segunda-feira, 18 de março de 2013

João do Rio - 2° Parte













 A IGREJA PRESBITERIANA

A sede da Igreja Presbiteriana fica na rua Silva Jardim, n.0 15.
É um dos mais lindos templos evangélicos do Rio. A sala pode conter oitocentas pessoas.
Tudo reluz, as paredes banhadas de sol, as portas envernizadas, as fechaduras niqueladas, o
púlpito severo. Pelas aléias do jardim, brunidas, anda-se sob o desfolhar das rosas e da   montanha a pique que lhe fica aos fundos, desce um intenso perfume de mata. A primeira vez
que eu lá estive, a sala estava apinhada, não havia um lugar; e, por trás de sobrecasacas,
severas, de fatos sombrios, na luz crua dos focos, eu via apenas o gesto de um homem de larga
fronte, descrevendo a delícia da moral impecável. Perguntei a um cavalheiro que o ouvia
embevecido, quase nas escadas.
- Quem é?
O cavalheiro passou o lenço pela testa alagada.
- Admira não o conhecer: é o Dr. Álvaro Reis.
Álvaro Reis é o pastor atual da Igreja Presbiteriana do Rio, essa igreja produto de uma
propaganda tenaz e de um longo esforço de quase meio século. Não há de certo na história dos
nossos cultos exemplo tão frisante de quanto vale o querer como essa vasta igreja. Fundada em
1861 pelos Revs. Green Simonton, Alexandre Blackford e Francisco Shneider, três missionários
mandados pelo board da igreja Presbiteriana dos Estados Unidos para a evangelização do
Brasil, quarenta e tantos anos depois tornou-se realidade; e a semente guardada no celeiro do
Senhor, sob o seu divino olhar, brotou e floriu em árvore estrondosa. Quanto custou isso!
Simonton ensinava grátis o inglês para, aprendendo o português, inocular nos discípulos os
sãos princípios da Bíblia; cada sermão era um acontecimento, marcava-se com carinho o dia em
que professava um novo simpático. Os puritanos pregavam em salas estreitas e sem conforto.
Algumas vezes, um padre católico surgia intolerante, protestava; os pastores interrompiam-se e
as duas igrejas combatiam, a ver quem pela palavra melhor parecia estar com Deus.
Como a seita Positivista, a propaganda começou numa sala da rua Nova do Ouvidor, com
dezesseis ouvintes. Passou depois à rua do Cano, desceu à rua do Regente, à praça da
Aclamação, à rua de Santa Ana, comprou com sacrifícios e recursos americanos o barracão da
fábrica de velas de cera da travessa da Barreira, e ali orou, pediu a Deus e continuou a
propagar. Os meios eram os usuais de toda a fé que quer predominar. Os evangélicos faziam
versos, faziam o bem e eram tenazes. Foi uma evolução segura e lenta.
A Igreja teve mártires. O sábio padre romano Manuel da Conceição abjurou e ordenou-se
presbítero.
Era uma alma antiga. Ordenou-se e logo começou a evangelizar a pé pelas estradas. Não
levava uma moeda na bolsa, e de porta em porta, com a Bíblia na mão, revelava aos homens a
verdade. Atravessou Minas assim, tropeçando pelos caminhos ardentes, quase sem comer, e,
onde parava, o seu lábio abria falando do prazer de ser puro. Em Campanha correram-no à
pedra. Conceição, com a Bíblia de encontro ao peito, tropeçando, fugia sob a saraivada, e a
turba só o deixou fora da cidade, quando o viu em sangue cambalear e cair. Ao chegar a
Sorocaba, o mártir estava andrajoso, quase a morrer, e, morto, os seus ossos foram exumados,
por ordem do bispo D. Lacerda, para serem atirados fora do cemitério, ao vento.
Os pastores trabalhavam tanto que Simonton morrera, aos trinta e quatro anos, de
cansaço. Eram os primeiros tempos! A adesão religiosa vem da tenacidade. A tenacidade
dessas criaturas de aço que atraiu os fiéis, desde os analfabetos aos homens ilustres; a igreja
recebeu no seu seio médicos, engenheiros, literatos, arquitetos, professoras públicas, homens
rudes, lentes de escolas superiores e cada um que daqui saía, levava para as igrejas dos
Estados com a carta demissória um elemento de propaganda. Por último, os pastores foram
brasileiros, a derradeira etapa estava ganha, a igreja, ponto inicial da evangelização brasileira,
foi construída luxuosamente, e o Rev. Trajano, com verdade e poesia, o afirmou: - depois de
peregrinar por seis tetos estrangeiros, só no sétimo a nossa igreja descansou.
Foi nesse descanso que eu dias depois voltei a conversar com o Dr. Álvaro Reis. A casa
do pastor fica ao lado esquerdo do templo, oculta nos roseirais. O protestantismo trouxe para os
nossos costumes latino-americanos não sei se a pureza da alma, de que o mundo sempre
desconfia, mas o asseio inglês, o regime inglês, a satisfação de bem cumprir os deveres
religiosos e de viver com conforto.
Logo que vieram abrir a porta, eu tive essa impressão.
- O Pastor?
O pastor não estava, mas isso não impedia que um homem de Deus entrasse a refrescar
das agruras do sol. O Dr. Álvaro Reis é paulista: na sua residência encontrei alguns amigos
seus, paulistas, que me receberam entre as cortinas e os tapetes, com uma franqueza
encantadora. Quando me sentei na doce paz de uma poltrona, como um velho camarada irmão
em Cristo, estava convencido de que ia beber café e conversar largamente. Não há como os
evangelistas e os evangelistas brasileiros, para gentilezas. À bondade ordenada pela escritura  reúnem essa especial e íntima carícia do brasileiro, que, quando quer ser bom, é sempre mais
que bom.
- A Igreja Presbiteriana - disse-me o substituto do Dr. Álvaro Reis - realiza, como sabe, o
trabalho de propaganda nesta cidade, há 42 anos. Atualmente, além do templo, tem
congregações prósperas na rua da Passagem, em Botafogo, na rua do Riachuelo e na Ponta do
Caju, onde existem salas de culto muito freqüentadas. Foi com elementos nossos que se
organizou a igreja de Niterói.
- E nos Estados?
- A Igreja Presbiteriana do Rio ramificou-se por todos os Estados do Brasil. Há
presbiterianos no Rio Grande do Sul, no Pará, em Minas, em Goiás, no Piauí e até nos confins
de Mato Grosso. A propaganda ficou ao cuidado da Igreja Evangélica Episcopal. O número de
congregações e de templos que se organizaram depois do nosso, sobe a 300.
- E há vários colégios?
- Vários? Há muitos. A Igreja Presbiteriana conseguiu estabelecer no Brasil os seguintes
colégios: o Mackenz e a Escola Americana, em São Paulo; o Colégio de Lavas, em Minas; o de
Curitiba, no Paraná; o da Bahia, da Feira de Santa Ana e o da Cachoeira, na Bahia; o das
Laranjeiras, em Sergipe; o do Natal, no Rio Grande do Norte; e ainda várias escolas gratuitas.
- É natural que uma tão copiosa propaganda tenha uma forma de governo? - fiz
vagamente.
- Tem. A igreja é governada por unia sessão de igreja, presidida pelo pastor e composta
de seis oficiais, que têm o título de presbíteros. A sessão da igreja apresenta anualmente atas e
relatórios ao presbitério do Rio, concílio superior composto de todos os ministros presbiterianos
que trabalham no Rio, no sul de Minas e no Espírito Santo.
No Presbitério, cada sessão se faz representar pelo pastor e um presbítero. Além do
Presbitério do Rio há o de São Paulo, o de Minas, o do oeste de São Paulo, o de Pernambuco e
o do Sul do Brasil. Esses seis presbitérios, reunidos de três em três anos em uma só
assembléia, formam o supremo concílio da igreja, com o nome de Sínodo Presbiteriano
Brasileiro. E aí que se discutem os interesses gerais da causa.
- A defesa tem jornais?
- Alguns. Venha ver.
Entramos na biblioteca de Álvaro Reis, uma sala confortável, forrada de altas estantes de
canela. Por toda a parte, em ordem, livros, papéis, brochuras, cartas, fotografias.
- Veja. Aqui no Rio temos o Presbiteriano e o Puritano. Há em São Paulo a Revista das
Missões Nacionais, em Araquati o Evangelista, o Despertador em Rio Claro, a Vida em
Florianópolis e o Século no Natal.
- E com tantos jornais os senhores não vivem em guerra constante?
- Contra quem?
- Contra as outras igrejas, os batistas, os metodistas... Um jornal só basta para fazer a
discórdia; dez jornais fazem o conflito universal!
- Não - fez o meu interlocutor a sorrir -, não. Reina completa harmonia. A Igreja
Fluminense já existia quando começamos a nossa campanha. As relações conservam-se
cordiais. O pastor Santos ministra aqui a palavra de Deus sempre que é convidado. Enquanto o
templo esteve em construção, a Igreja Fluminense permitiu-nos o uso da sua vasta sala para o
nosso serviço religioso. Com os metodistas e batistas a mesma cordialidade existe. Os pastores
de lá falam no nosso púlpito, como nós falamos nos seus.
Depois, com tristeza:
- Talvez entre os de casa não existisse essa harmonia há bem pouco tempo... É simples.
Na última reunião do Sínodo Presbiteriano houve, uma cisão que se refletiu francamente na
igreja do Rio. Um membro do concílio imaginou que a maçonaria fazia pressão nas deliberações
do Sínodo, propondo logo que a igreja banisse do seu seio a heresia maçônica. Não era
verdade a pressão. O concílio discutiu largamente e aprovou a seguinte resolução.
- "O Sínodo julga inconveniente legislar sobre o assunto!" A tolerante aprovação deu em
resultado separarem-se sete ministros, que formaram uma igreja independente e antimaçônica.
À nova igreja ligaram-se ex-membros da nossa.
Ele falava simplesmente. Em torno, faces tranqüilas aprovavam e naquela atmosfera
agradável eu não pude deixar de dizer:

