segunda-feira, 18 de março de 2013

João do Rio - 3°Parte











 AS SACERDOTISAS DO FUTURO

O futuro é o deus vago e polimorfo que preside aos nossos destinos entre as estrelas, o
incompreensível e assustador deus dos boêmios nas caravanas da Ásia, a Força oculta, o
perigo invisível. Hugo e Alencar acreditavam nessa divindade, e não há entre os deuses quem
maior número tenha de sacerdotes e de sacerdotisas.
Só os cultores do Futuro, podem modificar a fatalidade, afastar a morte, sacudir o saco de
ouro da fortuna, soltar o riso da alegria na tristeza dos séculos. As sacerdotisas do Deus
tremendo infestam a nossa cidade, tomam conta de todos os bairros, predizem a sorte aos ricos,
compõem um mundo exótico e complexo de cartomantes, nigromantes, sonâmbulas videntes,
quiromantes, grafólogas, feiticeiras e bruxas.
Essa gente cura, salva, desfaz as desgraças, ergue o véu da fortuna, faz esperar, faz crer,
vive em prédios lindos, em taperas, em casinholas - é o conjunto das pitonisas modernas, as
distribuidoras de oráculos. Em meio tão variado há de haver ignorantes - a maioria -
cartomantes que vêem nas cartas caminhos estreitos e caminhos largos e não sabem nem
distribuir o baralho, sonâmbulas falsificadas, portuguesas e mulatas que se apropriam dos
moldes dos africanos, e mulheres inteligentes que conversam e discutem.
Freqüentei os templos do futuro. Só em uma semana visitei oitenta, encontrando-os
sempre cheios de fiéis. O caleidoscópio alucinante das adivinhas faz a vida livremente. Em
algumas casas encontrei três e quatro, girando sob uma única firma.
Só na rua do Hospício, por exemplo, há cinco ou seis. Nos outros pontos conversei com
Mme. Jorge na rua da Ajuda, a Liberata na rua da Alfândega, a Joana Maria da Conceição na
rua Figueira de Melo, a Amélia de Aragão, a Luiza Barbada na rua Barão de S. Felix, a Amélia
do Pedregulho, a Amélia Portuguesa, a Cândida, a Mme... da rua dos Arcos, 4, a Ximenes da
rua da Prainha, 19, Maria de Jesus na rua Dr. Maciel, 7, Castorina Pires em S. Diogo, a Amélia
da rua do Lavradio, dona Martins na rua Mariz e Barros, a Alexandrina na rua da América, Mme.
Hermínie na rua Senador Pompeu, Maria Baiana na rua do Costa, a Genoveva da rua do
Visconde de Itaúna, Dona da rua da Imperatriz, 15, a Corcundinha célebre adivinha de atores e
de repórteres, na deixa um rol infindável. Todas falam do seu desinteresse exigindo dinheiro e
algumas vendo o futuro nas mãos, nem ao menos sabem as linhas essenciais segundo o
engraçadíssimo Desbarolles. A observação nessas casinholas é incolor. Fica-se entre os feitiços
dos minas e a magia medieva, numa atmosfera de burla.
Mas é lá possível não acertar às vezes? A vida humana tem uma linha geral. Tanto amam
as heroínas de Bourget como as lavadeiras, gozam e gostam de ser gozados os freqüentadores
da haute-gomme com os dançarinos dos becos esconsos. As vidas têm uma parecença em
bloco, uma uniformidade de sentimentos. Por mais ignorantes que sejam, as sacerdotisas têm o
hábito da observação, indagam da vida antes, em conversa. Muitas chegam a perguntar:
- Vem por dor ou por amor?
E como sabem perfeitamente quando se dirigem a um cavalheiro, a uma dama, às
coccottes ou aos rufiões, as suas respostas acertam. É um exercício de atenção, antes de tudo,
com cenários e pedidos sugestivos. Uma delas recebe velas de sebo, terminada a consulta;  outras, peças de chita. A turba dá-lhes dinheiro, e sussurra os seus segredos nos ouvidos dessa
gente que são como abismos de discreto silêncio.
Na peregrinação pelos templos do Deus Futuro guardo como originais uma casa de
cartomancia na rua do Ouvidor entre as modistas do tom e a elegância máxima, a Ceguinha
vidente da rua da Misericórdia, a Rosa que olha nágua e é astróloga, Mme. de F. sonâmbula
numa rua paralela à praia de Botafogo, a Corcundinha da rua General Câmara e a esquisita
Mme. Matilde do Catete.
A Ceguinha tem a face macerada e é a exploração de quatro ou cinco. Vive numa cadeira,
com os olhos cheios de pus. O grande Deus fez-lhe a treva em torno, para melhor ler a sorte dos
outros nos meandros do céu. Dizem que os agentes da polícia vão lá para saber o paradeiro dos
gatunos e que os gatunos também vão a ver se escapam. Imóvel como um santo indiano à porta
da imortalidade, a Ceguinha, com a mesma dutilidade, desvenda-lhes o Futuro. Às vezes
aparecem senhoras. A Ceguinha curva-se, e pinta o Destino com a mesma calma dolorosa.
A Rosa, com as fontes saltadas, o que em magia se chama cornos de Moisés, é um
assombro de observação. Esse exemplar único de astrologia conhece mesmo algumas práticas
antigas. Quando a fomos procurar, olhou-nos bem.
- Por que veio, se nunca acreditará?
- Estou numa situação difícil.
- Ouça a voz de Deus.
- Mas a minha alma sofre.
- O homem tem muitas almas...
- Mas se posso saber o futuro nágua?
- A água é onde se miram os astros que têm a vida da gente.
- Como se consulta?
- Vendo... Alguns astros de outrora não têm mais importância hoje: outros receberam-lhe a
força. Os meus horóscopos são certos; o Destino ordena-me. Mas eu só falo com os homens
que a dor faz tristes e crentes.
A Corcundinha, discípula de uma Josefina, tem uma fama tão grande que chega a deitar
cartas por dia, às vezes para mais de cinqüenta pessoas. Cada consulta custa cinco mil réis e
ela só anuncia coisas lúgubres.
Mme. de F... esteve na Inglaterra; em estado natural discute o psiquismo, e quando
sonambulizada aparece numa túnica preta. Dizem que predisse os acontecimentos da nossa
polícia e prevê um futuro desagradável da pendência brasileira com o Peru. E lúgubre. A roda
que a freqüenta, dá-se como ultrachique.
Mme. Matilde, a cartomante do high-life, já teve criados de casaca e possui uma linda
galeria de quadros. De todos os templos, o dessa senhora é o mais excêntrico. Mme. Matilde,
para os íntimos a princesa Matilde, é uma criatura que fala com volubilidade.
Há alguns anos foi a Paris, onde estudou com Papus e Mme. de Thèbes. Conhece a
cartomancia, a telepatia, o sonambulismo, a metafísica das estrelas, a quiromancia, coisas
complicadas de que faz uma interessante confusão. Além de tudo isso, a princesa é crítica de
pintura e interessa-se pelo movimento universal. Quando me anunciei, a agradável dama
mandou iluminar o seu salão de visitas, e entre as colchas japonesas, os quadros de valor, os
bibelôs do Oriente e as peles de tigres, fez a sua aparição.
Vinha de vestido vermelho, um vestido de mangas perdidas, donde os seus braços
surgiam cor de ouro, e vinha com ela a essência capitosa de vinte frascos de perfume. Mme.
Matilde embalsamava. Deixou-se cair num divã, passeou com as mãos pelo ar e disse:
- Estou cansadíssima. Se não me mandasse dizer quem era, não o teria recebido.
Simpatizo com o seu ser.
Curvei-me comovido.
- Não podia falar das sacerdotisas do Futuro, sem ouvi-la.
- Já tem percorrido os templos do grande Deus?
- Alguns. Visitei oitenta, e há para mais de duzentos.
- Há templos de ouro, de prata, de cobre e de latão.
- Guardei para o fim o melhor.

