pele, que se desfaz em gentilezas ao primeiro contacto com um
bombom. Os homens falam sempre, as mulheres olham com os seus líquidos olhos insondáveis
e por todas essas casas, há, inseparável da vida, o mistério da religião, no amor que as
mulheres, algumas inefavelmente belas, proporcionam, nos negócios, nas idéias e nas
refeições. Quando um maronita enferma, a primeira coisa que faz é chamar um padre para se
confessar; quando um negócio vai mal, aconselha-se com o sacerdote, só casa pelo seu rito, o
único verdadeiro, e trabalhando para viver, funda irmandades, colégios e pensa em edificar
capelas.
De 1900 data a fundação da Irmandade Maronita, posterior a outras duas que se
desfizeram. Foram sócios fundadores: Dieb Aical, Arsanius Mandur Galep Toyam, Seba Preod
Curi, Miguel Carmo, Acle Miguel, João Facad, Antonio Nicobá, Antonio Kairur, Bichara Bueri,
Gabriel Ranie, Salbab, José Chalhub e Bichara Duer. Brevemente abrirá as suas portas o
colégio dos Jovens Sírios.
Apesar da permissão para dizer missa em todas as igrejas católicas e de celebrarem aos
domingos na Saúde e em Cascadura, já compraram o terreno na rua do Senhor dos Passos
para edificar a capela maronita, e a propaganda se faz mesmo entre os sírios ortodoxos e
maometanos, porque uma ordem do Papa lhes indica que pela bondade façam voltar à crença
única as ovelhas tresmalhadas.
Atualmente há três padres maronitas em São Paulo e quatro no Rio, os Revs. Pedro
Abigaedi, Pedro Zaghi, Luiz Trah e Luiz Chediak. Andam todos de barba cerrada, usam óculos e
são suavemente eruditos. Trah, por exemplo, esteve oito anos na Bélgica e discursa como um
regato tranqüilo; Chediak é professor, e cada palavra sua vem repassada de doçura. É sabido
que a reconciliação dos maronitas com a igreja romana data de 1182. A reconciliação foi
incompleta a princípio, mas hoje é quase integral. Os padres, podendo casar, abandonam essa
idéia; há o maior respeito pelo Sumo Pontífice, e a política do Vaticano consegue aos poucos
outras reformas.
Como os padres me levassem a ver o terreno donde a igreja maronita surgirá, interrogueios a respeito do rito da sua seita.
- É quase idêntico ao romano, dizem-me. A liturgia é redigida em siríaco. É uma
necessidade. Há sírios que sabem de cor o sacrifício da missa. Talvez o mesmo não aconteça
numa igreja romana, que conserva o latim.
- A começar pelos sacristãos.
- Há além disso as missas privadas, a regra é a de Santo Antônio e seguimos o
martirológio de S. Marun.
- Dizem que os maronitas foram a princípio monotelistas...
- Dizem tanta coisa no mundo!
Eles tinham parado diante de uns velhos muros.
- Será aqui a igreja?
- Querendo Deus!
E não sei porque, vendo-os tão simples diante das paredes carcomidas, esses sacerdotes
de um povo religiosamente bom, eu recordei a frase profética dos papas. O povo maronita é
como uma flor entre espinhos, mas uma flor cujo viço é eterno. Os espinhos continuam
persistentes mas a velha flor espalha-se pelo mundo, recendendo a mais doce ternura e a mais
profunda crença...

OS FISIÓLATRAS


Quando resolvi interrogar o hierofante Magnus Sondhal, sabia da fisiolatria o que os
prosélitos deixavam entrever em artigos de jornal cheios de nomes arrevezados e nos
comunicados, nos copiosos comunicados trazidos aos diários por homens apressados e
radiantes. Pelos artigos ficara imaginando a fisiolatria um conjunto de positivismo, ocultismo e
socialismo; pelos comunicados vira que os fisiólatras, quase todos doutores, criavam
cooperativas e academias. Entretanto o Sr. Magnus Sondhal certa vez à porta de um café
definira para meu espanto a sua religião.
- A fisiolatria não é um culto no sentido vulgar da palavra, mas uma verdadeira cultura
mental. É, antes, a sistematização racional do processo espontâneo da educação dos seres
vivos, donde resultaram todas as aptidões, mesmo físicas e fisiológicas, respectivamente
adquiridas.
Pus as mãos na cabeça assombrado. Magnus tossiu, revirou os olhos azuis.
- A fisiolatria baseia-se, como toda a reforma sociocrático-libertária, na sistematização da
lógica universal ou natural que o hierofonte + SUN intitula ortologia.
- Ortologia? fiz sem compreender.
- Do grego orthos, logos - reta razão.
A religião também é chamada ortolatria, ou verdadeira cultura, como ortodoxia significa
verdadeira doutrina. Os fisiólatras pretendem fazer uma remodelação de todas as coisas
humanas, não limitando a sua ação à modificação dos conceitos.
- Mas o remodelamento geral é possível?
Sondhal sorriu com calma:
- Nós somos onibondosos, oniscientes e onipotentes.