- Como o grande público os ignora, como a população, a verdadeira, a massa, os
confunde numa complicada reunião de cultos!
Todos sorriam perdoando.
- Sabemos disso. É natural! Oh! os protestantes! Passam pela porta, pensam coisas
incríveis... Mas alguns entram e encontram a tranqüilidade. Qual é, afinal, secamente, em
poucas palavras, o modo por que a Igreja Presbiteriana difere da Igreja Romana? Não considera
o Papa como chefe, nem tolera a sua infalibilidade, não crê na intercessão dos santos, que
estão na glória e nenhum poder tem neste mundo, não aceita o celibato clerical, considerando
uma inovação funesta...
- Oh! Funestíssima!
- ... de Gregório VII, no século XI; não admite o culto das imagens, uma infração ao 2.º
mandamento do Decálogo; crê que Jesus Cristo ressuscitou e está vivo e reina como único
chefe da sua igreja; crê no único fundamento, na única regra da Religião Cristã, a Palavra de
Deus, a Bíblia, e prega que Deus, onipotente, onisciente e onipresente, é único apto a ouvir as
orações dos homens. Só aceita dois sacramentos, o Batismo e a Comunhão, os únicos
instituídos por Jesus Cristo; só reconhece o casamento civil, sobre o qual impetra a bênção de
Deus; não admite o purgatório...
- O absurdo purgatório!
- Diante das santas escrituras.
- Ah!
- Proíbe as missas em sufrágio das almas, porque Jesus nunca rezou missas, e crê que o
homem é salvo de graça pela fé viva, como crê na ressurreição, na regeneração, na vida eterna
e no juízo final. Todo o seu culto se resume na leitura das escrituras, em sermões explicativos,
em orações a Deus, e no primeiro domingo de cada mês na celebração da Eucaristia...
- Há sociedades na igreja?
- Há o Esforço Cristão e uma de acordo com todas as igrejas, o Hospital Evangélico.
Nessa mesma noite eu ouvi, no templo cheio, Álvaro Reis. A sua larga fronte parecia
inspirada e ele, desfazendo sutilmente as frases diamantinas da Bíblia, num polvilho de bem,
falava da Caridade, da Caridade que sustenta todos os que crêem em Jesus, - da Caridade
suavemente doce que protege e esquece.