- Meu caro, os verdadeiros templos do Futuro são de data recente entre nós. A sorte
começou a ser descoberta aqui por negros da África imbecis e por ciganos exploradores. Depois
apareceram as variações espíritas, os adivinhos que montavam casinholas receosas, reunindo
ao estudo das cartas a necessidade dos despachos africanos. Uma crendice! As verdadeiras
sacerdotisas datam de pouco tempo, são de importação e anunciam. Essas não se ocultam
mais e dão consultas claramente.
- Como em Paris?
- Como em Paris. Não lhe falo de Papus, de quatro ou cinco sonâmbulas de fama
universal, mas apenas da minha ilustre professora Mme. de Thèbes. Mme. de Thèbes em Paris
é uma necessidade mundana como o clube, as premières, o grandprix.
Vai-se a Mmc. de Thèbes como se joga uma partida de boston. É uma necessidade
elegante. Mme. de Thèbes tem hoje uma fortuna.
- E erra sempre.
- Nunca.
- É sacerdotisa por vocação?
- Sempre estudei as ciências ocultas por diletantismo. Das ciências ocultas saíram as
ciências exatas, disse um grande mestre. Desde criança amei a antiguidade, tive o desejo de
remontar ao Zoroastro, ao Zend-Avesta e aos Magos, com o prazer de descansar à beira do
Nilo, de conhecer Plotino e os livros herméticos.
Depois, sempre fui dotada de uma grande força nervosa. Uma vez, levando amigas à casa
de uma sonâmbula, resolvi estudar os truques das mercadorias e daí a minha conversão.
Nesse momento, como a profetisa ria, estendendo as mãos, vi-lhe na sinistra vários anéis
complicados, e prendi-lhe os dedos, curioso das jóias e da mão.
- Está vendo os meus anéis? Este é africano, partido. Tem os signos do zodíaco - o
tempo. Este outro guarda no fundo um berilo, por onde se enxerga a alma. Naturalmente é
descrente?
- Sou filho de uma civilização muito parecida com a daquele imperador que
precavidamente levantava templo aos deuses desconhecidos. Há em tudo alguma coisa a temer
- o inexplicável. A história é uma afirmação de oráculos, de sonambulismo, de predições.
Eu guardara com religião a mão da pitonisa; Mme. Matilde, porém, ergue-se agitando os
seus perfumes.
- E não teme? e não lhe parece sugestivo este interior? Não receia que daquele canto
escuro surjam fantasmas, que, agarrando a sua mão, leia nessas linhas a desgraça
irremediável?
- Se for assim - disse docemente -, que se há de fazer? É a vontade do Futuro...
- Pois, meu caro, pode ter a certeza de que não somos só as sacerdotisas do terrível
Destino, somos as Consoladoras, a Teoria do Bem, as Sofredoras da Ilusão. Não sorria.
Sem nós, que seria das cidades? Os senhores andam à cata do documento humano. Nós
temos à mão, todos os dias, as tragédias, os dramas e as comédias de que se faz o mundo. À
nossa casa vêm as mulheres ciumentas, os que desejam a morte e os que desejam amor. Os
adultérios, os crimes, os remorsos, a luxúria, as vergonhas fervilham. Nós consolamos.
Diariamente, nas casas de que tomou o número para indicá-las à polícia, encontram-se os
conquistadores, os homens bem vestidos de que a polícia ignora os meios de vida; os
senadores, os deputados, as pessoas notáveis, as atrizes, as cocottes, as senhoras casadas, os
imbecis propondo coisas indecorosas e as almas dolorizadas.
Nós a todos damos o favo da ilusão... Quando morre meu pai? Meu marido abandoname? Será minha a mulher de Sicrano? Fulana é fiel? Realiza-se o negócio? E nós aquietamos
os instintos com o lenitivo do bem. Ainda há pouco tempo, entrou por esta sala uma menina em
prantos. Era domingo. Não deito cartas aos domingos.
Neguei-me. Soluçou, pediu, ajoelhou. Logo que a vi, percebendo a sua agitação, espalhei
as cartas ao acaso. A menina vai cometer um desatino! Ela olhou-me espantada. Sim, ia dali
suicidar-se, porque a abandonara o amante, grávida e sem trabalho. Fiz as cartas dizerem que o
amante voltava e a pequena não morreu.
- Cartas salvadoras!
- Dias antes aparecera um marido a interrogar-me a respeito do seu ménage, derruído por  incompatibilidade de gênios. Ela escrevia-lhe cartas pedindo para voltar. Que devo fazer?
Voltar! Mas teve amantes! É boa. Abandonada sem saber trabalhar e sem recursos queria o
senhor que a pobre morresse? Depois foi-lhe o Sr. fiel? Não! Era lá possível a ela deixar de ter
um amante?...
- Ou mesmo dois?
- Ou três, não vai ao caso. Ele refletiu e vivem os dois bem. Quantos desmandos
evitamos, quantas desgraças, quantos escândalos! Recorda-se da história do oráculo de
Delfos? É a história da prudência, de ser ambíguo para não se enganar. A nossa é muito mais
difícil.
- Mente com franqueza.
- Diz verdades e consola. Muitas das minhas clientes vêm aqui apenas como um consolo.
Contam as mágoas e vão-se.
- Que trabalho deve ter!
- Faço experiências até altas horas com o meu criado Júlio, e vou às estalagens, aos
cortiços, ler grátis nas mãos dos pobres. Não imagina como sou recebida!
Deito cartas, leio nas mãos. É o estudo em que procedo sem perguntar para ter a certeza.
E é certo! Adivinho coisas de há quatro e cinco anos passados, chego a descrever as roupas
das pessoas distantes e prevejo. A previsão é de resto uma faculdade que desenvolvi.
- É feliz?
- Tudo quanto quero, faço.
- Tem talvez a alma de algum mágico antigo...
Mme. Matilde recostou o seu corpo elegante.
- Não: tive três vidas apenas. Da primeira fui físico, da segunda advogado e na terceira
odalisca...
Oh! mistério! A sacerdotisa possuía o saber dos físicos, falava como um advogado e
naquele momento tinha a inebriante doçura das odaliscas.
Peguei-lhe a mão e disse baixinho:
- Já um ocultista me afirmou que fui Nero e depois Ponce de Leon...
Ela riu um riso penado.
- Ponce atraído pelo mistério das mãos.
- Pela beleza.
- Todos nós temos a atração das mãos. A mão é um resumo do Céu. Cada astro tem a
sua parte. Júpiter é o índex, Saturno o médio, o Sol o anular, Mercúrio Hermés o mínimo. A Lua
tem a região do Sul, Marte todo o meio, onde se dão os combates da vida e Vênus o grande
monte.
- É este o mais trabalhoso?
- Quase sempre.
Ergui-me, e vi numa outra sala, forrada de esteiras da Índia, um oratório onde ardiam
lamparinas. Os santos, sob o halo de luz, que a ciência explica pelo raio n, como o esforço da
atenção - tinham um olharzinho redondo e inexpressivo. Que diriam os coitados, santo Deus do
Futuro?
- Neste meio de adivinhas, quiromantes e sonâmbulas é melhor ser impassível - dizia
Mme. Matilde. - Às vezes protegem amores, são casas ambíguas.
- Mas as suas experiências?
- Pratico o sonambulismo como as cartas, a telepatia e a quiromancia, indo diretamente à
alma que nós temos no fundo. Tudo é domínio. As últimas experiências do meu domínio tive-as
com o conhecido pintor Hélios Seelunger. Curei o uma vez com água magnetizada. Desde então
dizia-lhe às 2 horas de tal dia o senhor sofrerá um choque. Era tal qual.
Noutro dia sofria o choque. Fui eu de resto que lhe desvendei o futuro e a sorte nas mãos.
- E a transmissão de pensamento?
Já em Botafogo transmiti idéias a criaturas no Engenho Novo. Conhecem essas
experiências poetas como Luís Edmundo, o padre Severiano de Resende, pintores como
Amoedo. A minha amiga D. Adelina Lopes Vieira também as conhece

Lembrei-me então de que Mme. Matilde era também literata.
- Mas as cartas?
- Quer vê-las?
Tocou o tímpano, apareceu um pequeno loiro com um sarcófago de prata em relevo.
Mme. Matilde - a princesa para os íntimos - abriu-o com cuidado, e de dentro numa sombria
apoteose de ouros e cores, as cartas do tarot, a papesse, o doido, o ás de ouro, o enforcado, o
bateleur escamoteador surgiram tenebrosamente.
Mãos estendiam moedas de ouro, o ouro cintilava, em altos montes figuras sinistras
apareciam. E estava ali a consolação universal, a consolação dos pobres e dos potentados! Nas
mãos delicadas da feiticeira último grito rolava numa série de iluminuras a miragem enganadora
do Futuro. Ela estendia as cartas nas luzes e eu recordava a origem antiga dessa doce ilusão, a
vinda dos Boêmios.
- Quem sois vós?
- Sou o duque do Egito e venho com os condes e barões.
- Quem vos traz?
- A que precede o nosso cortejo e lê nos livros coloridos de Hermés o destino do mundo, a
rainha das Cabalas, a sublime senhora do fogo e do metal! E em frente à multidão abriam o
tarot como quem rasga o céu, o consolo infinito dos boêmios.
Eu estava ali como os camponeses da época de Carlos VI diante da senhora do metal -
apenas, tanto a rainha como eu, um tanto mais descrentes.
Então curvei-me, depus o beijo que há muito sentia nos lábios, o beijo da devoção, na sua
mão perfumada.
- Como em Paris! - fez ela, deixando que os meus lábios roçassem a extremidade dos
seus dedos.
- Como na hora de sempre - murmurei -, o Medo, diante do Futuro.

A NOVA JERUSALÉM

A sede da Nova Jerusalém, anunciada pelo Apocalipse, fica na rua Maria José, n.0 10. É
uma casa de dois pavimentos, muito alta, pintada de vermelho-escuro, que assenta à beira da
rua Colina como uma fortaleza.
De longe parece formidável aos reflexos do sol, que queima todas as vidraças, e
reverbera nas escadas de pedra; de perto é solene. Abre-se um portão, sobe-se uma das
escadas, abre-se outro portão, dá-se num pátio que termina para a frente em estreitas arcarias
ogivais e perde-se ao fundo num jardim obumbroso. Desse pátio vê-se o declive das ruas que
descem, e vagos trechos da cidade.
Antes de bater, olhamos ainda a casa alta. Detrás daqueles muros viceja a religião de
Swedenborg, a nova igreja, a verdadeira compreensão da Bíblia; detrás daqueles muros,
iluminados da luz da tarde, guarda-se a chave com que tudo se pode explicar neste mundo. "Eu
sou o Deus - disse Jesus a Swedenborg -, o Senhor, o Criador e o Redentor, e te elegi para
explicares aos homens o sentido interior e espiritual das Escrituras Santas. Ditar-te-ei o que
escreveres!"
Subimos mais uma escada de pedra nua, no patamar da qual nos recebe o Sr. Frederico
Braga. Esse cavalheiro amável é uma espécie de "diletante" dos cultos. Dizem que já foi até
faquir, fazendo crescer bananeiras de um momento para outro. Neste momento, porém, limitase a fazer-nos entrar para uma sala simples e, enquanto nós vagamente o interrogamos,
passeia da porta para a janela.
- O pastor está aí - diz de repente. - Ninguém melhor do que ele pode informar.
O pastor é o Sr. Levindo Castro de la Fayette, que aparece logo. Homem de fisionomia
inteligente, falando bem, com o ar de quem está sempre na peroração de um discurso
interrompido por apartes, o pastor agrada. Há decerto nos seus gestos um pouco de morgue, o
íntimo orgulho de ser profeta de uma religião de intelectuais, de espalhar pela terra a palavra do
maior homem do mundo, que tudo descobrira na ciência terrestre e vira Deus na terra celeste.
O Sr. la Fayette consulta o óculo brilhante, fala da conquista da Nova Igreja através do
mundo, fala torrencialmente. É a história do swedenborgismo desde a morte de grande  visionário, desde a defesa de Tomás Wright e Roberto Hindmarsh, que demonstraram o perfeito
estado mental do mestre, até à reunião dos adeptos de Swedenborg em Londres em 1788,
donde começou a expansão do culto novo que agora aumenta diariamente na Áustria, na
França, na Inglaterra, na Austrália, nos Estados Unidos, com igrejas novas e novos adeptos.
Pode-se calcular em cento e vinte mil o número de crentes.
O Sr. Frederico Braga mostra-nos as revistas alemãs e inglesas, o New Church
Messenger a New Church Review, onde vêm reproduzidas em fotogravura as fachadas dos
novos templos através do mundo.
- A verdade caminha! - diz o pastor -, e leva-nos à sala onde se realizam as reuniões dos
swedenborgeanos. É no 1.º pavimento, na frente, uma sala nua. Ao centro uma grande mesa,
rodeada de cadeiras com uma cadeira mais alta para o pastor. Ao lado a biblioteca, onde se
empilha a obra interminável de Swedenborg desde os Arcania Ca'lestia até o Tratado do Cavalo
Branco do Apocalipse.
A Nova Jerusalém do Brasil data de 1898. Foi seu fundador o próprio Sr. de la Fayette, e
isto devido a revelações que recebera em Paris alguns anos antes. É o caso que o pastor, nesse
tempo simples professor de português num instituto parisiense, foi nomeado chanceler do
consulado-geral do Brasil na França. Essa função fê-lo desejoso de conhecer a verdade
espiritual, e, para que a verdade brilhasse, de la Fayette observou logo um rigoroso regime de
temperança em todas as coisas... Swedenborg, cavaleiro da ordem eqüestre da Suécia, que de
tudo escrevera e falara, só em 1745 teve a revelação de que estava talhado para explicar os
símbolos da Bíblia. Mas Swedenborg comia muito. A primeira vez que os espíritos invisíveis lhe
falaram foi durante um jantar. O filósofo engolia vorazmente no quarto reservado de um hotel,
onde à vontade devorava e pensava, quando sentiu a vista se lhe empanar e répteis horríveis
arrastarem-se pelo soalho. Os olhos pouco tempo depois recobraram a visão perfeita e
Swedenborg viu, distintamente, no ângulo da sala, um homem com o seio em luz que lhe dizia,
paternalmente:
- Não comas tanto, meu filho!
De la Fayette não precisou desse celeste conselho. Praticou-o antes da revelação; - e foi
por isso que meses depois, começou, durante o sono, a receber ensinamentos do mundo
espiritual a respeito da palavra de Deus. Desde esse tempo o Sr. Levindo foi guiado pelo céu, e
chegou até à Biblioteca Nacional.
- Que livro hei de pedir? - interrogou aos seus botões o homem feliz.
- Pede Swedenborg! - bradaram os espíritos bons de dentro do Sr. Levindo.
O iluminado pediu os Arcania Caelestia, em latim, porque além de cinco línguas vivas, lê
correntemente a língua em que Catulo escreveu tão belos versos e tão sugestivas patifarias. Leu
os Arcania, foi à igreja da rua Thouin, conversou com Mme. Humann que o recebeu
inefavelmente doce, e meses depois, era batizado na nova igreja.
Em agosto de 1893, o Sr. de la Fayette, que é mineiro, veio para o Rio, mas quando aqui
chegou a revolta estalara, havia estado de sitio, e não teve remédio senão abalar para as
montanhas do seu Estado. A cidade de Lamim, em Minas, foi onde primeiro se falou no Brasil
da Nova Jerusalém.
De volta ao Rio, o pastor fez um adepto, o Sr. Carlos Frederico Braga, também mineiro. A
adesão foi rápida. O Sr. Carlos concordou logo com o Sr. de la Fayette, como concordava
naquele instante em que eu os ouvia. Daí por diante Levindo foi o texto do credo e Carlos
Frederico o comentário entusiasmado. Esses dois homens atiraram-se pela cidade a explicar a
Nova Jerusalém, a fazer compreender pelos homens inteligentes as sagradas interpretações do
prolixo Swedenborg, escritas sob as vistas de Cristo Deus, que é só. Quatro anos depois
reuniram na rua Minervina cinqüenta swedenborgianos, fundando duas sociedades: - a
Associação de Propaganda da Nova Jerusalém, pela imprensa, conferência e leitura das obras
do mestre, e uma sociedade de beneficência para auxiliar os irmãos brasileiros.
Um jornal, a Nova Jerusalém, foi logo publicado e existe há oito anos; o círculo da
propaganda aumentou, amigos em viagem levaram a notícia ao Pará, ao Rio Grande do Sul, à
Minas e, afora esses adeptos, cerca de duzentos swedenborgianos reúnem-se aos domingos
para ouvir de la Fayette narrar o símbolo de Adão, explicar o sentido único de cada palavra em
todos os livros da Bíblia e louvar Swedenborg.
- Swedenborg! eu não preciso dizer-lhe quem foi esse extraordinário espírito que tudo
descobriu da terra e do céu. Na sua época, chamou a atenção de grandes cérebros como
Goethe, Kant, Wesley, de Wieland, Klopstock...