- Os atributos de Deus.
- Nós nos intitulamos os verdadeiros deuses. A reforma abrange as opiniões, os
costumes, o Homem e a própria Terra.
Arregalei os olhos, pus o pé bem firme no chão, passei o lenço trêmulo na fronte e olhei
os verdadeiros deuses. Para o que falava, envolto na sobrecasaca, com uma barbinha rala e o
nariz ao vento, escavoquei a religião do ideal divino e não lhe achei comparação. O outro torcia
um bigode sensual por cima do lábio rosado.
- Com que então deuses? Dera-me de repente a vontade de ser também onisciente e
onipotente. Mas que é preciso para eu ser também?
- A propaganda toma um cunho secreto. Os aspirantes à Ortologia têm de passar pela
iniciação esotérica, que custa, além das provas morais, quinhentos mil réis em moeda corrente.
Era relativamente barato, e eu pensava em fazer uma redução shilockeana, quando
Magnus começou a desdobrar a beleza útil da vida fisiólatra.
A iniciação dá entrada na Universidade Ortológica resumida no hierofante, a qual se
intitula Maçonaria + Católica. A Maçonaria Católica divide-se em lojas, cujo conjunto, em três
graus, constitui o respectivo templo. Os aspirantes representam as lojas, o templo só pode ser
representado pelo hierofante ou por um areopagita.
- Onde esse templo?
- Os fisiólatras, os que praticam a magia ortológica, não precisam de local determinado.
São os novos homens, fazem excursões pelos prados, montes e lagos em Fraterias Estéticas,
Filosóficas ou Ortológicas, conforme o grau do ludâmbulos.
- Ludâmbulos?
- Uma palavra da língua universal!
- O volapuck? O esperanto?
- Não, uma língua inventada por mim, o Al-tá.
- Mas que vem a ser o Al-tá?
- Aplicando a Ortologia (ou Lógica Universal) aos fatos da Linguagem, verifica-se que os
elementos fonéticos, sons e entonações (ou consoantes e vogais) são por toda a parte
idênticos. Deduz-se que são oriundos das mesmas impressões e resultantes das mesmas
aptidões expressionais. Colocando em sínese, descobre-se que os sons, que exprimem
relações, formam uma escala semitonal, como a da música, e composta de treze notas, ou
graves primárias como todas as escalas, aliás: - U (grave fundamental) A (dominante e geratriz)
e I (sensível superior) estabelecem todas as relações sinésicas:
U A I (e U)
Gênese Megaforema Metaforema
Origem Crescimento Transformaçio
Passado Presente Futuro
Corpo Espaço Movimento
Sentir Pensar Agir
Opressio Libertaçio Aspiraçao
Escuro Amarelo Rubro e Branco
etc. etc. etc.
Quanto às Entonações, essas formam três teclas, donde três escalas, também, analógicas
mas distintas:
H (Geratriz)
TECLA GUTURAL TECLA DENTAL TECLA LABIAL
Metafonias Metafonias Metafonias
K (Chave) T (Chave) P (Chave)
G (guê) D B
Ch R F
J r (brando) V
- L -
- Lh -
- S -
- Z -
- N -
- Nh M
Aplicando a Sínese ortológica às Teclas orais, como se fez relativamente aos Sons,
temos:
TECLA GUTURAL TECLA DENTAL TECLA LABIAL
Gênese Megaforema Metaforema
Objetivo Subjetivo Ativo
Eidonomia Eimologia Ergonomia
e
Erostergia
Detalhando, enfim, o valor fracional dos fonemas em geral, obtém-se, por dedução lógica,
a expressão natural; - de qualquer espécie de impressão: - sensacional, emocional ou acional...
e a Língua Universal está, enfim, racionalmente instituída.
Exemplo perfunctório:
K é a raiz de Corpo, concreto, etc.
A significa o atual e ação,
donde:
Ativo: K A - O Corpo que se apresenta e se move.
e

Passivo: A K - O Corpo que é impelido ou sofre a ação.
M é o símbolo do sentir e agir, donde:
Passivo A M=Eu=amo=sou...
e
Ativo: M A=Mu=mover=mãe, mulher... criar.
Eu não compreendera muito bem, não compreendera mesmo nada. Magnus Sondhal
porém foi íntimo e educador.
- Vou dar-lhe alguns nomes esotéricos dos iniciados da Maçonaria Católica. Sobem a
milhares, além de alguns que foram condenados ao olvido, ao au-tá...
Fez uma pausa, depois como quem se confessa:
- Eu devo dizer esotericamente, o espírito que preside à Propaganda da Razão. A minha
emancipação de Ortólogo, vai a um extremo inacessível para a totalidade dos homens coevos.
Por isso, tudo que eu faço toma o aspecto joco-sério, desde o deboche até o sagrado, desde a
Orgia até o Culto da Natureza!... De fato estou exterminando pelo ridículo todas as velhas e
caducas crenças e instituições e todos os preconceitos, mesmo científicos e filosóficos! Em mim
a Consciência superior, a dignidade e a nobreza destruíram por completo toda espécie de
Veneração, Respeito ou Tolerância!... Mas, voltemos aos nomes esotéricos.