A IGREJA METODISTA

- Amados irmãos, estamos reunidos aqui à vista de Deus, e na presença destas
testemunhas, para unir este homem e esta mulher em santo matrimônio, que é um estado
honroso, instituído por Deus no tempo da inocência do homem, significando-nos a união mística
que existe entre Cristo e a sua Igreja. Esse estado santo, Cristo adornou-o com a beleza da sua
presença, fazendo o primeiro milagre em Cananéia da Galiléia; São Paulo o recomenda como
um estado honroso entre os homens; e por isso não deve ser empreendido ou contraído sem
reflexão, mas, sim, reverente, discreta, refletidamente, e no temor de Deus.
No ar pairava um suave perfume, senhoras de rara elegância tinham fisionomias imóveis,
cavalheiros graves pareciam ouvir com atenção a palavra do pastor e tudo cintilava ao brilho dos
focos luminosos. Era um casamento na Igreja Metodista, na praça José de Alencar. Ao fundo,
via-se, à mão direita do pastor, o noivo, à esquerda a noiva, e por trás dos vitrais, lá fora,
naquele recanto onde corre de vagar um rio, a turba dos curiosos que não entram nunca.
- Estas duas pessoas apresentam-se - continuava o ministro evangélico - para serem
unidas nesse estado santo. Se alguém sabe coisa que possa ser provada como causa justa,
pela qual estas pessoas não devam legalmente ser unidas, queira dizer agora, ou do contrário -
nunca mais fale sobre isso.
Houve um sussurro como se entrasse pela porta ogival uma lufada de ar. O pastor voltouse para as pessoas que casavam.
- Exijo e ordeno de vós ambos (como respondereis no terrível dia de juízo, quando os
segredos de todos os corações forem desvendados) que se algum de vós souber de
impedimento pelo qual não podeis legalmente ser unidos pelos laços do matrimônio, queira
dizer agora, pois, ficai bem certos disso, que aqueles que se unem de um modo diferente
daquele que é autorizado pela palavra de Deus não são unidos por Deus, nem o seu matrimônio  é legal.
Nem o noivo nem a noiva responderam. Ela parecia tranqüila, ele sorria, um sorriso mais
ou menos irônico entre as cerdas do bigode. O ministro então disse ao noivo:
- Queres casar com esta mulher para viverdes juntos, segundo a ordenação de Deus, no
estado santo do matrimônio? Amá-la-ás, confortá-la-ás, honrá-la-ás e guardá-la-ás na doença e
na saúde; e deixando tudo o mais guardar-te-ás para ela somente, enquanto ambos viverem?
- Sim! - fez o noivo.
- Queres casar com este homem para viver, segundo a ordenação de Deus, no estado
santo do matrimônio? Obedece-lo-ás, servi-lo-ás, honrá-lo-ás e guardá-lo-ás na doença e na
saúde, e deixando todos os outros guardar-te-ás somente para ele, enquanto ambos viverdes?
- Quero - disse a linda senhora.
Houve a cerimônia do anel, enquanto os assistentes abanavam-se. O ministro tomou-o,
deu-o ao noivo, que o enfiou no quarto dedo da mão esquerda da noiva, repetindo as palavras
do pastor:
- Com este anel eu me caso contigo e doto-te de todos os meus bens terrestres: em nome
do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém!
- Oremos! Pai nosso que estás no céu... Era um Padre-nosso... Depois, juntando as mãos
do noivo, o ministro disse:
- O que Deus ajuntou não o separe o homem. Visto como têm consentido unir-se, e têm
assim testemunhado diante de Deus e das pessoas aqui presentes, e portanto têm prometido
fidelidade um ao outro e assim declarado, juntando as mãos, eu os declaro casados no nome do
Pai, do Filho, e do Espírito Santo.
Deus o pai, Deus o filho, Deus o Espírito abençoe, preserve e guarde-os; o Senhor
misericordiosamente com o seu favor olhe para vós; e assim vos encha de todas as bênçãos e
graças espirituais, para que no mundo por vir tenhais vida eterna. Amém!
Estava terminada a cerimônia. Houve um movimento, como nos templos católicos, para
felicitar o feliz par, capaz de jurar em tão pouco tempo tantos juramentos de eternidade. As
senhoras afiavam um sorrizinho e os homens iam em fila tocantemente indiferentes.
E da féerie do templo, por cima dágua, do mais lindo templo evangelista, onde as luzes
ardiam por trás dos vitrais numa confusa irradiação de cores, começaram a sair os convidados.
Carros estacionavam na escuridão da praça com os faróis acesos carbunculando... Eu assistira
a um casamento sensacional.
No dia seguinte fui à residência do pastor Camargo.
No ano de 1739 falaram com John Wesley, em Londres, oito pessoas que estavam
convencidas do pecado e ansiosas pela redenção. Essas criaturas tementes da ira futura
desejavam que com elas John gastasse algum tempo em oração. Wesley marcou um dia na
semana e daí surgiu a sociedade unida. Aos que desejam entrar para a sociedade só se exige
uma condição: o desejo de fugirem da ira vindoura e de serem salvos de seus pecados.
Muita gente há no Brasil receosa da dita ira. A Igreja Metodista, que é um desdobramento
da episcopal, começou os seus trabalhos, há vinte e sete anos, no Catete, na casa onde está
hoje instalada a pensão Almeida. Tinha apenas sete membros e os missionários mandados pelo
board americano, os Revs. Ransom, Cowber, Tarbou Kennedy, sabiam que desses sete já
quatro eram metodistas nos Estados Unidos. Hoje a Igreja conta cinco mil membros, todos os
anos o número aumenta, as igrejas surgem, fundam-se colégios, e as missões levam aos
recessos do pais, perseguidas, corridas à pedra, a palavra de Cristo. Só o templo da praça José
de Alencar custou 107 contos; há missões e igrejas em Petrópolis, na Paraíba, em São Paulo,
em Itapecerica, São Roque, Piracicaba, Capivari, Taubaté, Cunha, Amparo; todo o Estado de
Minas e o Rio Grande estão cheios de metodistas, e os missionários chegaram até Cruz Alta e
Forqueta, no desejo tenaz de prolongar a fé.
Os metodistas têm um grande dispêndio anual. No Rio contribuem para as despesas do
pastor em cargo, presbítero-presidente, bispos, missões domésticas, missões estrangeiras,
educação de pensionários, Sociedade Bíblica Americana, pobres, atas, construções, casa
publicadora, ligas Epworth, escolas dominicais, sociedade auxiliadora de senhoras, de modo
que, sendo a média de cada contribuinte de vinte e nove mil réis, a despesa geral eleva-se
anualmente a quantia superior a vinte contos. Há cinqüenta e seis sociedades e dezesseis
casas de culto, cujo valor é de trezentos e dezenove contos, oito residências e nove colégios, e
o valor desses é de quatrocentos e sessenta contos.

Quando cheguei à residência de Jovenilo Camargo, ordenado presbítero há dois anos,
estava edificado da situação financeira da igreja, dessa excelente situação. Camargo é paulista,
simples e amável. Recebeu-me no seu gabinete de trabalho, donde se descortina todo um
trecho belo da praia de Botafogo.
- Há quanto tempo está aqui?
- Há dois anos; os pregadores metodistas não levam mais de quatro anos em cada igreja.
- Quais são os pregadores atualmente no Rio?
- Rev. Parker, da Igreja Evangélica; Guilherme da Costa, que prega em Vila Isabel e no
Jardim Botânico, e eu.
Os metodistas têm uma grande quantidade de ministros e de oficiais de igreja, bispos,
presbíteros, pregadores em cargo e em circuito, diáconos itinerantes, presbíteros itinerantes,
pregadores supranumerários, locais, exortadores, ecônomos, depositários.
- Para cada distrito; na cidade propriamente há apenas os pregadores locais e os
ecônomos que tratam das questões financeiras, uma junta de sete membros, que atualmente é
composta dos Srs. Joaquim Dias, João Medeiros, Manuel Esteves de Almeida, José Pinto de
Castro, Antônio Joaquim e Elesbão Sampaio.
- Há vários jornais metodistas?
- A Revista da Escola Dominical, em São Paulo; O Expositor Cristão, órgão da conferência
anual brasileira, dirigido pelos Srs. Kennedy e Guilherme da Costa; O Juvenil, O Testemunho.
Como as outras igrejas evangélicas, a Metodista tem sociedades internas que a propagam; a
Sociedade Missionária das Senhoras no Estrangeiro, a Sociedade de Missões Domésticas das
Senhoras...
- A liga Epworth...
- A liga Epworth é um meio de graça como o culto, a oração, as escolas dominicais, as
festas do amor. Temos 34 ligas Epworth. As ligas organizam-se em nossas congregações para
a promoção da piedade e lealdade à nossa igreja entre a mocidade, para a sua instrução na
Bíblia, na literatura cristã, no trabalho missionário da igreja.
A junta compõe-se de um bispo, seis pregadores itinerantes e seis leigos, sendo todos
eleitos de quatro em quatro anos pela conferência geral, sob a nomeação da comissão
permanente das ligas Epworth. As ligas locais estão sob a direção do pastor e da conferência
trimensal.
- Mas o meio da propaganda?
- É quase todo literário; a liga é propriamente a difusão da literatura evangélica.
- O mais admirável entre os metodistas é o maquinismo, o funcionamento da sua igreja.
- Que é governada por conferências, pode-se dizer. Há conferências da igreja, mensais,
trimensais, distritais, anuais e gerais de quatro em quatro anos.
Nessa ocasião, Jovelino Camargo ofereceu-me café, e sorvendo o néctar precioso, eu
indaguei:
- Muitos casamentos na capela do Catete?
- Alguns. Para esses atos os pastores procuram sempre os templos mais belos.
- Há muita gente que acredita o vosso casamento uma válvula que a nossa lei não
permite.
- Mas é absolutamente falso, é uma calúnia formidável. Os evangelistas respeitam antes
de tudo a lei do país em que estão. A totalidade dos nossos pastores não casam sem ver antes
a certidão do ato civil. Ah! meu caro, a calúnia tem corrido, os pedidos são freqüentes aos
ministros evangélicos para a realização do casamento de pessoas divorciadas, mas nós nos
furtamos sempre; e ainda este mês C. Tacker, Álvaro dos Reis, Antônio Marques e Franklin do
Nascimento fizeram público pelos jornais que não podiam lançar a bênção religiosa sobre
nenhum casal que não tenha antes contraído matrimônio.
Os meus companheiros Kennedy e Guilherme da Costa comentaram esse manifesto que
o momento exigia. Nós temos uma lei que nos inibe esse crime. Quer ver?
Ergueu-se, foi à estante, abriu um pequeno livro de capa preta.
- Esta é nossa disciplina, leia.
Ambos curvamos a cabeça, procurando os caracteres à luz fugace do anoitecer e ambos
na mesma página lemos: - "Os ministros de nossa igreja serão proibidos de celebrarem os ritos  do matrimônio entre pessoas divorciadas, salvo o caso de pessoas inocentes, que têm sido
divorciadas pela única causa de que fala a Escritura..."
Houve um longo silêncio. As sombras da noite entravam pelas janelas.
- A causa única de que fala a Bíblia...
- É preciso afinal compreender que nem todas as igrejas denominadas cristãs e
protestantes, pertencem à Aliança Evangélica Brasileira e que nós não podemos em nome de
Cristo pregar, por assim dizer, a dissolução moral.
Ergui-me.
- Apesar das injustiças dos homens, a Igreja Metodista caminha.
- E os casamentos honestos são em grande número.
Jovelino Camargo desceu comigo a praia de Botafogo. Vinha, como sempre, calmo,
inteligente e simples.
- Aonde vai?
- A uma festa de amor.
Estaquei. Mas, Senhor Deus, os metodistas davam-me uma excessiva quota de amor. No
dia anterior um casamento, minutos antes o casamento de novo, e agora ali, na sombra da
noite, o pastor que me dizia, como um velho noceur, o lugar perigoso para onde ia!
- A uma festa de amor? - interroguei, feroz.
- Sim, é uma festa nossa, trimensal, fez a sorrir o puro moço. Vou fazer oração e participar
do pão e da água em sinal de amor fraternal.
E simplesmente Jovelino Camargo desapareceu na sombra, enquanto eu, olhando o céu,
onde as estrelas palpitavam, rendia graças a Deus por haver ainda neste tormentoso mundo
quem, por seu amor, ame, respeite e seja honesto.