Nós batemos as pálpebras, gesto que Swedenborg considera sinal de entendimento e
sabedoria. Goethe pusera o filósofo no Fausto com o pseudônimo de Pater Seraphicus, Kant
falando dele recorda o cumprimento do seu cocheiro a Tycho Brahe: "o Sr. pode ser muito
entendido nas coisas do céu, mas neste mundo não passa de um doido". Os outros não tinham
sido mais amáveis. Mas para que discutir? O ministro da Nova Jerusalém continuava contando
a atenção e curiosidade dos povos modernos pelo extraordinário profeta do Norte. Depois
parou.
- O que é, em síntese, a Nova Jerusalém? - perguntei.
Swedenborg, ao morrer em casa de um barbeiro, achava desnecessário receber os
sacramentos por ser de há muito cidadão do outro mundo. A respeito dessa região o cidadão
escreveu enormes volumes ex auditis et visis, isto é, sobre o que vira e ouvira.
Os Arcania, o tratado do Céu e do inferno, o tratado das Representações e
Correspondências, a Sabedoria Angélica sobre o divino Amor e a divina Sabedoria, a Doutrina
Novae Hierrosalymae, as terras do nosso mundo solar e no céu astral, até o Amor Conjugal,
com umas máximas arriscadas sobre o amor escortatório, explicaram bem as suas
extraordinárias viagens.
Swedenborg esteve no inferno e conversou com tanta gente que Mater para simplificar fez
uma lista cronológica desde os deuses gregos até os contemporâneos; teve relações íntimas
com os espíritos de Júpiter, de Mercúrio, de Marte e até da Lua, apesar de não simpatizar muito
com esses que eram pequenos e faziam barulho. Não foi só. O extraordinário homem viu o
paraíso, ouviu os anjos, esteve com Deus em pessoa. Era natural que compreendesse o sentido
das correspondências entre os espíritos dos planetas e o máximo homem, que revelasse ao
mundo o sentido íntimo espiritual ou celeste das revelações que até então ficara ignorado.
"A doutrina da Igreja atual é viciosa, deve desaparecer" e Swedenborg, com os olhos
espirituais abertos, não inovou, elucidou os textos sagrados.
A nova igreja tem um catecismo que explica e resume a Nova Jerusalém e a sua doutrina
celeste. Assim o homem foi criado por Deus para amar a Deus e fazer o bem ao próximo. Quem
faz mal, vai para o inferno, quem faz bem, vive com luxo e conforto no reino do céu que,
segundo Swedenborg, tem edifícios magníficos, parques encantadores e vestidos bonitos. O
homem aprende a fazer o bem nos dez mandamentos. É simples e fácil.
O Senhor, deve o homem julgá-lo o único Deus, em que está encarnada a Santíssima
Trindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A trindade perfaz numa só pessoa a alma, o corpo
e o ato da obra. Na Trindade Divina, o Pai é a alma, o Filho o corpo, o Espírito Santo a operação
condensados numa só pessoa: - Jesus. É esta a divergência capital do Catolicismo. A Nova
Jerusalém é o cristianismo primitivo. Os seus membros não têm ambições e ajudam-se uns aos
outros, praticando a caridade, o único amor capaz de nos desprender de nós mesmos para nos
aproximar de Deus. A regeneração vem da oração. O homem ora só a Jesus, porque o mais é
idolatria. Todas as ciências e religiões nada são sem o conhecimento de Deus. Possuidores
desse conhecimento, os swedenborgeanos têm a chave da interpretação exata de tudo e
explicam com harmonia espiritual todas as ciências e todas as religiões.
- Não se podia voltar ao Cristianismo, ao tempo em que começou a ser falsificado - diznos o Sr. de la Fayette. - Seria desconhecer as leis da ordem divina, que teria desse modo
perdido quinze séculos, quando esse período serviu para a execução das suas obras sempre
misericordiosas. O Senhor anunciou que, na consumação dos séculos, isto é, no fim da igreja
atual, viria, "nas nuvens do céu, com poder e glória" fundar outra igreja que não terá fim. Esta
igreja é a Nova Jerusalém, que o Senhor instaurou, retirando o véu que ocultava o Verbo...
Escurecia. As trevas entravam pela sala onde o Verbo é revelado. Em derredor, quanto
abrangia o olhar, via-se a cidade reclinada por vales e montes, preguiçosamente. No céu
puríssimo as estrelas palpitavam devagar; pela terra estrelavam os combustores um infinito
recamo de luzes.
- Vou aos Estados Unidos - disse o ministro - comprar livros, editar obras minhas para
franquear a biblioteca ao povo. A regeneração far-se-á!
E nós descemos o monte, onde, naquela casa de pedra, duzentos homens,
compenetrados do secreto sentido das correspondências, louvam todos os domingos
Swedenborg que gozou o Céu, e Jesus que é a caridade e o supremo Amor.

O CULTO DO MAR


O Culto do Mar é praticado pelos pescadores das nossas praias. É um culto variado,
cosmólatra e fantasista, cm que entram a lua e alguns elementos divinizados.
- Não conhece os nossos pescadores? Gente tranqüila. Raramente se agridem e sempre
por questão de pesca.
Os pescadores formam um corpo distinto, diverso dos catraeiros, dos marítimos, dessa
população ambígua e viciada que anda no cais à beira das ondas perturbadoras. Não há canto
da nossa baia que não tenha uma colônia de pescadores. Vivem todos muito calmos, sem saber
do resto do mundo. Enfim, uma classe à parte, com festas próprias, que não se afasta do
oceano e é unida pelo culto do mar. Os pescadores são os últimos idólatras das vagas.
Conversar com eles é ter impressões absolutamente inéditas de moral, de filosofia e de religião.
- Mas essas colônias são brasileiras? - indaguei do meu informante.
- Não. Há colônias só de portugueses, como a de Santa Luzia e de Santo Cristo, de
portugueses e brasileiros, como em Sepetiba, de italianos apenas, de brasileiros só. Uma série
de núcleos ligados pela crença. São outros homens. Nascem de mães pescadoras, partejadas
quase sempre por curiosas, vivem nas praias, nunca as abandonam. Aos quatro anos nadam,
aos dez remam e acompanham os parentes às pescarias, e assim passam a existência,
familiarizados apenas com as redes, os apetrechos de pesca e o calão, o pitoresco calão
marítimo.
O oceano imprime-lhe um cunho especial, são propriedades do mar. Nunca reparaste nos
pescadores? Têm os pés diferentes de todos, uns pés contráteis que se crispam nas pranchas
como os dos macacos; andam a bambolear, balouçando como um barco, e a sua pele lustrosa
tem o macio grosso dos veludos. A alma dessa gente conserva-se ondeante, maravilhosa e
simples.
- Mas os pescadores são cristãos?
- Está claro. Mas cristãos puros é difícil encontrar hoje afora os evangelistas e os sírios.
- Lembro-me da festa de Nossa Senhora, na Lapa.
- É outra coisa.
- Vi em Santa Luzia a devoção de São Pedro.
- Era promessa de um rapaz que, por falta de meios não a continua. Deixemos N. Senhora
e São Pedro. Falo de um culto que emana no intimo respeito das ondas. Todos os pesca-dores
das praias e das ilhas próximas festejam, sacrificam ao mar e têm um objeto especial de
devoção. Não há nenhum que não tema a Mãe-d'Água, a Sereia, os Tritões e não respeite a
Lua. Conheço três manifestações desse culto. A Mãe-d'Água entre os pescadores de Santo
Cristo e de Santa Luzia, a da Lua, e do Mar e a do Arco-Íris.
- O Arco-Íris?
- Em Sepetiba. É dos mais completos e dos mais belos, tendo como sacerdote uma
mulher.
O Arco-Íris, a adoração de um deus que se curva nas nuvens policromo e vago, que ergue
das ondas um facho de luzes brandas e desaparece, o terror daquilo que se desfaz, sem que se
saiba como! Era uma fantasia! Mas os cosmólatras inventam tanta coisa para perfumar a sua
ignorância, que bem podia ser.
- Não há dúvidas - disse o meu amigo. - O arco-íris, é uma antiqüíssima divindade, um
anúncio dos céus. Lembra-te disso e acompanha-me.
Acompanhei-o, durante um inverno, muito úmido e muito estrelado. Os pescadores têm
um temor incalculável da polícia. Desde que um curioso aparece, guardam segredo das suas
crenças e negam toda e qualquer co-participação em religião que não seja a católica. Como são
primitivos e rudimentares, porém, a bondade que têm é fundamental, transforma-os e não há
nenhum que não acabe confiante e falador, exagerando para espantar os mistérios
cosmológicos. Esses mistérios são de uma beleza delicada e antiga, de uma beleza de
rapsodos que relembra as fantasias escandinavas e helenas, um montão de lendas e de ritos
enervantes. Há nas práticas e nas idéias trechos de Hesíodo, de Cristo e dos pretos-minas e a
gente afunda-se, quando os quer guardar, num banho de cristal batido pelo sol.
Quase sempre os diretores das festas, os sacerdotes não são pescadores. Em Santo
Cristo é o padeiro Carvalho, homem de posses - diz o meu amigo. Os sacrifícios são feitos
geralmente à noite.