Todo Iniciado na Maçonaria Católica toma um Nome, por sua própria escolha, em
substituição ao nome, sem sentido, que lhe deram seus pais Gorilhas. Esse novo Nome é a
síntese de seu verdadeiro Ideal ou Aspiração superior para o Progresso. Em torno desse novo
Símbolo o Iniciado constrói a sua nova Existência Subjetiva, isto é, o seu KARMA. Quem souber
identificar-se com o seu Nome de Regenerado, está, ipso facto, isento de toda e qualquer
perturbação subjetiva, causada habitualmente pelos ataques malévolos da Canalha humana.
Mas a adoção voluntária do novo Nome é, além disso, um ato belamente revolucionário, e um
protesto solene contra todas as velharias e convenções hipócritas e perversivas. Quem
escolheu o seu próprio NOME, também rompeu, ipso facto, com todas as imposições e
Imposturas que tendam a tiranizar a sua Vontade e tolher a sua Liberdade de Indivíduo!... Mil
outros motivos há que advogam esse Rito da Adoção.
- Os nomes esotéricos! supliquei, vendo que se eternizava num misterioso falar.
Ele sentou-se com um papel e um lápis.
- Antes de tudo, é preciso conhecer o esquema da figura da Lei Universal, ou Ciclo da
Matéria, donde se deduz a Ortologia, ou a Sabedoria Universal.
Diante daquele lápis hostil, tremi.
- Os nomes sem figuras, Magnus.
Ele coçou a ponta do nariz.
- Ei-los:
SUN, nome do HIEROFONTE (+) atual; Significa: - sol no NADIR, ou Sol posto e, por extensão,
Luz Invisível, isto é, Sol subjetivo.
Etimologia: - S ... símbolo de Fonte e de Brilho em sua máxima intensidade e, portanto,
símbolo de SOL; - N... . símbolo de infinito e indefinido, de espaço e de espírito, portanto:
num ponto indefinido do Espaço. A quer dizer: presente, ou visível, donde SAN - Sol acima
da horizonte visual. I significa o que está para vir e o que sobe, donde SIN - o Sol que vai
nascer ou nascituro. U quer dizer o que está embaixo, donde - SUN o Sol no Nadir.
BLUM-SAN-UR - A Flor que o Sol gerou. Nome de um Areopagita, cujo símbolo é a cruz.
AM-VA - Viver para o Amor. Nome de outro Areopagita em São Paulo.
UN-AN - O espírito de Origem, engerador. Nome de outro Areopagita, em Minas.
GVAM-IL - Viver, Amar e ser Livre. Nome de um iniciado do 2.º grau.
AL-GAI - Aquele que quer que todos folguem. Nome de um cientista bom e inteligente. Iniciado
do 2.º grau.
VAR-UN - A vida que palpita imperceptivelmente no seio da Matéria. Nome de um distinto
iniciado do 1.º grau.
SIR-US - O Filho da Aurora Boreal. Nome de um companheiro dedicadíssimo que propulsionou
a Propaganda da Razão no Estado do Paraná.
GAM-AR - Aquele que vai alegrar-se e folgar agindo com entusiasmo pela Regeneração  Humana.
Um instante calamo-nos. O hierofante Sun limpava o suor. Mas dentro em pouco
continuou a falar.
- Temos, disse, idealizados quatro templos para serem erigidos no centro de cada uma
das quatro partes em que dividimos a terra. Os templos chamam-se os templos da Razão.
Também em épocas que todos chamam das grandes transformações, os homens deram
templos à Razão encarnada.
- Há muita gente iniciada? indaguei, afundando em amargas comparações históricas.
- Muita. Só agora, porém, é que a iniciação deixou de ser grátis. Não imagina como
progredimos.
Há quatro ou cinco anos que em Minas Gerais se fazem festas sociolátricas. As
peripatéias ou excursões cultuais são comuns em todos os Estados, máxime no Paraná.
- E aqui?
- Vamos entre as árvores discutindo e conversando.
Platão! Aristóteles! Jesus! Dellile! Procurei acalmar o meu estado nervoso. Assistira à
missa-negra, vivera entre os negros orixalás, que sobre o opelê dizem a vida da gente, ouvira os
espíritas, o ocultistas, os gnósticos católicos. Essa reforma desorganizava-me.
- Mas isso tudo foi inventado pelo senhor?
- Foi.
- E desde quando pensa na reforma?
- Desde a idade de cinco anos, em que aprendia a ler sozinho. Só porém em 1884 é que
cheguei aos resultados práticos em Cataguazes.
- É brasileiro?
- Descendente de islandeses, os verdadeiros descobridores da América.
Recolhi meditando a questão. Aquele homem que aprendera a ler com tenções de
reformar a sociedade, a ortologia, as peripatéias, a reforma da terra - tudo isso assustava.
Refleti entretanto. Magnus era um vasto saber, calmo e prático, formado em Cabala, tendo
viajado o mundo inteiro.