OS BATISTAS

E disse o eunuco: Eis aqui está a água. Que embaraço há para que eu não seja batizado?
E disse Felipe: Se crês de todo o teu coração, bem podes... E desceram os dois, Felipe e o
eunuco, à água, e o batizou...
Estava na rua de Santana, no templo batista, severo e rígido nas suas linhas góticas. Era
de noite. À porta um certo movimento, caras curiosas, gente a sair, gente a entrar, e um velho
blandicioso distribuindo folhetos.
- Os batistas? Exatamente.
Pego de um folheto, enquanto lá dentro parte um coro louvando a glória de Deus. Trata do
purgatório perante as Escrituras Sagradas e está na 2.ª edição. Leio na primeira página: "Entre
as diferentes religiões existentes distinguem-se a religião de Jesus, que nos oferece o céu, e a
religião do Papa, que aponta o purgatório. O Papa prega o purgatório porque ama o nosso
dinheiro..." Com um pouco mais teríamos a Velhice do Padre Eterno!
A Igreja Batista é, entretanto, um dos ramos em que se divide o que o vulgo geralmente
chama protestantismo, é uma das muitas divergentes interpretações dos Evangelhos.
Há seis séculos chamava-se anabatista.
Seita antiqüíssima, com grandes soluções de continuidade, desaparecendo muita vez na
história sob o martírio das perseguições, sem deixar documentos, mas nunca de todo se perdeu.
Hoje, como as outras seitas que asseguram ser as únicas e verdadeiras intérpretes da
Bíblia, o seu foco principal são os Estados Unidos, mas o mundo está cheio de anabatistas e um
magnífico serviço de propaganda na China, no Japão, na África, na Itália, no México e no Brasil
aumenta diariamente o número de adeptos.
O movimento das missões é tão intenso que até tem um jornal informativo: The Yorking
Mission Journal.
Isso não impede que a controvérsia os selecione e que a crítica os divida. Nos Estados
Unidos a igreja está dividida em batistas cristãos, novos batistas, batistas rigorosos, batistas
separados, batistas liberais, batistas livres, anabatistas batistas, crianças batistas gerais,
batistas particulares, batistas escoceses, batistas nova comunhão geral, batistas negros,
batistas do braço de ferro, batistas do sétimo dia e batistas pacíficos.

Aos batistas daqui, pacíficos, cristãos e misturados, bem se pode chamar: - do braço de
ferro, desde que braço signifique a decisão e a força com que arredam as nuvens da Luz. A
história da igreja do Rio começa em 1884 com a chegada do Sr. e da Sra. Bagby.
O Sr. Bagby foi o patriarca. Quatro dias depois de chegar, organizou a igreja na própria
casa, com quatro ovelhas, isto é, com quatro cidadãos. Um ano depois mudava-se para a rua do
Senado já com outros recursos, passava a pregar na rua Frei Caneca, na rua Barão de
Capanema, quase sem abandonar o rebanho, durante anos a fio, e, passado o décimo primeiro,
instalava-se num templo próprio, edifício que custou cinqüenta e um contos.
Era nesse templo que eu estava, defronte da igreja da Senhora Sant'Ana, lendo trechos
do tal Purgatório, em que uma igreja solapa a outra por amor do mesmo Cristo misericordioso. O
velho blandicioso, porém, apertando um maço de Purgatórios debaixo do braço, empurrava-me
com um ar de cambista depois do 2.º ato.
- Entre, entre, o senhor vai perder!
Foi então que eu entrei. Todos os bicos de gás silvavam, enchendo de luz amarela as
paredes nuas. No fundo, em letras largas, que pareciam alongar-se na cal da parede, esta
inscrição solene negrejava: - "Deus amou o mundo de tal maneira que deu a seu filho unigênito
para que todo aquele que nele crer não pereça, mas tenha vida eterna." Na cátedra ninguém.
Do lado esquerdo, o órgão e diante dele uma senhora com a fisionomia paciente, e um
cavalheiro irrepreensível, sem uma ruga no fato, sem um cabelo fora da pasta severa. Pelos
bancos uma sociedade complexa, uma parcela de multidão, isto é, o resumo de todas as
classes. Há senhoras que parecem da vizinhança, em cabelo e de matinée, crianças trêfegas,
burgueses convictos, sérios e limpos, nas primeiras filas, operários, malandrins de tamancos de
bico revirado, com o cabelo empastado em cheiros suspeitos, soldados de polícia, um bombeiro
de cavanhaque, velhas pretas a dormir, negros atentos, uma dama de chapéu com uma capa
crispante de lentejoulas, cabeças sem expressão, e para o fim, na porta, gente que subitamente
entra, olha e sai sem compreender. O templo está cheio.
O pastor parece concentrado, olhando o rebanho de ovelhas, a maior parte ignorante do
aprisco. Nessa noite não se perde em erudições teológicas; nesta noite chama com o órgão do
Senhor os carneiros sem fé. E é uma coisa que se nota logo. A propaganda, a atração da Igreja
é a música. Ganham-se mais fiéis entoando um hino que fazendo um sábio discurso cheio de
virtudes. O Sr. Soren, o pastor calmo, irrepreensível, parece compreender os que o freqüentam,
sem esquecer sua missão evangélica. E positivamente o professor. Sem o perfume dos hinários
e sem aquelas letras negras da parede, a gente está como se estivesse numa aula de canto do
Instituto de Música, ouvindo o ensaio de um coro para qualquer chêche mundana...
Vamos mais uma vez, diz ele com um leve acento inglês. Este hino é muito bonito!
Cantado por duzentas vozes faz um efeito! Sabem a letra? Vamos... A dama, com um ar de
bondade indiferente, corre o teclado, acordando no órgão graves e profundos sons que se
perdem no ar vagarosamente. Depois, receosa, acompanhando cada acorde, a sua voz,
seguida da do pastor, começa:
Oh! Se-e-nhor!...
Muitos lêem os versos, acompanhando a voz do pastor, outros, nervosos, precipitam o
andamento. Mas naquele ensaio, logo me prende a atenção um preto de casaco de brim sem
colarinho. O órgão domina-o como um som de violino domina os crocodilos. Nos seus dentes
brancos, nos olhos brancos, de um branco albuminoso, correm risos de prazer. Sentado na
ponta do banco, os longos braços escorrendo entre os joelhos, a cabeça marcando o compasso,
ele segue, com as mandíbulas abertas, os sons e as vozes que os acompanham. Depois, como
o Sr. Soren diz:
- Vamos repetir. Já se adiantaram. Um, dois, três!
Oh! Se-e-e-nhor!...
o negro também, abrindo a fauce num repuxamento da face inteira, cantou:
Oh! Se-e-e-nhor!
E todo o seu ser irradiou no contentamento de ter decorado o verso bonito.
Eu curvei-me para o velho, que passava com outro maço de Purgatórios debaixo do
braço:
- Vem sempre aqui, aquele?
- Vem sim, é fiel. Eu é que não sou...