Vamos os dois interrogar os pescadores. Essa gente teme a Mãe-d'Água, tendo a
longínqua recordação de que ela aparece vestida de branco seguida de homens barbados de
verde. A aparição feminina grita de repente, apaga as luzes na barca, faz as cerrações, afasta
os peixes, e às vezes canta.
- Como a Darclée?
- Como as sereias meu caro. Os pescadores têm que cair no fundo da barca tapando os
ouvidos. Ulisses amarrava-se...
Para aplacar a deusa do mar, ser impalpável e lindo, os pescadores fazem o sacrifício de
um carneiro. Matam o bicho à beira do oceano; o sangue cai numa cova aberta na areia. Depois
partem canoas levando pedaços do animal com presentes que deixam cair no fundo da baía
com uma oração votiva.
Um rapazola, lindo como o Apolo do Belveder, responde às nossas perguntas:
- Eu fui batizado, patrão.
- Mas sabe a história da Mãe-d'Água?
- Sei, sim. Aqui, para Mãe-d'Água ser boa fazem-se despachos. Na ilha do Governador
compram tudo do mais fino, põem a mesa à beira da praia, com talheres de prata, copos
bonitos, a toalha alva e galinhas sem cabeça, para a santa comer.
- Que diferença há entre Nossa Senhora e a Mãe-d'Água? - indago interessado.
- Nossa Senhora está no céu. Mãe-d'Água é diferente; é a devoção, é como um santo do
Mar... E sopra-me na cara uma baforada de fumo mau.
O meu amigo, cheio de literatura, declama logo:
- Não compreendes! A água é em toda a parte uma religião. O Nilo foi feito das lágrimas
de Isis, o Ganges é o fator da crença da imortalidade, os gregos povoaram o mar de habitantes
sagrados.
Lembra-te dos arías ao descer do planalto: - "ó mar, grande laboratório!..." Laboratório da
vida da crença.
E leva-me a uma outra praia, a compreender como tudo depende do mar e da lua. Ele
conhecia um velho pescador, José Belchior. O velho recebe-o com intimidade e conta-me o que
pensa deste mundo. É curiosíssimo.
Para José o mar representa o homem, o princípio ativo. Por isso o mar é superior em tudo
à terra, que como a mulher só serve para o descanso. O oceano circunda a terra num longo
abraço. O mar só sofre uma influência, a da lua, que mostra a sua face de trinta em trinta dias e
o faz inquieto e a arfar. Nela mora Nossa Senhora com o seu filho Jesus, e esse doce
alampadário de ouro desencadeia os ventos, faz as tempestades, esconde os peixes, baixa as
marés e guia as naves. Se Nossa Senhora quisesse, parava a lua quando ela vem cheia, e tudo
seria então magnífico. Como as coisas não são assim, fazem-se promessas, pede-se aos
santos para interceder e, nas noites de luar, fazem uma passeata em embarcações com velas
de cera acesas na mão e rezando baixinho.
Todas essas pequenas modalidades reúnem-se em Sepetiba no culto geral do Arco-Íris.
Há festas de três em três meses, despachos simples e uma grande solenidade, que já foi feita a
2 de fevereiro e atualmente se realiza em junho, no dia de S. Pedro.
Estive lá nesse dia. A sacerdotisa é uma portuguesa reforçada, que se chama Maria
Matos da Silva. Só são permitidos na festa pescadores, e os pescadores vão de toda a parte ao
culto singular. A casa de Maria da Silva fica mesmo no ponto dos bondes, e nos dias de festa
está toda adornada de folhagens e galhardetes. Todos, lavados e de roupas claras, a dona da
devoção manda buscar os negros feiticeiros para preparar os ebós e fazer a matança dos
animais.
Ela própria deita as cartas para saber quem deve ir levar os sacrifícios e os desejos sutis
do Arco-íris.
No interior da casa, onde ardem velas, é proibida a entrada com exceção das que tomam
parte nos sacrifícios. Em frente os pescadores bebem, cantam e dançam o cateretê. Se por
acaso no céu se curvam as cores do espectro, prosternam-se todos radiosos clamando pelo
milagre. O milagre porém, como todo o milagre, é raro.
Maria da Silva tem sempre a seu lado o coronel Rodrigues, velho guarda nacional, que
com os pés metidos em grossos tamancos, sentencia máximas morais para a assembléia. Os
pescadores que apanham na rede um boto, levam-no à mulher do culto para preparo do azeite das festas sagradas.
Vou pela praia, alanhada por um vento álgido. No céu aparecem nuvens, na areia
descansam três barcas enfeitadas. Um rapazola guarda-as. E ele quem nos dá informações a
respeito da gente que dança. Reina entre estas criaturas uma perfeita amoralidade. Como não
há barulhos graves, não se vai à polícia. Conselhos dão os velhos. A mulher serve para procriar,
obedece cegamente ao homem, cose, trabalha, é inferior. O macho domina. O respeito aos
anciãos existe, porque estes sabem das manhas dos peixes, anunciam as tempestades,
ensinam. Quanto ao amor, deve ser muito diverso do nosso...
- E as festas, quem as faz?
- Para as festas concorrem todos.
Das três barcas que eu via, a primeira era para o Arco-íris, a segunda para a Mãe-d'Água
e a terceira acompanharia as duas formando a trilogia, duas na frente e uma atrás.
O meu amigo, lembrando mitologias diversas, quis saber a razão desse triângulo. O rapaz
respondeu apenas:
- É costume.
É costume também pagar em todas as religiões. Tanto os feiticeiros como os condutores
das barcas recebem dinheiro. Os remadores pertencentes ao Arco-Íris têm seis mil réis, os da
Mãe-d'Água três e os acompanhadores nove. À noite, já no céu negro o crescente lunar, depois
dos búzios e dos baralhos terem indicado os dias em que não se poderá pescar, começa o
sacrifício.
Forçado a ficar de longe, embrulhado num paletó em que tiritava, vi sair da casa da Maria
uma teoria de camisolas brancas com as lanternas de azeite de boto na mão, acompanhando
dois homens, um vestido de seda, outro de cetim.
O primeiro era o voga da canoa do Arco-íris, o segundo ia dirigir a da Mãe-d'Água. As
canoas foram arrastadas para o mar. Na do Arco-Íris iam os mais finos presentes com os
despachos, na da Mãe-d'Água objetos caros e femininos. Quando as canoas partiram em
direção ao Norte, levando aqueles estranhos remadores vestidos de morim branco, os que
ficaram na praia levantaram os braços, e a Maria da Silva, na turba, sorria como quem se
desobriga de uma promessa sagrada.
- E ao voltarem, que há? - indaguei ao rapaz.
- Voltam de costas, de frente para o mar, entram assim em casa; os remadores, menos os
do Arco-íris, batem com a cabeça no chão, e a festa continua.
- Mas que é o Arco-íris, afinal?
- O Arco-íris indica se a gente está bem com Deus. É um aviso, o sinal da união, o único
meio por que o mar se deixa ver... e a crença.
Olhei mais o oceano soluçante sob o vento álgido.
As barcas todas acesas de luzes frouxas perdiam-se na fosforência lunar; os remadores
cantavam, e eu ouvia como a copla de uma barcarola nostálgica. Em frente da casa de Maria, o
cateretê delirava e sombras de adolescentes desciam a praia ágeis e finas.
A Maria, sentada, sorrindo, era indecifrável.
E para que decifrá-la? O seu culto era o culto de todas as épocas e de todos os homens.
O mar continua a ser o grande mistério. Para os espíritos simples que temem o diabo e guardam
na alma crenças acumuladas, só a Lua com a imagem de Nossa Senhora pode explicar a
angústia do mar e só as sete cores do arco do céu podem simbolizar o vago mistério da união
do oceano e do homem.

O ESPIRITISMO
ENTRE OS SINCEROS

O marechal Ewerton Quadros esperava um bonde para a cidade, quando um bonde
passou inteiramente vazio.
- Por que não toma este? - perguntaram-lhe.
O marechal mergulhou mais a face adunca nas barbas matusalêmicas:
- Não é possível. Está cheio de espíritos maus! - e, como aparecesse outro inteiramente  cheio, agarrou-se ao balaústre e veio de pé até à cidade.
Desde que se deixa a traficância do baixo espiritismo, que se conversa nas rodas
intelectuais cultivadas, esse estado alucinante torna-se normal.
Ao subirmos as escadas da Federação, o meu amigo ia dizendo.

There are more things in heaven and earth, Horatio,
There are more dreams in your philosophy.