Se apenas nessa qualidade dissesse ter inventado o motocontínuo nas asas das
borboletas, eu, deplorando-o, levá-lo-ia ao hospício. Mas Sondhal inventara uma religião, a
religião que é o bálsamo das almas, uma religião brasileira, e, como Jesus à beira do lago
Tiberíade, ensinava aos iniciados à beira da lagoa Rodrigo de Freitas e da lagoa dos Patos. Era
mais um profeta, venerei-o; e assim fazendo quis saber quem comigo o venerava. A fisiolatria é
uma religião de doutores; numa lista de 200 ortólogos, sessenta por cento são bacharéis.
As listas são feitas com pompa, e em cada uma eu li: - Drs. Toledo de Loiola, Tavares
Bastos, Jango Fischer, Flávio de Moura, Luís Caetano de Oliveira, Antônio Ribeiro da Silva
Braga, Adolfo Gomes de Albuquerque, Floripes Rosas Júnior, José Vicente Valentim, Ulisses
Faro, Barbosa Rodrigues Júnior... Uma série interminável de bacharéis!
Tantos doutores devem assegurar a doutrina doutíssima. Fui então procurar o hierofante
no seu templo, que tem percorrido várias casas na Cidade Nova. Magnus Sondhal recebeu-me
com o seu inalterável sorriso e o seu inalterável pince-nez.
- Há tantos doutores na sua religião, hierofante, que eu a considero.
- Pois, ergonte, uma das idéias da minha religião é acabar com os doutores!
Sentamo-nos divinamente e eu o interroguei:
- A sua religião tem qualquer coisa de positivismo?
- Fui apóstolo da Humanidade seis anos. Só depois é que comecei a propaganda da
União Universal, a princípio com um filósofo dinamarquês, depois com os Drs. Adolfo de
Albuquerque, Silva Braga e outros Areopagistas. A fisiolatria transforma as palavras e
expressões das outras línguas, transformando as instituições humanas existentes e inexistentes
em fatos positivos. Os fenômenos sobrenaturais tornam-se até sensíveis.
- A reforma é então geral?
- Até no vestuário. Acredita o senhor que no futuro continuaremos a usar sobrecasasa?
Pois, não!
As roupas dos ergontes serão determinadas pelas estações do ano com um cunho  simbólico e as cores tiradas da figura universal. No verão, por exemplo, 1.ª estação, macrofísica
e que representa o dia da vida, usar-se-ão as três cores fundamentais; no outono, 2.ª estação, a
tarde da vida, cores sombrias; no inverno, 3.ª estação, microfísica, a noite da vida, roupas
negras, e na primavera, a 4.ª estação, roupas brancas para corresponder ao albor da
existência...
- Muito poético. As nossas casacas passarão a ser empregadas apenas nos bailes de
máscaras, como fantasias de gosto. Também, que seria do vestido de Maria Stuart se não fosse
o carnaval? Consolemo-nos com a homenagem dos futuros ergontes!
Enquanto essas loucuras eram ditas, Magnus Sondhal sorria.
- Uma religião tão nova deve ter o seu custo especial.
- Tem, com efeito: o kratu, ou culto público, e a magia, ou culto íntimo.
O kratu tem um quadro sinótico.
Ei-lo:
KARMA
(ou: - a Criação e Transformação Eterna, geradas e contempladas pelo Amor).
__________________________ _______________________
KOSMOS ONTOS | ETOS
| e
| ESTETOS
____________________________
EIDONOMIA E EIMOLOGIA | ERGONOMIA
| e
| EROSTERGIA
1.º Grau 2.º Grau 3.º Grau
__________________________ _______________________
FISIOLATRIA
__________________________ ___________________________
IDOLATRIA BIOLATRIA PSICOLATRIA
--------------- ---------------------- --------------------------
1.º Dia SOL Fecundação Sentir Amor
2.º Dia LUA Gestação Conceber Sabedoria
3.º Dia TERRA Procriação Construir Poesia
4.º Dia MAR Nutrição Mecânica Sensualismo
5.º Dia AR Respiração Química Vitalismo
6.º Dia CÉU Lhômição Al-Químia Animismo
7.º Dia NOITE Subjetivação Hiper-Químia Idealismo
---------------- ----------------------- -------------------------
Donde REFLEXÃO... CONSCIÊNCIA... MAGIA

A palavra MAGIA é empregada no sentido de sua etimologia Altaíca, isto é, derivada de
MAC - Força ou Ação e I - sobre ou para o Futuro. Representa o estado superior da Vida, em
que o Espírito ou a Razão dirige a Força Inconsciente.
A magia começa a revelar-se nas próprias iniciações maçônicas pela adoção de um nome
esotérico que liberta das más influências. Só eu a posso empregar, porque sou o único a
conhecer a hiperquímica ortológica, ou as leis naturais das influências psíquicas.