E, confidencialmente, desapareceu.
Entretanto o hino acabara bem. Quase que houve palmas. Estavam contentes.
O Sr. Soren consultou o relógio e aproveitou a boa vontade dos irmãos.
- Vamos, mais um hino. É lindo! Estudemos só a primeira parte. De Deus até Salvador.
A organista tocou primeiro a música para que os batistas aprendessem o tom, e todos
começaram o novo hino, as crianças, as senhoras, os homens graves, enquanto o negro abria
as mandíbulas e uma velha fechava os olhos enlevados e sonolentos. Quando as vozes
pararam num último acorde, o Sr. Soren disse algumas palavras sobre a glória do Senhor e
estendeu as mãos.
Amém! Estava acabado o estudo. Alguns crentes demoraram-se ainda, o negro saiu
dando grandes pernadas, outros estremunhavam. Mandei então o meu cartão ao Sr. Soren, que
se apoiava ao órgão rodeado de damas veneráveis.
Esse homem é amabilíssimo. Nascido no Rio, de uma família francesa que fugia às
perseguições religiosas da França, estudou nos Estados Unidos e é bacharel. No seu gabinete,
ao fundo, limpo e brunido, onde se move com pausa, tudo respira asseio e austeridade. Soren
mostra a biblioteca, encadernações americanas de percaline e couro, bate nos livros recordando
as dificuldades do estudo, a aridez, o que certos autores custavam.
- Para tudo isso há a compensação da verdade que conforta - diz.
A verdade deve confortar como um beef. Guardo, porém, essa comparação.
Os batistas, firmados na Bíblia, assim como praticam o batismo por imersão, não comem
carne com sangue... Limito-me a dizer.
- A sua crença?
- Mas nós cremos que a Bíblia foi escrita por homens, divinamente inspirados, que têm
Deus como autor e a salvação como fim; cremos que a salvação dos pecados é totalmente de
graça pelos ofícios medianeiros do filho de Deus; cremos que a grande bênção do Evangelho
que Cristo assegurou é a justificação; e cremos na perseverança, no Evangelho, no propósito de
graça, na satisfação que começa na regeneração e é sustentada no coração dos crentes.
O Sr. Soren pára um instante.
- Cremos também - continuou -, que o governo civil é de autoridade divina, para o
interesse e boa ordem da sociedade e que devemos orar pelos magistrados.
- E crêem no fim do mundo?
- ... Que se aproxima.
Enquanto, porém, o fim não aparece, a propaganda batista é feita com calor no Brasil: em
São Paulo, na Bahia, em Pernambuco, no Pará, no Amazonas. No Rio existem os Srs.
Entznimger e esposa, Deter e esposa e o Sr. Soren, criaturas de pureza exemplar. Na cidade há
quatro congregações. Os pastores, dos quais foi sempre o principal o Sr. Bagby, que se retirou
em 1900, têm pregado na rua D. Feliciana, no Estácio de Sá, em Madureira, no morro do
Livramento, em São Cristóvão, na ladeira do Barroso, em Paula Matos, em Santa Teresa, na
Piedade, no Engenho de Dentro, na rua Barão de São Félix.
O Evangelho caminha.
E são grandes os progressos?
- Ricamente abençoado o trabalho. Pelos dados que tenho, realizaram-se em 1903 cerca
de mil batismos, foram organizadas dez igrejas novas, edificaram-se três templos novos e a
contribuição das igrejas foi de 50:000$000. Há dois anos que estamos no Brasil. Os batistas
aumentaram de 500 a 5.000, de 5 igrejas a 60. A nossa casa publicadora já editou, além do
Jornal Batista e do Infantil, mais de um milhão de páginas em folhetos.
- Qual a publicação que tem agradado mais?
- O Cantor Cristão!
A música, o som que convence, a crença em harmonia!
Os gregos admiráveis já tinham no seu divino saber descoberto a propriedade sutil, e na
Lacedemônia os rapazes recebiam o amor da pátria ao som das flautas, em odes puras! Já nos
íamos despedir. O pastor deu-nos o seu jornal, com um artigo de D. Arquimina Barreto, uma
erudita senhora.
- Somos todos iguais perante Deus. No templo pode falar o mais ignorante como o mais
sábio... Deus deseja a virtude antes de tudo. D. Arquimina alia as virtudes a um grande saber.