Esses melancólicos versos temerosos, do mundo invisível, resumem o nosso estado
mental.
Muita coisa há no mundo de que não cuida a nossa vá filosofia, muita coisa há neste
mundo invisível...
Já não se conta o número de espíritos ortodoxos, conta-se a atração dos nossos cérebros
mais lúcidos pela ciência da revelação. A Marinha, o Exército, a advocacia, a medicina, o
professorado, o grande mundo, a imprensa, o comércio têm milhares de espíritas. Há homens
que não fazem mistério da sua crença. Os generais Girard e Piragibe, o major Ivo do Prado, o
almirante Manhães Barreto, Quintino Bocaiúva, Eduardo Salamonde, os Drs. Geminiano Brasil,
Celso dos Reis, Monte Godinho, Alberto Coelho, Maia Barreto, Oliveira Menezes, Alfredo
Alexander proclamam a pureza da sua fé. A Federação tem 800 sócios e ainda o ano passado
expediu 48 mil receitas.
Os que não praticam a moral, aceitam a parte fenomenal. E ao chegar a essa esfera que
se começa a temer a frase do católico: "O espiritismo é um abismo encantador; foge ou de lá
nunca mais sairás". Se na sociedade baixa, centenas de traficantes enganam a credulidade com
uma inconsciente mistura de feitiçaria e catolicismo, entre a gente educada há um número talvez
maior de salas onde estudam o fenômeno psíquico e a adivinhação do futuro, com
correspondência para Londres e um ar superiormente convencido.
Decerto, em parte, a frivolidade que faz senhoras elegantes citarem poetas franceses e
conversarem de ocultismo nos gutters invernais, faz de algumas dessas sessões um
divertimento idêntico à lanterna mágica e ao laun-tennis; decerto há entre os mais convictos
Bouvard, Pécuchet e mesmo o conselheiro Acácio; mas, frívolos e tolos foram sempre os meios
inconscientes de expansão de uma crença, e o espiritismo científico deles se serve para triunfar.
Nas rodas mais elegantes, entre sportsmen inteligentes, lavra o desespero das
comunicações espíritas, como em Paris o automobilismo.
Ainda há alguns meses senhores do tom, ao voltarem do Lírico, encasacados e de
gardênia ao peito, comunicavam-se no Hotel dos Estrangeiros com as almas do outro mundo,
por intermédio de uma cantora, medium ultra-assombroso.
À tarde na Colombo, esses senhores combinavam a partie de plaisir, e à noite nos
corredores do Lírico, enquanto o Caruso rouxinoleava corpulentamente para encanto das almas
sentimentais, eles prelibavam as revelações sonambúlicas da medium musical.
Esses fatos são raros, porém, e as experiências assombrosas multiplicam-se; os mediuns
curam criaturas a morrer. Leôncio de Albuquerque, que tratava caridosamente a Saúde em
peso, anuncia, sem tocar no doente, o primeiro caso de peste bubônica, e cada vez mais
aumenta o número de crentes.
O meu amigo dizia-me:
- Nunca se viu uma crença que com tal rapidez assombrasse crentes. Se o Figaro dava
para Paris cem mil espíritas, o Rio deve ter quase igual soma de fiéis. O Brasil, pela junção de
uma raça de sonhadores como os portugueses com a fantasia dos negros e o pavor indiano do
invisível, está fatalmente à beira dos abismos de onde se entreve o além. A Federação publicou
uma estatística de jornais espíritas no inundo inteiro. Pois bem: existe no mundo 96 jornais e
revistas, sendo que 56 em toda a Europa e 19 só no Brasil.
- Como se reconhecem as nossas aptidões literárias!
- Não ria. Tudo na terra tem a sua dupla significação.
- E quais são essas revistas e jornais?
- Mensageiro, em Manaus (Amazonas); Luz e Fé e Sofia, em Belém (Pará); A Cruz, em
Amarante (Piauí); Doutrina de Jesus, em Maranguape (Ceará); A Semana (ciências e letras), no
Recife (Pernambuco), A Verdade, em Palmares (Pernambuco); O Espírita Alagoano, A Ciência, em Maceió, (Alagoas); Revista Espírita, em S. Salvador (Bahia); Reformador, no Rio de Janeiro;
Fraternização, Verdade e Luz, A Nova Revelação, O Alvião e A Doutrina, em Curitiba (Paraná);
Revista Espírita, em Porto Alegre (Rio Grande do Sul); A Reencarnação, no Rio Grande; O Allan
Kardec, em Cataguazes (Minas Gerais).
- Como começou esta propaganda no Brasil?
- Homem, o Sr. Catão da Cunha diz que os primeiros espíritas brasileiros apareceram no
Ceará ao mesmo tempo que em França. A propaganda propriamente só começou na Bahia, no
ano de 1865, com o Grupo Familiar do Espiritismo.
Era o espiritismo em família, ab ovo, porque aos quatro anos depois surgiu o primeiro
jornal, dirigido pelo Dr. Luís Olímpio Teles de Menezes, membro do Instituto Histórico da Bahia.
Esse jornal intitulava-se O Eco de Além Túmulo. A propaganda tem sido rápida.
Ainda em 1900 no seu relatório ao Congresso Espírita e Espiritualista de Paris, a
Federação acusava adesões de setenta e nove associações e o aparecimento de trinta e dois
jornais e revistas de propaganda, entre os quais o Reformador, que conta vinte e quatro anos de
existência.
Basta esse relatório para afirmar a força latente da crença.
- Vamos à Federação, o centro onde se praticam todas as virtudes do espiritismo. Verá
com os seus próprios olhos.
A Federação fica na rua do Rosário, 97. É um grande prédio, cheio de luz e de claridade.
Cumprem-se aí os preceitos da ortodoxia espírita; não há remuneração de trabalho e nada se
recebe pelas consultas. A diretoria gasta parte do dia a servir os irmãos, tratando da
contabilidade, da biblioteca, do jornal, dos doentes. A instalação é magnífica. No primeiro
pavimento ficam a biblioteca, a sala de entrega do receituário, a secretaria, o salão de espera
dos consultantes e os consultórios. Seis mediuns psicográficos prestam-se duas horas por dia a
receitar, e as salas conservam-se sempre cheias de uma multidão de doentes, mulheres,
homens, crianças, figuras dolorosas com um laivo de esperança no olhar.
A casa está sonora do rumor contínuo, mas tudo é simples, caridoso e sem espalhafato.
Quando entramos não se lhe altera a vida nervosa. A Federação parece um banco de caridade,
instalado à beira do outro mundo. Os homens agitam-se, andam, conversam, os doentes
esperam que os espíritas venham receitar pelo braço dos mediuns, sob a ação psicográfica,
falam e conversam enquanto o braço escreve.
Atravessamos a sala dos clientes, entramos no consultório do Sr. Richard. Há, uma hora
que esse honrado cavalheiro, espírita convencido, escreve e já receitou para quarenta e sete
pessoas.
- Há curas? - perguntamos nós, olhando as fileiras de doentes.
- Muitas. Nós, porém, não tomamos nota.
- Mas o senhor não se lembra de ter curado ninguém?
- A mim me dizem que pus boa uma pessoa da família do general Argolo. Mas não sei
nem devo dizer. É o preceito de Deus.
Deixamo-lo receitando, já perfeitamente normalizados com aquele ambiente estranho, e
interrogamos. Há milhares de curas. A Sra. Georgina, esposa do Sr. César Pacheco, depois de
louca e cega, ficou boa em dez dias; o Sr. Júlio César Gonçalves, morador à rua de Santana, n.
26, que tinha o corpo num só dartro, curou-se em dois meses com passes magnéticos; D.
Jesuína de Andrade, viúva, quase tísica, em trinta dias salva, e outros muitos.
Que valor têm essas declarações? Os doentes enfileirados parece crerem e o Sr. Richard
é a fé em pessoa. É quanto basta talvez.
No segundo pavimento, encontramos desenhos de homens ignorantes inspirados pelos
grandes pintores. Rafael guia a mão de operários em movimentados quadros de batalhas, e
outros pintores mortos, sob incógnito, fazem desenhos extraordinários por intermédio de
maquinistas da Armada...
Essas coisas nos eram explicadas simplesmente, como se tratássemos de coisas
naturais.
- Quando há sessão? - perguntou o nosso amigo.
- Hoje, às 7 horas. Podem ver, é a sessão de estudo.
Nós ainda olhamos fotografias de espíritos, o retrato de D. Romualdo, um sacerdote que
de além-túmulo vem sempre visitar a Federação, e esperamos a sessão de estudo, atraídos,  querendo ver, querendo ter a doce paz daqueles entes.
A sessão começou às 7½, na sala do 2.º andar, toda mobiliada de canela cirée com frisos
de ouro. Nas cadeiras, cavalheiros de sobrecasaca, senhoras, demoiselles. Os bicos Auer
acesos banhavam de luz clara toda a sala, e pelas janelas abertas ouviam-se na rua o estalar
de chicotes e gritos de cocheiros.
Sem as visitas do irmão Samuel, ninguém diria uma sessão espírita. Depois de lida e
aprovada a ata da sessão anterior, como na Câmara dos Deputados, Leopoldo Cirne, o
presidente, que ao começo nos dissera um adeusinho, perfeitamente mundano, transfigura-se e
a sua voz toma suavidades inéditas.
- Concentremo-nos, irmãos!
Imediatamente todos fechamos os olhos, como querendo concentrar o pensamento numa
única idéia. As senhoras tapam o rosto com o leque e têm os olhos cerrados. De repente, como
movida por todas aquelas vontades, a mão do psicógrafo cai, apanha o papel, o lápis, e escreve
rapidamente linhas adelgadas. No silêncio ouve-se o lápis roçando o papel de leve; e é nesse
silêncio que o lápis pára, o medium esfrega os olhos e começa a leitura da comunicação.
- "Paz! Irmãos. Deus seja convosco. As palavras do filósofo grego: conhece-te a ti
mesmo...
É Samuel o espírito que fala, achando que para compreender a vida e o bem é necessário
antes de tudo conhecermo-nos a nós mesmos. Leopoldo Cirne não se move.
Quando Samuel termina, ouve-se então a sua voz delicada, trêmula de humildade.
É ele quem faz o comentário.
- Meus irmãos, essas palavras que Sócrates mandou inserir no templo de Delfos...
E esse homem, que nós vemos tão correto e tão mundano, gostando de Eça de Queirós e
lendo Verlaine, surge-nos o pastor, o rabi, o iniciador. O seu semblante espiritualiza-se em
atitudes extáticas, a sua voz é a blandícia mesma que nos acaricia a alma pregando a bondade
e a demolição das vaidades. As senhoras ouvem-no ansiosas; ao nosso lado dizem-no
inspirado, atuado pelos espíritos. De tal forma é sutil o seu raciocínio, de tal forma desfaz velhas
crenças no incensário de um Deus espiritual que, decerto, se o atuam espíritos, fala pela sua
boca Ponce de Léon.
Ele cala, enxuga a face. Depois, no estudo do Evangelho, no trecho de Jesus com os
escribas e fariseus sobre o alimento da alma, de novo a sua voz corre como um fio d'água entre
sombras macias, sorvida por toda aquela gente atenta e sôfrega. Leopoldo Cirne acaba num
sopro, tão baixo que mais parece uma vaga harmonia.
Em seguida fala o Sr. Richard, que condena alguns dos nossos males, entre os quais o
patriotismo - porque não se pode amar uns mais do que outros, quando todos, são iguais
perante Deus.
- Terminamos o nosso estudo. Não há mais quem queira falar?
Leopoldo Cirne ergueu a loira cabeça de Salvador, fixando os olhos na minha pobre
pessoa. Era a atração do abismo, uma explicação indireta, feita como quem, muito cansado da
travessia por mundos ignorados, viesse a conversar à beira da estrada com o viandante
descrente.
"O Espiritismo, fez ele, ou revelação dos espíritos, sistematizada em doutrina por Allan
Kardec, que recolheu os seus ensinos acerca do universo e da vida e das leis que os regem, e
com os quais formou as obras ditas fundamentais O Livro dos Espíritos - O Livro dos médiuns -
O Céu e o Inferno - A Gênese - O Evangelho segundo o Espiritismo, reúne o tríplice aspecto de
ciência, filosofia e moral ou religião.
Como ciência de observação, estuda, não somente os fenômenos espíritas, desde os
mais simples, como os ruídos e perturbações (casas mal-assombradas) e os efeitos físicos
(deslocação de objetos sem contato) etc., até os mais transcendentes, como as materializações
de espíritos (observações de Crookes, Aksakoff, Zoellner, Dr. Gibier etc.), como também todos
os fenômenos da natureza, investigando a gênese de todos os seres, numa vasta síntese, e
neles buscando a origem do princípio espiritual, dos estados mais rudimentares aos mais
complexos pois que um germe, um esboço dessa natureza parece constituir a essência de toda
forma. Em tais condições, relaciona-se com todos os ramos das ciências humanas: a física, a
química, a biologia, a história natural etc., sem esquecer a própria astronomia, por isso que
igualmente sonda o universo sideral, "as diversas moradas da casa do Pai" de que falou Jesus,
e que são os mundos habitados, disseminados no infinito.