A hiperquímica, de hyper e da língua universal kim, que significa a parte invisível e
indestrutível da matéria, tem duas ciências preliminares: a alquimia, ou tratado da reação das   matérias em estado das correntes puras, e a químia. O princípio alquímico é que a matéria é
una, vive, evolui e se transforma. O princípio unitário Lhôma entra como causa em todas as
reações e por ele se explicam o fenômeno microfísico das funções cerebrais, a função das
imagens interiores e a influência da moral sobre o físico.
Mas tudo isso está nos nossos livros: - A Reforma Sociocrática e a maior evolução do
mundo, o Catecismo Ortológico a Arte de Enriquecer ou extinção do pauperismo pela instituição
da plutometria em substituição à plutocracia, a Explicação de Deus ao Papa, a Pré-história
segundo a Ortologia e outros volumes. O essencial acha-se porém num livro manuscrito, que
não se imprime: - o Catecismo Esotérico.
Depois paternalmente o hierofante disse:
- Venha hoje ver uma sessão de magia. Nós comemoramos a morte de um iniciado. O
templo é uma sala, mas é de dever deduzi-lo da figura da Lei Universal ou Al-Miz: ao norte a loja
azul, ou do 1.º grau; a este a loja amarela, ou do 2.º grau; ao sul a loja rubra, ou do 3.º grau; a
oeste o dumma, ou sala negra, no canto o templo ou empíreo. O dumma e o empíreo significam
o branco e o negro, dois elementos antitéticos do Binário Universal... Venha às 11½.
Eu fui. Era uma noite úmida, de chuva, no dia 5 de agosto. O iniciado que morrera, meu
amigo, um gênio musical, passara pela vida agarrado a todas as fantasias. Eu fui e delirei
tranqüilamente. Tínhamos combinado estar na pensão de Sondhal. Quando lá cheguei,
encontrei treze homens de chapelão desabado e manto negro. Pareciam conspiradores. Abri o
manto de um deles e vi que estava forrado de seda roxa; abri o de outro, também, e todos
tinham varinhas na mão, onde brilhavam ametistas, a pedra da magia! Reparei então que o
hierofante era um deles.
- De que é feita essa bagueta? inquiri.
- De uma liga metálica que é um segredo alquímico! respondeu uma voz. E com o
hierofante à frente, todos deslizaram pelo corredor escuro. Eu os seguia como a sombra dos
seus mantos. De repente, pararam a um sinal seco e eu retive um grito. Na extremidade
superior do cetro do hierofante, começava a bruxulear uma luz fosforescente.
- Meu Deus!
- Cala-te, é a luz física, e o au-lis!
Todos os magos ergueram verticalmente as baguetas estendendo o braço direito para o
ar, e na extremidade de cada uma, como uma misteriosa gambiarra de vagalumes, o au-lis
acendia a sua fulguração indizível. Nas copas dos chapéus dos magos vibrava o telegormo, que
transmite as palavras pensadas.
A luz porém cessou, as varas abateram-se e os treze saíram para a rua como simples
transeuntes.
No curto trajeto do hotel à sala do templo, eu tive a impressão de um ser à parte num
mundo à parte, e quando cavamente a porta se fechou num cavo rebôo e subimos aos tropeços
as escadas, pareceu-me cair outra vez, na amada vida. A luz reaparecera.
Na sala, cheia dessa luz, o hierofante subiu os três degraus do altar, voltou-se para os
magos, deu na ara três pancadas e falou. Era a prece da Evocação. Agarrei-me a um portal,
tremendo. Com toda a solenidade o homem foi ao outro canto e fez a segunda prece, a
Invocação. Depois, voltado para o oriente disse a Efusão. Terminado que foi, sentou-se. Reparei
então que havia um estrado e em cada canto sentavam-se quatro magos.
- Aquele estrado? fiz num sopro.
- É o palco dos Fantasmas, ou lig-ôma!
De novo três pancadas bateram. O hierofante, em pé, fez um gesto sagrado, colocando a
mão esquerda sobre o coração, fonte do Viver e do Sentir, e a direita, ou da ação, na fronte,
centro psíquico. Depois um gesto para o ar e para a fronte indicou o porvir e o ideal.
Todos os magos bradaram:
- Au-ár! An-ár!
E a voz do hierofante abriu na treva:
- "Pobre e triste humanidade de mortos!... Pressentiste o poder da alma humana, e
inventaste a invocação, o culto e a prece!... Mas, a quem te dirigias tu? - As ficções impotentes!
"Não conhecias a matéria no seu estado unitário de Lhôma, embora teus grandes filósofos
chegassem quase a determinar sua existência.

"Que era o culto do Lhôma na Pérsia antiga e o do Sôma, na Índia, senão o grande
vislumbre da grande magia fisiolátrica!...
"Mas agora o Universo nos está revelado, em todas as suas maravilhosas manifestações:
- aquímicas, químicas e hiperquímicas!...
"Pelo Cérebro, abalamos o Lhôma, que penetra toda a Matéria orgânica ou inorgânica!...
"E o Cérebro é um universo microfísico, onde os átomos valem os astros do espaço
sideral!...
"E lá dentro do crânio há luz, por que é do Lhôma tenebroso que, por toda parte, ela se
gera?...