- E, a propósito, aquela senhora organista é sua esposa?
- Não, eu ainda me vou casar nos Estados Unidos.
E eu saí encantado com a clara inteligência desse pastor, que espera calmo e virtuoso o
fim do mundo, enquanto, à porta, o velho blandicioso distribui Purgatórios contra os padres e as
moças.
A A.C.M.
- Olhe as terras onde se propaga o Evangelho.
Desde um ao outro pólo,
Da China ao Panamá,
Do africano solo
Ao alto Canadá
a A.C.M. conquista, suaviza, prestigia e guia...
Nós acabávamos de jantar e o meu ilustre amigo, com um copo d'água pura na mão,
dizia-me coisas excelentes.
- O nosso movimento, continuou, conta entre os seus amigos Eduardo da Inglaterra, o
príncipe Bernadotte da Suécia, o presidente dos Estados Unidos e Guilherme II. Na França,
ministros de Estado aceitam cargos de administração da A.C.M.; na Inglaterra os seus edifícios
erguem-se em todas as cidades como os grandes lares da juventude honesta, e por toda a parte
ela reforma os costumes e purifica as almas dos moços, tornando-os simétricos e bons. Você
não terá uma idéia integral do movimento das cinco igrejas evangélicas do Rio sem ir apreciar
de perto o capitel magnífico dessa coluna de branco mármore. A A.C.M. é o remate admirável
da nossa obra de propaganda.
Finquei os cotovelos na mesa com curiosidade.
- Mas a origem da A. C. M. no mundo?
- Shuman, secretário-geral em Buenos Aires, disse-nos na convenção de 1903 essa
origem. Em 1836 apareceu na cidade de Bridgewater, na Inglaterra, um rapazola de 15 anos,
chamado George Wiliams. Mandava-o o pai do campo para aprender um ofício. George viu que
os seus sessenta companheiros eram de moral duvidosa e sem crença e que de um meio tão
grande só dois ou três oravam ao Redentor. Orou também no seu mísero quarto, por trás da
oficina, durante uma hora. A princípio fazia só esses exercícios, depois convidou os
companheiros, e cinco anos depois estava em Londres. Londres! a cidade mais populosa do
mundo!
Conhece você os perigos das cidades, o desvario, a luxúria, a perdição, o jogo, a ambição
desmedida dos grandes centros? Onde se congregam mais os homens, aí entra com mais
certeza Satanás, aí grassa mais terrível a epidemia da perdição. Wiliams na fábrica em que se
empregou, não encontrou um só cristão. Ao cabo de um mês, porém, apareceu um novo
empregado, Christofer Smith, e os dois ligados pela amizade, resolveram a conversão dos
companheiros, convidando-os para estudar a Bíblia e orar. Em pouco tempo as reuniões
cresceram, e a 10 de junho de 1844 representantes dessas reuniões efetuaram a organização
da primeira Associação Cristã de Moços. Foi seu fundador uma criança de 20 anos, mandada
pelo Salvador a um meio cheio de vícios e de tentações para lhe dar o bálsamo da honestidade.
A pequena associação estendeu-se a todos os países do mundo. Hoje há mais de 1.500
na Inglaterra, de 1851 até agora 1.600 fundaram-se só nos Estados Unidos. À primeira
convenção internacional compareceram 39 delegados de 38 associações em sete países; em
1902 em Cristiania assistiram 2.508 delegados de 31 países. Há 60 anos a A.C.M. iniciou os
seus trabalhos; hoje só na América do Norte há mais de 25.000 moços estudando a Bíblia nas
classes das associações e num só ano 3.560 professaram a sua fé convertidos na Associação e
9.600 outros se dedicaram ao serviço do Senhor.
- As A.C.M. não admitem apenas crentes professos?
- Não, a Associação de Londres resolveu, em 1848, receber como sócios auxiliares os
moços de boa moral. Atualmente metade dos nossos sócios, cerca de 250.000, pertence a essa
classe. Mas, meu caro, é esta uma base luminosa da propaganda, chamar a si os olhos do
mundo, mostrar a pureza num século de impurezas, tolerar e purificar. Entre os estudantes das
escolas, na profissão borboletante do jornalismo, nas raças mais estranhas, entre chins e   caboclos selvagens, na classe universalmente conhecida pela sua intemperança, nos
empregados das estradas de ferro da América, a propaganda alça por esse meio a branca
flâmula da Associação.
O meu ilustre amigo calou-se. No restaurante o burburinho crescia, senhoras com toilettes
caras, homens contentes, curvavam-se no prazer de comer. Havia risos, criados passavam com
os pratos de cristofle brilhando à luz dos focos, em baldes de metal as garrafas gelavam e das
jarras de cristal as flores de pano pendiam desoladas ao peso do pó e do tempo. Todos ali
conversavam de interesse, de ambição, de amor, de si mesmos... Senti-me superior, mandei vir
um copo d'água, bebi-o com pureza. Naquela grande feira nós conversávamos da alma e do
bem universal!
- E a A.C.M. do Rio?
- A nossa Associação tem também a sua evolução. Os primeiros moços cristãos reuniramse para ouvir Simonton e Kalley na travessa das Partilhas. Foi aí que germinou a idéia de uma
sociedade evangélica de moços. Em junho de 1866 cerca de vinte crentes organizaram a
Sociedade Evangélica Amor à Verdade, que se manteve durante quatro anos.
Em 1871 apareceu uma outra sociedade com fins idênticos, funcionando na travessa das
Partilhas e na travessa da Barreira. Esta chamava-se o Grêmio Evangélico, tinha uma oficina de
impressão da qual eram tipógrafos e impressores os próprios sócios, dirigidos por Antônio
Trajano, Azaro de Oliveira, Carvalho Braga e Ricardo Holden.
Myron Clark, que fez o histórico desse movimento, conta ainda mais, antes da atual
Associação, a Boa Nova, dirigida por A. Seabra, M. Diel e Antônio Meireles, em 1875; o Grêmio
Evangélico Fluminense organizado por Antônio de Oliveira, Severo de Carvalho, Noé Rocha e
Benjamin da Silva, na rua de S. Pedro, 97, com o fim de manter um jornal de propaganda, uma
classe de música, biblioteca, sessões literárias; a Associação Cristã dos Moços, fundada na
mesma rua de S. Pedro com uma diretoria composta pelos Srs. João dos Santos, Antônio
Andrade, José Luiz Fernandes Braga e Salomão Guisburgo, que publicaram o Bíblia, primeiro
jornal evangélico a ocupar-se da mocidade no Brasil; e a Sociedade Evangélica de São Paulo.
A A.C.M. do Rio foi fundada a 31 de maio de 1893. Vinte e dois moços, representantes
das igrejas Metodistas, Presbiteriana, Fluminense e Batista, reuniram-se na rua Sete de
Setembro, 79 e Myron Clark e Tucker expuseram o fim da reunião. Dias depois aprovaram os
estatutos e elegiam a diretoria: Nicolau do Conto, Antônio Meireles, Luís de Paula e Silva Myron
Clark e Irvine. Não é possível ter feito tanto em tão pouco tempo! Em 8 de agosto a Associação
já estava instalada na rua da Assembléia e começava a pôr em atividade os diversos
departamentos do trabalho social.
Nem a revolta, nem os bombardeios, nem a agitação apavorada da cidade conseguiram
esfriar o santo entusiasmo. Quando os tiros eram muitos, a Associação fechava as suas salas,
para no outro dia abri-las; as aulas funcionavam; e no dia 12 de outubro, quando toda a gente só
falava em tiroteios, os moços cristãos iam a Copacabana, iniciando um dos seus ramos de
trabalho, a excursão social.
- Como se realizou a compra do prédio?
O evangelista limpou o lábio seco.
- Em 1895, o secretário-geral sugeria a conveniência do projeto. A diretoria aprovou-o; na
reunião da vigília os Revs. Leônidas da Silva e Domingos Silveira falaram, pedindo donativos e
compromissos mensais para criar-se um fundo especial, e nesta ocasião começaram os
trabalhos da comissão dos compromissos. A Associação tem tido poderosos auxílios
estrangeiros, tem em Fernandes Braga, uma alma pura e nobre, um grande esteio, mas no fim
da reunião da comissão verificou-se que a soma total dos compromissos era de 65$000
mensais.
- Deus do Céu!
- O patrimônio da Associação eleva-se hoje a mais de cem contos. Fernandes Braga
comprou o terreno, James Lawson ofereceu-se para emprestar o dinheiro das obras, abriu-se
uma subscrição, Braga deu dez contos e Lawson dois; a comissão, composta de Fernandes
Braga Júnior, Lisânias Cerqueira Leite, Luís Fernandes Braga, Domingos de Oliveira e Oscar
José de Marcenes, multiplicou-se. Dois anos depois inaugurava-se o edifício, a casa dos moços,
a obra de Deus, como diz o Rvdm. Trajano. A nossa satisfação, porém, meu caro, não vem
apenas da realização desse tentamen.
A A.C.M. do Rio acendeu nos evangelistas do Brasil o desejo de associações idênticas