Ao lado de tais observações, procura fixar as leis do universo e da vida, das quais a da
evolução é a chave, estando tudo submetido ao progresso, na ordem física, moral e intelectual.
Como filosofia, sobre esses dados da observação desdobra as mais lógicas induções,
partindo do infinitamente pequeno e dos raciocínios mais elementares para o infinitamente
grande e até às mais transcendentes conseqüências, isto é, até à demonstração da existência
de Deus.
Sobre aquele princípio da evolução universal, prova com a pluralidade dos mundos a
pluralidade das existências da alma, a imanência da lei eterna de justiça, em virtude da qual o
espírito, depois de cada existência, colhe as lições da experiência (de resto, permanente na vida
quotidiana) e sofre as conseqüências de seus atos bons ou maus, sendo assim feliz ou
desgraçado, trazendo para a outra existência, em uma nova encarnação, as suas aquisições do
passado, que se denunciam nas tendências e aptidões inatas, guardando assim latente a
reminiscência substancial desse passado, com esquecimento apenas do circunstancial, isto é,
dos fatos concretos e dos incidentes, além de tudo porque no cérebro atual só se acham
gravadas as impressões dessa nova vida. Tudo o mais está guardado nas profundezas da
subconsciência, podendo reaparecer nos estados de sonambulismo e, em geral, em todos os
casos de desdobramento - experiência do magnetismo e de psicologia transcendental.
Assim prossegue, de vida em vida, a evolução insefinitae do espírito, sendo-lhe acessíveis
todas as perfeições, que conquistará pelo próprio esforço.
Com a evolução dos indivíduos e, por conseguinte, das humanidades, coincide a evolução
dos mundos fisicamente, devendo a nossa terra, como todas as do espaço, ao aperfeiçoamento
já assinalado das épocas pré-históricas aos nossos dias acrescentar novos e constantes
aperfeiçoamentos, em harmonia com essas maravilhosas leis da criação, que constituem o lado
mais belo do estudo filosófico do Espiritismo.
Como moral ou religião e no sentido de favorecer a realização do seu ideal filosófico, o
Espiritismo se propõe o restabelecimento do Evangelho de Jesus, que a igreja deturpou e fez
cair no olvido.
O seu lema é: "Fora da caridade não há salvação..."
E por conseguinte tolerante e, fiel às máximas cristãs fundamentais: "Não faças aos
outros o que não queres que te façam".
- "Ama o teu próximo como a ti mesmo", não hostiliza nenhuma crença, respeitando todas
as convicções sinceras.
E, sob qualquer dos seus aspectos, partidário do livre exame, nada recomendando que
seja aceito e admitido sem a sanção do raciocínio, porque sabe, com o Mestre Allan Kardec,
que "a única fé inabalável é aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas
da humanidade".
O Espiritismo, em suma, sobre explicar todas as aparentes anomalias da vida, vem
oferecer o conforto e a esperança aos que sofrem, aos que erram e se transviam no mal,
cedendo às suas múltiplas ciladas; vem esclarecer acerca das suas responsabilidades, dando à
vida um objetivo alto, nobre e digno, sobranceiro às torpes materialidades e às transitórias
vicissitudes; aos que procuram lealmente a verdade proporciona um ideal que ultrapassa as
mais exigentes aspirações da inteligência e da razão.
A todos oferece a calma interior, a paz, a resignação, a paciência e a fé inabalável no
futuro. É, pois, o problema da regeneração e da felicidade humana que vem resolver.
Houve um longo silêncio. Um homem magro levanta-se e conta que veio da casa de um
irmão agonizante. O irmão deseja uma oração e pede aos amigos não o deixem de ver.
- Concentremo-nos! - diz de novo a voz expirante do presidente.
As frontes curvam-se, o medium toma o lápis. É Samuel que volta.
- Paz! - diz ele - a vaidade é um monte que nos separa do bem. Entretanto, irmãos...
Com a presença do espírito de Samuel, levantam-se todos e Richard faz a oração pelo
irmão agonizante para que o guarde em bons céus.
Depois um arrastar de cadeiras, apertos de mão, riso, conversa. Está acabada a sessão.
Leopoldo Cirne volta da sua transfiguração, recobrando a voz habitual e a cortesia de sempre.
Faço, receoso, um cumprimento aos seus dotes sagrados.
- Ah! - sim? faz ele, pasmado, como se nunca se tivesse ouvido.
Então peguei no chapéu sorrateiramente. Esse constante estado flutuante entre a  realidade e o invisível, essas fugidas ao espaço para conversar com os espíritos, a caridade
evangélica do homem à beira do real eram alucinantes. Desci as escadas devagar, aquelas
escadas por onde subia sempre a romaria dos enfermos; na rua enxuguei a fronte, olhando o
edifício, menos misterioso que qualquer clube político. E como passasse um bonde inteiramente
vazio, refleti que esse bonde podia ser como o do marechal Quadros e voltei, a pé, devagar,
para não dar encontrões nas pessoas que talvez comigo tivessem passado todo aquele dia do
outro mundo.