"Que mais pode surpreender ao Ortólogo?!... Onde pode haver um canto no Universo que
sua Vontade não penetre?!... Onde um Ser ou Fato que sua Microtagia não desvende?!...
"Homens mortos!... Vítimas da Feitiçaria teolátrica e da negra magia das forças brutas e
inconscientes da Matéria!... Sede eternamente malditos!... Mostrai-vos ali! no palco dos
fantasmas, em toda nudez do vosso hediondo Sofrimento!..."
Eu bati os dentes com um frio que traspassava os ossos. A luz acendia de vez em
quando, e naquele estrado, onde os espíritos mais deviam estar, eu via o vazio, o vazio horrível,
o vazio doloroso.
- "Surgi. Vós também, ó Heróis do Bem - continuara o mago - que vivereis eternamente,
impulsionando os Progressos que só a Razão inspira!
"Ei-los!...
Eis os quadros da vida humana!... torpe, miserável!...
"Quem é aquele sublime LIC-UR, cercado de Amores e de Harmonias, e cuja presença de
Luz dissipa e dissolve os tenebrosos e estúpidos NUROS corruptores?!...
"É o SAN-A'R...
"Ei-lo, sorridente e vitorioso!... vitorioso da própria Morte!
"Ei-lo sublime que nos aponta o Futuro, onde fulgura também a nossa suprema Vitória!
"Assim como ele anulou a corrupção dos Mortos, nos quadros telefênicos do Espaço
sideral, nós também anularemos a corrupção dos Vivos decadentes, que são de mais na
superfície do Planeta'
De mais! os que são de mais! eu ali dentro estava de mais! Então abri a porta, saí,
olhando para trás, aterrado do san-ár; dos nuros, desci agarrado aos balaústres da escada e
quando sentei na soleira da porta, fatigado, com o cérebro vazio, senti que suava e que me
ardiam as faces.
No outro dia encontrei o fisiólatra Magnus acompanhado de vários iniciados.
- Vou fundar uma Universidade no Liceu de Artes e Ofícios. Não deixe de ir assistir às
conferências preparatórias.
- Mas ontem, ontem que fizeram vocês?
Houve uma pausa.
- Meditamos até de manhã à beira da Sabedoria para que a Sabedoria viesse.
E Magnus Sondhal, com um volume de Nietzsche debaixo do braço, seguiu com os
iniciados pela rua a fora, como se fosse um ser natural...

O MOVIMENTO EVANGÉLICO
A IGREJA FLUMINENSE

A Igreja Fluminense data de 1858. Foi a primeira congregação evangélica estabelecida no
Brasil, graças ao espírito de um homem rico e feliz.
O Sr. Robert Reid Kalley trabalhava na ilha da Madeira, quando, em 1855, lembrou-se de
vir ao Rio de Janeiro. Era escocês, médico, ministro evangélico e possuía bens da fortuna. Ao
deixar o clima delicioso da ilha por esta cidade, naquele tempo foco de algumas moléstias
terríveis, não o enviava nenhum board estrangeiro, vinha espontaneamente apenas por amor do
evangelho de Jesus Cristo.
O Brasil sempre foi um centro de reunião de colônias diversas praticando as suas crenças  com a mais inteira liberdade.
Entre a prática da religião, porém, e a pregação à grande massa vai uma diferença radical.
Robert Kalley vinha para uma monarquia católica, em que a Igreja era um desdobramento do
Estado; aportara a uma terra em que cada data festiva fazia repicar no ar os sinos das catedrais
e desdobrava por sobre a cidade os pálios e as sedas roxas dos paramentos sacros; vinha
pregar ao povo, amante de procissões, que rojava na poeira das ruas quando passavam as
imagens seguidas de soldados. E Kalley veio e pregou contra os pálios, contra as imagens e
contra o povo a rojar, escudado na doce crença de Jesus...
Íamos os dois, eu e o Rev. Marques, pelo asfalto do campo da Aclamação. Muito cedo
ainda, os pássaros cantavam indiferentes ao bulício da grande praça, e eu, cada vez mais
encantado, ia a ouvir tão suave conversa.
Era o diletantismo da evangelização.
- Era o conforto moral que a religião dá. Se até hoje os nossos evangelizadores são
apedrejados, se nos fecham as igrejas, imagine a impressão do protestante naquele tempo.
Kalley, o ousado capaz de afirmar meia dúzia de idéias desconhecidas, teve uma série
infindável de inimigos.
- O protestante! Que recordação de épocas históricas. Carlos IX, os huguenotes, o êxodo
para a América, o horror das imagens...
- Os populares naquele tempo não admitiam o funcionamento regular, com entrada franca,
das igrejas evangélicas. KalIey, três anos depois da sua chegada, fundava sem bulha, com
alguns adeptos, o primeiro templo evangélico, que chamou Fluminense.
- Há temperamentos de missionários. Kalley era um desses. Olhe que podia viver muito
bem na Escócia, à beira dos lagos, entre os verdes lindos dos vales. Preferiu a nossa cidade de
há meio século, bárbara, feia, cheia de calor; esteve vinte anos no Rio, e só voltou à pátria
quando teve a certeza de deixar uma igreja completamente organizada.