Eu, só, posso citar a Associação Cristã de Moços de Belo Horizonte, a Sociedade de Moços
Cristãos de Castro (do Paraná), a A.C.M. de Sorocaba, a Associação Educadora da Bahia, a
de Taubaté, a Legião da Cruz, a Milícia Cristã, a Associação de Santo André no Rio Grande, a
Associação Cristã dos Estudantes no Brasil, filiada à Federação dos Estudantes no Universo, de
São Paulo, a do Natal e a de Nova Friburgo.
Dentro em pouco estaremos como os Estados Unidos.
- Prouvera a Deus!
Tínhamo-nos erguido.
- Onde vai?
- Por aí, passear, ver.
- Pois venha comigo à Associação, agora. São 7 horas, estão funcionando as aulas.
Venha e terá uma impressão do que é o centro do evangelismo no Brasil.
E saímos pelas ruas pouco iluminadas, em que a chuva miúda punha um véu de névoas.
A Associação não é nem uma igreja nem uma sociedade mundana, embora possua
característicos profanos e seculares; é a casa dos moços, o segundo lar que supre as
necessidades intelectuais com biblioteca, cursos, aulas, conferências; mantém a sociabilidade
da juventude em salões de diversões, desenvolve-lhe o físico com ginásticas, jogos atléticos,
passeios, piqueniques e, conjuntamente, lhe faz sentir a necessidade da religião. Há nessa
instituição de fonte inglesa o desejo de um equilíbrio, a vontade de criar o moço simétrico, o
desenvolvimento harmonioso, num ser vivo, da inteligência, do físico, da natureza social e da
alma.
O homem nas grandes cidades perde-se. A Associação ampara-o, serve-lhe de escola, de
clube, de lar, de templo, dá-lhe banho, conversas morais, pingue-pongue, danças, aulas
noturnas, ensina-lhe a Bíblia, põe-lhe à disposição os jornais do mundo, fá-lo assistir a
conferências sobre assuntos diversos. O moço deixa o lar paterno e, enquanto por sua vez não
forma outro lar, fica nesse ambiente de honestidade, não só se tornando o tipo admirável do
equilíbrio, como preservando das avarias e dos sofrimentos a prole futura.
A Associação é o conforto, a paz e broquel da honestidade por estes turvos tempos. Tudo
quanto ensina é útil, tudo quanto diz é honesto, tudo quanto faz é para o bem.
Ao subir as altas escadarias, recordei a frase do meu amigo. A Associação é o capitel, é a
razão de ser da futura propaganda, é o centro do evangelismo, a maneira eficaz por que todas
as igrejas evangelistas demonstram na sua perfeita integridade a vida do cristão.
Quando chegamos lá em cima, funcionavam as aulas: na sala de diversões jogava-se o
crokinole e o carroms; a um canto conversava-se. Todos estavam bem dispostos e riam com
prazer. O meu ilustre amigo apresentou-me ao presidente, Braga Júnior, um moço inteligente,
extremamente modesto; ao secretário, de uma distinção perfeita; e os dois mostraram-me,
simples e sem exageros, os vastos salões, o de ginástica, o das conferências, o de estudos
bíblicos, aulas, a secretaria, a biblioteca.
A gentileza peculiar aos evangelistas cativava naquele vasto prédio, cheio de vida e de
mocidade. Cada frase do secretário era uma noção exata, cada reflexão do presidente tinha um
grande ar de bondade e de modéstia. As mobílias eram novas e por toda a parte os conselhos
cristãos abundavam.
- Não admire aqui, disse o meu amigo, senão a vida do civilizado e do honesto. Você
conversou com os pastores, esteve com os missionários, assistiu ao culto nas nossas igrejas,
viu o esforço das missões. Veja agora apenas a vida. Estes que aqui estão, meu amigo, livres
estão dos três horrendos animais da visão dantesca. Não os aterram a pantera da literatura
pornográfica, o leão do jogo da bola e a loba da lascívia. E, por isto, salvos por Cristo, serão
maiores amanhã e mais fortes.
Senhor! parecia uma conversão! Apertei-lhe a mão, deixei-o jogando pingue-pongue,
desci os dois andares. Na rua ventava uma chuva fria e penetrante. A loba, a lascívia, a pantera,
a pornografia, o leão, o jogo, a eterna vida! Quantos neste mundo se salvaram dos animais
simbólicos na grande banalidade da existência, quantos?
Como apertasse a chuva, embrulhei-me mais no paletó, atravessei as ruas escuras
recordando a aparição que fizera recuar o Dante até lá dove'l sol tace.
Mas sem gritar e sem ver o vulto da salvação, porque talvez a tivesse deixado no salão de
divertimentos, na doce paz daquelas almas fortes e tranqüilas.


IRMÃOS E ADVENTISTAS

Na própria A.C.M. eu soube que o evangelismo ainda tinha duas igrejas no Rio, os irmãos
e os sabatistas. Dos irmãos, apesar dessa classificação tão parternal, o meu informante só
conhecia um probo negociante da rua do Hospício.
Esse negociante era um homem baixo, simples e modesto, vendendo relógios e amando a
Deus. Recebeu-me por trás do mostrador, e quando soube que tinha sob os olhos um curioso,
pasmou.
- Interessa-lhe muito saber o que são os cristãos?
- Os irmãos...
- Perdão, os cristãos.
- Era para mim um grande favor.
Ele coçou a cabeça, alegou uma grande ignorância, com humildade. Depois, como eu
continuava diante dele, resolvido a não sair, resignou-se.
- Os irmãos que se reúnem à rua Senador Pompeu, n.
0 121 denominam-se cristãos.
Não precisa perguntar porque. Leia os atos dos Apóstolos capítulo 11, versículo 26.
Existem no Rio, há vinte e cinco anos. Não tem templo próprio, reúnem-se em casa de um irmão
como deve ser. Leia a Epístola de São Paulo aos Romanos, capítulo 16, versículo 5. Os seus
estatutos, a sua regra de fé são as Escrituras e a sua divisa é não ir além delas. Leia a 1 a
Epístola aos Coríntios, capítulo 4, versículo 6.
- E o pastor, quem é?
- Reconhecemos como único pastor a Jesus Cristo. Leia São João, capítulo 10,
versículos 11 a 16. O governo da igreja está ao cuidado dos anciãos ou mais velhos, que fazem
esse serviço sem outra remuneração que não sejam o respeito e a honra da igreja. Leia os
Atos... Como não nos achamos autorizados pelas Escrituras, não celebramos casamentos,
reconhecemos o instituído pelas potestades legalmente constituídas, a quem buscamos
obedecer, desde que não contrariem as determinações de Deus. Leia a Epístola aos Romanos
versículos 1 a 6. Naturalmente cuidamos dos pobres e dos enfermos, fazendo coletas e
seguindo o ensino das Escrituras. Veja a Epístola aos Coríntios.
- Como se pratica o culto?
- No primeiro dia da semana congregamo-nos para celebrar a festa da Páscoa cristã, ou a
Ceia do Senhor, às 11 da manhã com pão e vinho. Nessa ocasião adoramos a Deus, entoando
hinos e lendo as Escrituras, interpretando-as e edificando a alma com muitos outros dons do
Espírito Santo. Basta ler a neste respeito São Paulo e os Atos e o Evangelho segundo São
Mateus. Reunimo-nos também aos domingos das 5½ às 6½ da tarde para estudar as
Escrituras. Das 6½ às 7½ prega-se o Evangelho.
Era simples, puro, primitivo. Aquele relojoeiro, que a cada palavra parecia amparar a sua
autoridade na palavra da Bíblia, enternecia.
- E que se diz nessa hora de domingo aos pobres pecadores e irmãos?
- Vede os Atos, São Paulo, São João... Só há um Salvador, só há um meio para o perdão
dos pecados e só existe um mediador entre Deus e os homens - é nascer de novo, é nascer do
Espírito Santo. Esperemos a sua chegada.
- Então, Cristo está para chegar.
Gravemente o honesto irmão olhou-me.
- Talvez demore. Talvez venha aí... A corrupção é tanta que só ele a pode extinguir.
Saí meio aflito. É possível que ainda se encontre um cristão de conto católico em plena
cidade do vício, é possível essa candura?
Estava de tal forma nervoso que, sabendo obter de um crente em Niterói informações
sobre os adventistas, escrevi logo uma carta espetaculosa, pedindo-lhe uma nota de efeito.
No dia seguinte lia esta resposta lacônica e seca: - "I;mo. Sr. - Se quiser compreender a
verdade de Deus, venha V. S. até ao nosso templo, em Cascadura."
Era uma recusa? Era uma lição? Guardei a carta humilhado, porque grande crime é para
mim magoar a crença de qualquer, e estava, domingo, tristemente lendo, quando à porta surgiu  um homem de negra barba cerrada, vestido numa roupa de xadrez. Olhou-me fixamente,
limpamente, e a sua voz, de uma inédita doçura, disse:
- Eu sou o crente a quem há tempos escreveu!
Levantei-me nervoso. A tarde de inverno, caindo, punha pela sala uma aragem álgida, e a
minha pobre alma estava num desses momentos de sensibilidade em que se crê no
maravilhoso e nos espaços. Fui excessivo de gentileza. Pedia perdão, de não ter obedecido ao
convite, mas era tão longe, tão vago, em Cascadura...
O crente fervoroso sentou-se, pousou a sua mala no chão, encostou o velho guarda-chuva
à parede.
- Não é bem em Cascadura, fica entre Cupertino e essa estação, deixei de mandar-lhe as
notas porque não me achava com competência para as dar. São João disse. Temei a Deus e
dai-lhe Glória. Eu sou muito humilde, só lhe posso dar a minha crença.
- Mas uma simples informação?
- Era preciso consultar os meus irmãos.
Eu ficara na sombra, a luz batia-lhe em cheio no rosto. Reparei então nos traços dessa
fisionomia. O lábio era quase infantil, os dentes brancos, pequenos, cerrados, e toda aquela
espessa barba negra parecia selar potentemente a inefável bondade do seu perfil. De resto o
crente era tímido, cada palavra sua vinha como um apostolado que se desculpa e a sua voz
persuasiva ciciava baixinho a crença do Infinito, com um conhecimento dos livros sagrados
extraordinário.
- Mas a origem dos adventistas? - indaguei eu.
O crente puxou a cadeira.
Uma discussão que se levantou na América em 1840 e na qual Guilherme Miller ocupou
lugar saliente. Os adventistas esperavam o fim do mundo em 1844, porque a profecia de Daniel,
no capitulo 8 versículo 14, diz que o santuário será justificado ou purificado ao fim do decurso do
período profético de 2.300 dias.
- Deus! em tão pouco tempo?
- Dias proféticos equivalentes a um ano. Os adventistas julgavam que o 2.300 era o ano
de 1.844 e que a justificação ou purificação do santuário importaria em ser queimada a terra
com a vinda de Cristo.
Esperavam pois a vinda de Jesus.
Olhei o crente. Os seus olhos eram beatos como os olhos dos puros.
- Ora o tempo passou e Cristo não veio...
- Sim - fez ele -, e claro ficou o erro. Ou houve falta na contagem dos 2.300 dias ou a
purificação do santuário não era purificação da terra na segunda vinda de Cristo. Mas a questão
agitara o estudo. A coisa foi examinada e duas opiniões se formaram. Uns julgavam que o
período profético ainda não decorrera, outros, com lento trabalho, chegaram à convicção de que
o erro existia na palavra santuário.
- Então o santuário?
- Não tem aplicação à terra, mas verdadeiramente ao céu, onde Jesus Cristo entrou no fim
desse período de tempo, para purificá-lo com o seu próprio sangue, conforme está descrito.
A classe que aceitou essa interpretação é a que se chama adventistas do 7.º dia. Não
marcamos tempo nem cremos que qualquer período profético assinalado na Bíblia se estenda
até nós.
- Então aceitam como base da fé?
- A Bíblia Sagrada, a palavra de Deus, sem tradições, e a autoridade de qualquer igreja.
Cristo é o Messias prometido, só por ele se obtém a salvação. As pessoas salvas observam os
dez mandamentos inclusive o 4.º, celebram a Santa Ceia do Senhor, em conexão com o ato de
humildade praticado por Jesus Cristo, crêem na ressurreição, que os mortos dormem até esse
momento, conforme as palavras do Salvador em São João..
- A ressurreição?
- Sim, a dos justos far-se-á na segunda vinda de Cristo, a dos ímpios mil anos depois, com
um grande fogo que os queimará e purificará a terra!
- Então não é cedo?...