OS EXPLORADORES

False Sphinx! False Sphinx! by reedy Styx
Old Charon, learning on his oar
Waits for my coin. Go thou before...
Ao chegar à praça Onze, tomamos por uma das ruas transversais, escura e lôbrega.
Ventava.
- É aqui - murmurou cansado o nosso amigo, parando à porta de um sobrado de
aparência duvidosa.
Havia oito dias já andávamos nós em peregrinação pelo baixo espiritismo. Ele, inteligente
e esclarecido, dissera:
- Há pelo menos cem mil espíritas no Rio. É preciso, porém, não confundir o espiritismo
verdadeiro com a exploração, com a falsidade, com a crendice ignorante. O espiritismo data de
1873 entre nós, da criação da Sociedade de Confúcio. Talvez de antes; data de umas curiosas
sessões da casa do Dr. Melo Morais Pai, a bondade personificada, um homem que andava de
calções e sapatos com fivelas de prata. Mas, desde esse tempo, a religião sofre da
incompreensão de quase todos, substitui a feitiçaria e a magia.
Foi então que começamos ambos a percorrer os centros, os focos dessa tristeza.
O Rio está minado de casas espíritas, de pequenas salas misteriosas onde se exploram a
morte e o desconhecido. Esta pacata cidade, que há 50 anos festejava apenas a corte celeste e
tinha como supremo mistério a mandinga, o preto escravo, é hoje como Bizâncio, a cidade das
cem religiões, lembra a Roma de Heliogábalo, onde todas as seitas e todas as crenças existiam.
O espiritismo difundiu-se na populaça, enraizou-se, substituindo o bruxedo e a feitiçaria. Além
dos raros grupos onde se procede com relativa honestidade, os desbriados e os velhacos são
os seus agentes. Os médiuns exploram a credulidade, as sessões mascaram coisas torpes e de
cada um desses viveiros de fetichismo a loucura brota e a histeria surge. Os ingênuos e os
sinceros, que se julgam com qualidades de mediunidade, acabam presas de patifes com
armazéns de cura para a exploração dos crédulos; e a velhacaria e a sem-vergonhice encobrem
as chagas vivas com a capa santa do espiritualismo. Quando se começa a estudar esse mundo
de desequilibrados, é como se vagarosamente se descesse um abismo torturante sem fundo.
A polícia sabe mais ou menos as casas dessa gente suspeita, mas não as observa, não
as ataca, porque a maioria das autoridades têm medo e fé. Ainda há tempos, um delegado
moço freqüentava a casa de um espírita da praia Formosa para se curar da sífilis. Se os
delegados são assim apavorados do futuro, reduzindo a mentalidade à crença numa panacéia
misteriosa, o pessoal subalterno delira.
- Veja você - disse-nos o amigo espírita -, toda a nossa religião resume-se nas palavras de
Cristo à Samaritana: "Deus é espírito e em espírito quer ser adorado". Essa gente não
compreende nada disso, maravilha-se apenas com a parte fenomenal, com a canalhice e a
magia. É horrível. Os proprietários dos estabelecimentos de cura anímica a preço reduzido
exploram; o povaréu vai todo, aliando as crendices do novo às bagagens antigas. São católicos
ou perdidos a servirem-se dos espíritos como de um baralho de cartomante.
Com efeito, todas as casas em que entramos, estavam sempre cheias. Na maioria
freqüentam-nas pessoas de baixa classe, mas se pudéssemos citar as senhoras, as damas do
high-lífe que se arriscam até lá, a lista abrangeria talvez metade das criaturas radiosas que
freqüentam as récitas do Lírico. Alguns desses lugares equívocos não são só engodos da
credulidade, servem de máscaras a outras conveniências. A sessão fica na sala da frente, mas
o resto da casa, com camas largas, é alugado por hora a alguns pares de irmãos. O médium,
nesses momentos, deixa o estado sonambúlico para servir o freguês, e um centro espírita revestido de mistério, com o aparato das portas fechadas, dos passes e das velas acesas,
transforma a crença, cuja oblata é a virtude máxima, numa nódoa de descaro sem nome.
Nós visitamos uns cinqüenta desses milhares de centros. A cidade está coalhada deles.
Há em algumas ruas dois e três. Estivemos no Andaraí Grande, na rua Formosa, na estação do
Rocha, na rua da Imperatriz, no morro do Pinto, na praia Formosa, no Engenho de Dentro, na
rua Frei Caneca, na rua Francisco Eugênio, assistindo às sessões e ouvindo a vizinhança, que é
sempre o termômetro da moralidade de qualquer casa.
Um pouco de ceticismo ou de simples crença basta para compreender a pulhice dessas
pantomimas lúgubres.
Assim, há uma tropa de mulheres, a Galdina da rua da Alfândega, a negra Rosalina da
rua da América, a Aquilina da rua do Cunha, a Amélia do Aragão, a Zizinha Viúva da rua Senhor
de Matozinhos, a Augusta da rua Presidente Barroso, a Tomásia da rua Torres Homem, n.0 14,
que estabelecem o comércio com consultas de 500 réis para cima e praticam coisas horrendas,
abortos, violações a preço fixo e têm trabalhos em que são acompanhadas de secretárias; há
espíritas ambulantes, como o negro Samuel, que já foi cozinheiro, mora na rua Senador
Pompeu, n.
0 157, e vai de casa em casa fazer passes; há mulatos pernósticos, o Zizinho da rua
de S. Januário, o Claudino da rua de Santana, o Joãozinho da rua Sorocaba, com consultas
noturnas; há portugueses como um tal Sr. Carneiro, da Praia Formosa, e o Simões, da rua
Visconde de Itaúna, que exigem 20$000 por consulta e mandam os doentes comprar uma vela
de cera e tomar um banho de cevada. Há de tudo, até sinetas, rapazes de passinho rebolado,
que quando não prestam mais para o comércio público estabelecem-se nas ruas do meretrício
com adivinhações espíritas!
E nesse complexo notam-se os centros familiares, uma porção de centros, alguns dos
quais dão bailes mensais e, quando não são casas de fabricação de loucuras levando à histeria
senhoras indefesas, servem para a mais desfaçada imoralidade e a mais ousada exploração.
No morro do Pinto a feitiçaria impera. Numa sala baixa, iluminada a querosene, assentamse os fiéis, mulheres desgrenhadas, mulatinhas bamboleantes, negras de lenço na cabeça com
o olhar alcoólico, homens de calças abombachadas, valentes com medo das almas do outro
mundo, que ao sair dali ou ali mesmo não trepidariam em enfiar a faca nas entranhas do
próximo. As luzes deixam sombras nos cantos sujos. No momento em que entramos, o médium,
em chinelas, é presa de um tremor convulso. Diante do estrado, uma portuguesa, com o olhar
de gazela assustada na face velutínea, espera. A pobre casou, o marido deu para beber e,
desgraça da vida! bate-lhe de manhã, à noite, deixa-a derreada.
É a mãe dessa mulher que está dentro do médium. Todos tremem, de olhos arregalados.
De repente, o médium estarrece e por trás dos seus dentes, ouve-se uma voz de palhaço:
- Como estás, minha filha, vais bem?
- A mãe! A mãe! - murmura a portuguesita infeliz, aterrada, em meio o palpitante silêncio.
- Que deve fazer sua filha? - pergunta o evocador.
- Ter confiança em Deus. Eu devia estar no inferno. A misordia perdoou a mãe dela. Toda
a desgraça vem de um bruxedo que puseram na soleira da porta.
- Quem foi? - faz a portuguesa, numa voz de medo.
- Uma mulata escura que gosta do seu homem. Ele vai ficar bom. Dê-lhe o remédio que
eu receitar e crave um punhal no travesseiro três noites a fio.
Um homem magro, parecido com o general Quintino, faz uns passes; o médium volta a si
num sorriso imbecil.
- Está satisfeita? - pergunta o espertalhão dos passes.
- A mãe! a pobre da mãe tão boa! A portuguesa rebenta num choro convulso; uma negra
epilética, velha, esquálida, começa a gritar numa crise tremenda, enquanto o homem magro
brada:
- Está com o espírito mau! Está mesmo!
Essas cenas sinistras são compensadas por outras mais alegres. Num dos nossos
bairros, o médium dá sessões de manhã, evoca os espíritos para saber qual é o bicho que
ganha e, como é vidente, vê os espíritos com formas de animais.
- É o burro, é o burro! - grita em estado sonambúlico, e a rodinha toda joga no burro.
No Andaraí Grande o curandeiro é divertido e bailarino. Em vésperas de S. João dá um
bródio de estalo com ceia copiosa e vinhaça de primeira. Este tem a especialidade das  mulheres baratas. A rua de S. Jorge, a da Conceição, a do Senhor dos Passos, a do Visconde
de Itaúna lá extravasam a alma sentimental das meretrizes, dos soldados e dos rufiões. O nosso
homem cura tudo: dartros, feridas más, constipações, amores mal retribuídos, ódios. É
fantástico! As mulheres têm-lhe uma fé doida. O espiritismo para elas é o milagre, a intervenção
dos espíritos junto de um poder superior. Antes de ir à consulta, ajoelham no oratório e vão com
todos os seus bentinhos, as figas de Guiné, o espanta mau-olhado das negras minas. Mas o
cavalheiro do Andaraí é sagrado. Toda essa fé emana, dizem, de uma sua predição feliz. Uma
mulher que voltava da Misericórdia recebeu por seu intermédio comunicação de que seria
honesta; e três meses depois um homem sério levou-a. A suburra do Rio venera-o, freqüentalhe as festas e sustenta-o.
- São infames. O lema do espírita é: sem caridade não há salvação. Seja a caridade deles.
Quando não são isso, fazem das sessões, como o Torterolli, sessões de orgia pública... Não
posso mais!
Afinal, naquela noite tínhamos resolvido acabar a travessia pelos bas-fonds da crença,
com a alma entristecida pela visão de salas idênticas, onde o espiritismo substituía a bisca, os
espíritos servem de feiticeiros e dão remédios para pescar amantes; das salas que, como na rua
de S. Diogo, mascaram as casas de quartos por hora. A casa da rua transversal à praça Onze
seria a última a visitar.
- Entre - disse o meu amigo.
Enfiamos por um corredor escuro, subimos. No patamar um bico de gás silvava, batido
pelo vento da rua.
- Papai, dois homens - bradou uma voz de criança.
Logo apareceu, em mangas de camisa, um mulato de bigodes compridos, que se
desmanchou em riso e amabilidades para o meu companheiro.
- A que devo as honras? - disse sibilando os ss.
- As honras - como diz - deve-as ali ao irmão. É um simpático que quer crer e anda, na
dúvida, à procura da verdade. Que diz você da verdade?
- Verdade? Ora esta! Verdade é o espírito!
- Bravo!
Fomos entrando para a sala de jantar, com móveis de vinhático e garrafas por todos os
aparadores.
- Nem de prepósito - fez o cabra. - O médium está ali proseando com a gente.
O médium é um tipo de hébèté, de quase cretino. Lourinho, de um louro de estopa, com a
face cor de oca e as gengivas sem dentes, é carteiro de 2.ª classe dos Correios. Tem a farda
suja e a gravata de lado. Durante todo o tempo em que o mulato nos conta as suas curas, ele
sopra monossílabos e remexe a cabeça, dolorosamente, como se lhe estivessem enterrando
alfinetes na nuca.
Um mal-estar nos invade, como o anúncio de uma grande desgraça.
- Há tipos que usam ervas para fingir que é espírito - diz o curandeiro. - Eu não; cá comigo
é a verdade. Um desses oraras põe noz-vômica na água para os doentes lançarem e diz que é
o espírito limpando lá dentro. Pecado! Apre! Eu agora tenho um doentinho. Veio-lhe uma febre
de queimar. A mãe não tem quase dinheiro, mas não o gasta na farmácia. Eu o curo logo...
De repente parou. Pela escada subia um tropel, e uma mulher magra, lívida, aos soluços,
entrou na sala.
- Então que há?
- O pequeno está mal, muito mal, revirando os olhos. Salve-mo! Salve-mo!
- É o tal que eu lhes dizia. Não se assuste, D. Aninha. Eu já lhe disse que o pequeno
ficava bom; os espíritos querem. E para nós: venham ver.
Levou-nos ao terraço, ao fundo, mergulhou um litro vazio numa tina de água, encheu-o,
colocou-o em cima da mesa.
- Durma, Zezé, durma!
E esfregou as mãos na cara do carteiro, subitamente em pranto. O homem revirava os
olhos, sacudia a cabeça.
- É o espírito; veio, quer que seu filho fique bom... E de repente o diabólico começou a
estender as mãos do carteiro choroso ao gargalo do litro.