- E deixou?
- Ao partir, em 1876, a igreja tinha uns cem membros, havia um pastor substituto, João
Manuel Gonçalves dos Santos, eram presbíteros Francisco da Gama, Francisco da Silva Jardim
e Bernardo Guilherme da Silva e diáconos João Severo de Carvalho, Antônio Soares de
Oliveira, Manuel Antônio Pires de Melo, José Antônio Dias França, Manuel Joaquim Rodrigues,
Manuel José da Silva Viana e Antônio Vieira de Andrade. O esforço fora recompensado.
Frutificara a semente, e já outras igrejas iam nascendo.
- A Igreja Fluminense tem muitas filiais?
- Tem. Há outras Igrejas organizadas por ela, e a essas seria mais apropriado chamar
igrejas congregacionais. São essas a de Niterói, cujo pastor é o Rev. Leônidas da Silva, e que
possui um belo edifício na rua da Praia, tendo cerca de cem membros; a de Pernambuco, a de
Passa-Três, a de São José de Bonjardim e a que eu pastoreio no Encantado, organizada a 10
de maio, com 56 membros.
Antônio Marques terminara a sua frase com tal carinho que o interrompi:
- Vejo que ama o seu rebanho!
- Não há melhor!... gente simples, boa, capaz de ouvir a palavra do Senhor...
Fez uma pausa, sorriu.
- Devo-lhe dizer que essas igrejas têm também as suas missões. Só a de Passa-Três tem
no Cipó, no Arrozal de São João Batista e em toda a zona mais próxima do Estado do Rio.
- A Igreja Fluminense é só de nacionais?
- É a única no Brasil que não tem proteção estrangeira, que vive dos seus próprios
recursos apenas; - é o completo atestado do nosso esforço moral. Já educou três jovens para o
mistério, sustenta três missionários, acabou de construir um templo e, apesar disso, ainda o ano
passado teve no seu "budget" um saldo de oito contos. Sendo nacional, recebe entretanto na
sua comunhão pessoas de ambos os sexos crentes em Cristo.
- E tem uma escola?
- Tem duas: a dominical, de leitura bíblica, e uma outra diária para as crianças, dirigida
pelo Sr. Joaquim Alves e D. Carlota Pires. A característica da igreja é a evangelização da
cidade, uma evangelização que vai de porta em porta, levando auxílios, carinhos, paz moral. Há
a Sociedade de Evangelização, a União Bíblica Auxiliadora de Moços, a União das Senhoras, a
União das Moças, das Crianças... Os templos congregacionais também têm idênticas  sociedades.
No Encantado, além de duas outras, nós, que estamos em caminho de ter um templo,
vamos organizar agora o Esforço Cristão Juvenil.
- Mas uma evangelização assim constante?
- Os rapazes distribuem folhetos, fazem a expedição pelo Correio, vão de porta em porta
com subscrições para mandar companheiros estudar na Europa. Eu lhe posso citar os nomes de
João Menezes, Isaac Gonçalves, Luiz Fernandes Braga, Antônio Maria de Oliveira... São tantos!
E todos brasileiros.
Havia na voz do pastor um justo orgulho. Eu emudeci um instante, acompanhando-o.
Nesta cidade de comércio, em que o dinheiro parece o único deus, homens moços e fortes
pregam a bondade de porta em porta, como os pobrezinhos pedem pão! Ou eu delirava, ou
aquele cavalheiro calmo, de redingote de alpaca, dava-me o favo da ilusão, como outrora Platão
entre árvores mais belas e discípulos mais argutos.
- A igreja tem hoje um patrimônio grande? - fiz com o desejo de voltar à realidade.
- Sempre aumentado, mas regulado ainda pelos estatutos de 1886, aprovados pelo
governo imperial, quando ministro o Barão Homem de Melo. O patrimônio criado com donativos
e legados consiste em prédios e títulos da dívida pública. A administração é eleita anualmente
dentre os membros da igreja, compõe-se de um presidente, dois secretários, um tesoureiro e um
procurador, que têm a seu cargo representar a igreja em todos os seus negócios. Deus tem
abençoado a nossa obra.
- As igrejas evangélicas abundam entre nós, pastor. Falam-me agora numa seita, os
miguelistas, que dizem ter Jesus Cristo voltado ao mundo, encarnado no Dr. Miguel Vieira
Ferreira...
- As verdadeiras igrejas evangélicas do Rio são a Fluminense, a Metodista, a
Presbiteriana, a Batista e a Episcopal para os ingleses e os alemães. Nós propriamente, filhos
da Fluminense, somos congregacionistas.
A religião é uma só, havendo apenas diferença no ritual e na forma do governo
eclesiástico.
O nosso governo é congregacionista, composto de pastor, presbítero e diáconos.
Atualmente na Igreja Fluminense o pastor é Gonçalves dos Santos, os presbíteros José Novais,
José Fernandes Braga e Gonçalves Lopes, os diáconos Antônio de Assunção, Guilherme Tâner,
José Valença e José Martins.