- Não está vendo o espírito entrar? Olhe... No litro cheio bolhas de oxigênio subiam
vagarosamente e a pobre mulher, agarrando a mesa, com os olhos já enxutos, seguia ansiada o
milagre que lhe ia salvar o filho.
De repente, porém, uma voz estalou embaixo, na ventania:
- Mamãe! Mamãe! Depressa! Joãozinho está morrendo, Joãozinho morre!
Essas palavras produziram um tal choque que nós saímos desvairados, de roldão, com o
mulato e a mulher, sentindo um travor de morte nos lábios, angustiados, lembrando-nos dessa
criança que a inconsciência deixara morrer. E na ventania cortada de chuva, entre as variadas
recordações dessa vida de oito dias horrendos pelos antros escuros onde viceja o espiritismo
falso, a visão dessa criança perseguia-nos cruciantemente, como o remorso de um grande e
infinito mal.
AS SINAGOGAS
Ontem, 14 de Hadar de 1664, eu assisti às cerimônias do carnaval nas sinagogas da Sion
fluminense. O esperto Mardocheu, que tudo conseguira com a perfumada beleza de Ester, ao
comunicar de Suza a sua luminosa vitória, ordenara para todo o sempre diversões e alegria
nesse dia. Os filhos de Israel obedecem e, como a pátria de Israel é o mundo, nenhuma cidade
ainda sofreu por não festejar data tão preciosa. No Rio, também ontem, cerca de quatro mil
famílias divertiram, riram e beberam. Divertiram com discrição, é certo, beberam sem violência,
riram com calma, exatamente porque a gente do país de Judá tem a tristeza nalma e a
tenacidade na vida.
As festas do peisan foram copiadas dos persas pelos romanos. Os povos modernos
copiaram dos romanos, aumentando os dias de prazer e destruindo a intenção cultual da
cerimônia. Quem assistiu à orgia continua dos batuques carnavalescos, talvez não possa
compreender como cerca de dez mil judeus comemoram o 14 de Hadar, com tanta modéstia e
tanta correção.
Esses dez mil judeus divertiram-se, trocaram presentes, cantaram, ouviram mais uma vez
a história da linda Ester, lida pela hhasàn nos sagrados livros, e cada um recolheu um momento
o espírito para pensar em Mardocheu, no rei Assuéro e na maneira por que 60 milhões de
antepassados foram salvos da morte e do patíbulo.
Entretanto, pela vasta cidade, ninguém desconfiou que tanta gente tivesse a alegria
nalma.
É que os olhos de Israel são receosos, sempre curvados ao sopro das perseguições,
sempre sábios. Festejaram sem que ninguém desse por tal...
O Rio tem uma vasta colônia semita ligada à nossa vida econômica, presa ao alto
comércio, com diferentes classes sem relações entre elas e diferentes ritos.
Há os judeus ricos, a colônia densa dos judeus armênios e a parte exótica; a gente
ambígua, os centros onde o lenocínio, mulheres da vida airada e caftens, cresce e aumenta; há
israelitas franceses, quase todos da Alsácia Lorena; marroquinos, russos, ingleses, turcos,
árabes, que se dividem em seitas diversas, e há os Asknenazi comuns na Rússia, na Alemanha,
na Áustria, os falachas da África, os rabbanitas, os Karaitas, que só admitem o Antigo
Testamento, os argônicos e muitos outros.
Os semitas ricos não têm no Rio ligação com os humildes nem os protegem como em
Paris e Londres os grandes banqueiros da força de Hirsch e dos Rottchilds. São todos
negociantes, jogam na Bolsa, veraneiam em Petrópolis, vestem-se bem.
Muitos são joalheiros, com a arte de fazer brilhar mais as jóias e de serem amáveis.
Franceses, ingleses, alemães, o culto desses cavalheiros apresentáveis e mundanos reveste-se
de uma discrição absoluta. Uns praticam o culto íntimo, outros não precisam do hhasan e fazem
juntos apenas as duas grandes cerimônias: a Ion-Kipur ou dia das lamentações e do perdão, e o
ano novo ou Rasch-Haschana.
Algumas sinagogas já têm sido estabelecidas nas salas de prédios centrais para receber
esses senhores. Atualmente não há nenhuma, estando na Europa quem mais se preocupava
com isso.
As riquezas das nações estão nas mãos dos judeus, brada o anti-semita Drumont, ao
vociferar os seus artigos. A nossa também está, não porém nas dos judeus daqui, que são  apenas homens ricos bem instalados nos bancos e na vida.
O outro meio, extraordinariamente numeroso, é onde vicejam o vício e a inconsciência, os
rufiões e as simples mulheres que fazem profissão do meretrício. Essa gente vem em grandes
levas da Áustria, da Rússia, de Marselha, de Buenos Aires, e habita na maior parte na praça
Tiradentes, nas ruas Luís de Camões, Tobias Barreto, Sete de Setembro, Espírito Santo,
Senhor dos Passos e nas ruelas transversais à rua da Constituição. Comem quase todas numas
pensões especiais dessas ruas equivocas, pensões sujas em que se reúnem homens e
mulheres discutindo, bradando, gritando. O alarido é às vezes infernal, porque, quase sempre
numa briga de casal, ela explorada por ele, todos intervêm, dão razão, estabelecem contendas.
Nestas casas guardam não raro uma sala para costura e outra destinada à sinagoga.
Há mais mulheres do que homens. Os homens são inteligentes, espertos, sabem e
explicam com clareza, as mulheres são profundamente ignorantes da própria crença. Quase
nenhuma sabe a data exata das festas, a sua duração, a sua razão de ser. É interessante
interrogá-las, gastar algumas horas visitando as alfurjas apartadas desta babel americana.
- Então vai à sinagoga?
- Oh! aqui não há nada direito; em Buenos Aires sim.
- Mas você vai sempre a estas reuniões?
- Vou. Então podia deixar de ir?
- Por que vai?
- Porque tenho que ir. Quando saio de casa, deixo uma vela acesa.
- Por quê?
- É costume.
- A festa do ano novo quantos dias dura?
Uma nos diz três dias, outra oito, outras respondem vagamente. Entretanto, russas,
inglesas, francesas fazem questão de se dizer judias e obedecem á fé. No dia do Kipur, ou dia
do perdão, do arrependimento e das lamentações, fecham-se os prostíbulos, todas elas vão às
sinagogas improvisadas soluçar os pecados do ano inteiro, os pecados sem conta. Às 4 da
tarde fazem uma refeição sem pão, sem carne e desde que no céu palpita a primeira estrela, até
ao outro dia, quando de novo Lúcifer brilha, não se alimentam mais, limpas de todos os desejos
e de todas as necessidades humanas.
Estes judeus reúnem-se em qualquer parte, o mais letrado lê a história no tópico
necessário, e choram e riem ou cantam, conforme é necessário, crentes ignorantes. As
sinagogas ambulantes estão cada ano numa rua. As últimas reuniões deram-se na rua do
Espírito Santo, na rua da Constituição, e na rua do Hospício. É chefe do culto, dirigindo os
convites e organizando as festas, uma meretriz, a Norma, que ultimamente introduziu no Rio o
entôlage, o roubo aos fregueses.
A outra sociedade, a mais densa, é a dos armênios e dos marroquinos. Essa fez-se de
grandes levas de imigração para o amanho de terra, em que o Brasil gastou muito dinheiro. Os
agentes em Gibraltar aceitavam não só famílias como homens solteiros. As colônias não deram
resultados; no Iguaçu os colonos fugiam aos poucos, e em outros lugares foi impossível
estabelecê-los, porque o povo até os julgava com chifres de luz como Moisés.
Os judeus árabes apareceram por aqui na miséria, mas aos poucos, pela própria energia,
tomaram o comércio ambulante, viraram camelots, montaram armarinhos e acabaram
prosperando. Há ruas inteiras ocupadas por eles, naturalmente ligados aos turcos maometanos,
aos gregos cismáticos e a outras religiões e ritos degenerados, que pululam nos quarteirões
centrais.
Nas levas de imigrantes vieram homens inteligentes e cultos. O hhasan David Hornstein é
um exemplo. Esse homem cursou doze anos a Universidade Talmúdica, é poliglota, professor,
correspondente de vários jornais escritos em hebreu e rabino diplomado da religião judaica.
David estava na Palestina, na colônia Rishon l'Sion, uma espécie de companhia que o falecido
barão B. Rothschild instalara em terrenos comprados ao sultão, com grande ódio dos beduínos.
Nessa colônia havia médicos, advogados, russos niilistas. O resultado foi a sublevação, que o
amável barão, depois da morte do administrador, acabou, dispersando-os amotinados. Vinte e
dois desses homens, entre os quais David e o erudito Kulekóf, que acabou rico em São Paulo,
partiram para Beirute, depois para Paris. Hirsch deu-lhe 500 francos, fazendo um discurso
camarário.

Os judeus revolucionários foram para Gibraltar e aí embarcaram para o Brasil. Todos
acabaram com fortuna, menos o rabino, que ficou ensinando línguas, porque o sacerdote judeu
não vive do seu culto.
E esta parte densa da colônia judaica que tem duas sinagogas estáveis, uma na rua Luís
de Camões, 59 e outra na rua da Alfândega, 369.
A sinagoga da rua Luis de Camões é do rito argônico. Entra-se num corredor sujo, onde
crianças brincam. Aos fundos fica a residência da família. Na sala da frente está o templo, que
quase sempre tem camas e redes por todos os lados.
As tábuas de Moisés negrejam na parede; a um canto está o altar, e na extremidade
oposta fica a arca onde se guarda a sagrada história, resumo de toda a ciência universal, escrita
em pele de carneiro e enrolada em formidáveis rolos de carvalho. Só nos dias solenes se
transforma o templo. David Hornstein faz as cerimônias no meio da sala, no altar, envolto na sua
túnica branca riscada nas extremidades de vivos negros, com um gorro de veludo enterrado na
cabeça. Muito míope, o hhasan é acompanhado por três pequenos que entoam o coro.
No altar David retira a capa de veludo roxo dos rolos, abre-os da esquerda para a direita.
Ao lado guiam-lhe a leitura com uma mão de prata. Aí, imóvel, sem se mexer, faz a oração
secreta para que Deus o atenda e o perdoe de ser enviado e ousar rogar pelo seu povo.
Jeová naturalmente atende e perdoa. O hhasan infatigável já tem desenhado cento e
cinqüenta sepulturas, já praticou a circuncisão em cerca de setecentos pequenos, já batizou,
mergulhando em três banhos consecutivos, muitas meninas, já casou muitos judeus e prospera
falando dos nossos políticos e citando os deputados com familiaridade.
A sinagoga da rua da Alfândega é muito mais interessante. Ocupa todo o sobrado do
prédio 363, que é vulgar e acanhado, como em geral os do fim daquela rua. Sobe-se uma
escada íngreme, dá-se num corredor que tem na parede as tábuas de Moisés.
Aí vive outro Moisés, o hhasan, com uma face espanhola e um ar bondoso. Na sala de
jantar estão as paredes ornadas de símbolos, representando as doze tribos de Judá, e aí
passam Moisés, ela de lenço na cabeça, ele com um chapéu de palha velho.
A sala da frente é destinada às cerimônias. Quase não se pode a gente mover, tão cheia
está de bancos. No meio colocam o altar de vinhático envernizado, em que o hhasan fica de pé
lendo ou cantando.
Nas paredes apenas as tábuas, ao fundo a arca com cortinas de seda, onde se guarda o
sagrado livro. Do teto pendem presos de correntes brancas vasos de vidros, cheios de água
onde 1amparinas colossais queimam crepitando. Sobre o altar desce o lustre de cristal,
chispando luzes nos seus múltiplos pingentes. Além de Moisés, há outro sacerdote, Salomão,
tão devoto, que é o hhassidim...
Foi nesta sinagoga, indicada por um negro falacha, cuja origem vem dos tempos de
Salomão e da rainha de Sabá, que eu assisti ao peisan.
- Oh! eles são bons e se protegem uns aos outros - dizia o negro assombroso. - A vida do
judeu pobre é a do pouco comer, do pouco gozar, do muito sofrer. Agora, fizeram a Irmandade
de Proteção Israelita.
Eu olhava a turba colorida, a série de perfis exóticos, de caras espanholas e árabes, de
olhos luminosos brilhando à luz dos lampadários. Havia gente morena, gente clara; mulheres
vestidas à moda hebraica de túnica e alpercata, mostrando os pés, homens de chapéus
enterrados na cabeça, caras femininas de lenço amarrado na testa e crianças lindas. O hhasan,
paramentado, lia solenemente e toda aquela esquisita iluminação de baldes de vidro, fazendo
halos de luz e mergulhando na água translúcida as mechas das lamparinas, aquele lustre, onde
as luzes ardiam, eram como uma visão de sonho estranho.
Enquanto o hhasan lia, com os pés juntos, sem mover sequer os olhos, com uma voz
ácida tremendo no ar, todos tinham nas faces sorrisos de satisfação.
As cidades serão destruídas a ferro e fogo se não festejarem este dia no mês de Hadar.
Nós festejamos. E diante das lâmpadas, para aquele punhado de judeus, a história desenrolava
a maravilha de Assuero, que reinou desde a Índia até à Etiópia sobre cento e vinte cidades. Era
Suza, a capital maravilhosa, Ester suave e cândida, substituindo a rainha Vashi, Mardocheu
sentado à porta do templo sem adorar Aman, a quem Assuero tudo dava, Aman forçado a levar
Mardocheu em triunfo, tudo por causa de uma mulher trêmula e tímida, que desmaiava,
salvando 60 milhões de judeus e mandava matar quinhentos inimigos, pedindo concessões
idênticas para as províncias.Era a data dessa matança; festejava-se o dia em que Aman foi para o patíbulo que preparara para Mardocheu, e o momento em que se espatifara Arisai Frasandata, Delfon, Ebata,
Forata, Adalia, Aridata, Fermesta, Aridai e Jerata.
Mas daquele livro sagrado, entre aquelas iluminações, a fé destilava a suprema delícia.
Era como se cada palavra recordasse os banquetes dados aos príncipes nos átrios do palácio
ornado de pavilhões da cor do céu da cor do jacinto e da cor da açucena; era como se cada
período abrisse a visão das colunas de mármore, dos leitos de prata e ouro e dos pavimentos
embutidos, onde esmeraldas rolavam...
Nós estávamos apenas numa sala estreita que fingia de sinagoga, no fim da rua da
Alfândega.

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