- Há uma tal subdivisão de ritos entre os evangelistas.
- Nós nos regulamos por 28 artigos de fé. Cremos na existência de um Deus, na trindade
de pessoas, na divindade de Jesus Cristo, na sua encarnação, nascendo de Maria e sendo
verdadeiro Deus e homem.
Estávamos à esquina da rua Floriano Peixoto. Verdadeiro homem! Ia perguntar,
aprofundar a intenção da frase. O pastor, porém, continuava.
- A Bíblia foi escrita por inspiração divina.
- Não há dúvida.
- Só acreditamos em doutrinas que por ela possam ser provadas. E por isso cremos na
imortalidade da alma, na vida futura, na punição eterna dos que não pensam em Jesus, na
ressurreição dos mortos, no julgamento do tribunal de Deus.
Antônio Marques parara defronte da igreja, um casarão que tem em letras grandes este
apelo convidativo. - Vinde e vede!
- Custou muito?
- Uns setenta contos.
- E o pastor ainda é o substituto de Kelley?
- Ainda. Conhece-o?
- É um ancião de maneiras secas.
- Oh! tem-se esforçado tanto. Há vinte e sete anos que trabalha sem cessar. Foi a Londres
estudar o ministério, voltou e nunca mais nos deixou. É o mais antigo ministro evangélico do
Brasil, e hoje os seus sessenta e dois anos curvam-se a um trabalho insano. Entre; hoje é o dia
da comunhão.
Entrei. Uma sombra tranqüila aquietava-se na sala. Os ruídos de fora, da alegria  movimentada da rua, chegavam apagados. No coro, nem viva alma; pelos bancos, alguns perfis
emergindo da sombra, muitos atentos e calmos; ao fundo, em derredor de uma mesa onde
havia garrafas e pratos de prata, vários senhores. E naquela paz vozes cantavam:
Disposta a mesa, ó Salvador,
Vem presidir aqui,
Ministra o vinho, parte o pão
Tipos, Jesus, de ti!
Depois, no silêncio que se fizera, o pastor disse:
- Bendito Deus! e a prece evoluía-se direta, pedindo para que se retificasse o fato em
memória da morte de Cristo. Era a consagração.
Gonçalves dos Santos tomou do pão e o partiu, os presbíteros foram pela sala com os
pratos lavrados de prata, onde branquejavam os pedaços do bolo sem fermento.
- Tomai isso e comei!
Sentei-me humilde no último banco. Como nos evangelhos, eu via os homens darem de
comer o pão de Deus, e darem a beber o sangue de Jesus. Era tocante, naquele mistério, na
paz da vasta sala, quase deserta. E, com gula, a cada um que eu seguia no gozo da suprema
felicidade, parecia-me ver o seu olhar, - o olhar, a janela da alma! - voltar-se para o céu na
certeza tranqüila de um repouso celeste.
Quando a cerimônia terminou, como um ruflo de asas brancas, de novo as vozes
sussurraram.
Eu trouxe a salvação
Dos altos céus louvor,
É livre o meu perdão,
É grande o meu amor.
- Que faz tão triste aí? - disse-me o pastor Antônio. - Aos moços quer Deus alegres! E eu
que lhe fora buscar uma Bíblia e o Cristão, o nosso jornalzinho! Venha falar ao pastor.
Ergui-me. Manuel Gonçalves dos Santos, com a sua barba alvadia e o seu duro olhar,
fitava-me.
Voltei do sonho para reflorir uma lisonja. Eu já o sabia um probo, praticando o ministério
sem remuneração de espécie alguma. Santos conservava-se de gelo. Falei da coesão das
igrejas, da propaganda, do evidente progresso do evangelismo no Brasil, com a sua simples
essência de fé, gabei o hospital que estão a concluir.
O pastor então discorreu. A única religião compatível com a nossa República é
exatamente o evangelismo cristão. Submete-se às leis, prega o casamento civil, obedece ao
código e é, pela sua pureza, um esteio moral. A propaganda torna cada vez mais clara essas
idéias, no espírito público aos poucos se cristaliza a nítida compreensão do dever religioso. Os
evangelistas serão muito brevemente uma força nacional, com chefes intelectuais, dispondo de
uma grande massa. E, de repente, com convicção, o velho reverendo concluiu:
- Havemos de ter muito breve na representação nacional um deputado evangelista.
Apertei a mão do mais antigo ministro evangélico do Brasil. Diante dos esforços que me
contara Antônio Marques, a minha alma se extasiara; durante a comunhão, vendo o grave grupo
beber o sangue de Jesus, eu sentira o bálsamo do sonho. Mas enquanto meus olhos olhavam
com inveja o outro lado da vida, a margem diamantina da Crença, o pastor sonhava com o
domínio temporal e a Câmara dos Deputados...
Eterna contradição humana, que não se explicará nunca, nem mesmo com o auxílio
daquele que no Apocalipse sonda o coração e os rins e anda entre sete candeeiros de ouro!
Eterna contradição, que cativa a alma de uns e faz as religiões triunfarem através dos
séculos!

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