 - Infelizmente, parece. Nós fazemos o bem, temos uma missão médica, que envia
facultativos a toda a parte do mundo, fundamos sanatórios, e, crendo que a educação intelectual
não basta, conseguimos escolas industriais.
À semelhança do cristianismo nos tempos apostólicos o adventismo tomou um rápido
incremento, elevando-se o número de crentes a 80.000, segundo as profecias sagradas.
- E a obra no Brasil?
- A obra no Brasil começou em 1893, contando hoje um número de membros leigos de
800 a 900 espalhados na maioria pelos Estados de Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul,
contando o seu corpo eclesiástico: três pregadores ordenados, três licenciados, dois
missionários médicos, dois professores diretores de escolas missionárias e onze professores de
escolas paroquiais, sete colportores evangelistas, uma revista O Arauto da Verdade e um
redator.
Na sua organização outros membros ocupam cargos segundo os dons manifestados e
conforme a necessidade do trabalho na obra de Deus.
Tem quinze igrejas organizadas.
O atual presidente do trabalho é um médico missionário Dr. H. F. Graf, residente em
Taquari - Rio Grande do Sul - e o secretário-tesoureiro, o irmão A . B. Stauffer, residente no
Distrito Federal, em Cascadura.
Há ainda uma comissão administrativa composta de sete pessoas, duas escolas
missionárias, uma em Taquari no Rio Grande do Sul, outra em Brusque, Santa Catarina, e onze
escolas paroquiais.
Ele levantara-se. Terminada a informação, partia como um personagem de lenda. Pegou
da mala, do guarda-chuva.
- Bernardino Loureiro, quando quiser...
Apertei-lhe a mão com reconhecimento. Se há no mundo momentos fugazes de
sinceridade, a presença desse varão mos tinha dado com a extrema paz que vinha da sua
palavra.
- Diga-me uma coisa, uma última. E Cristo? Quando vem Cristo?
- Os sinais que deviam preceder a sua vinda, conforme Ele mesmo predisse em Mateus,
cumpriram-se. É de crer que a sua vinda esteja próxima.
- Quando?
- Ainda nesta geração, talvez amanhã, quem sabe?
Tornou a apertar-me a mão, sumiu-se. Passara como o anunciador, apagara-se como um
raio de sol.
A noite caíra de todo. As trevas subiam lentamente pelas paredes, e a brisa úmida,
entrando pelas janelas, sacudia as folhas de papel esparsas, num tremor assustado.

O SATANISMO
OS SATANISTAS

- Satanás! Satanás!
- Che vuoi?
- Não o sabes tu? Quero o amor, a riqueza, a ciência, o poder.
- Como as crianças, as bruxas e os doidos - sem fazer nada para os conquistar.
O filosófico Tinhoso tem nesta grande cidade um ululante punhado de sacerdotes, e,
como sempre que o seu nome aparece, arrasta consigo o galope da luxúria, a ânsia da volúpia e
do crime, eu, que já o vira Exu, pavor dos negros feiticeiros, fui encontrá-lo poluindo os retábulos
com o seu deboche, enquanto a teoria báquica dos depravados e das demoníacas estorcia-se
no paroxismo da orgia... Satanás é como a flecha de Zenon, parece que partiu, mas está
parado - e firme nos corações. Surgem os cultos, desaparecem as crenças, esmaga-se a sua
recordação, mas, impalpável, o Espírito do Mal espalha pelo mundo a mordacidade de seu riso
cínico e ressurge quando menos se espera no infinito poder da tentação.
Conheci alguns dos satanistas atuais na casa de Saião, o exótico herbanário da rua Larga
de São Joaquim, o tal que tem à porta as armas da República. Saião é um doente. Atordoa-o a  loucura sensual. Faceirando entre os molhos de ervas, cuja propriedade quase sempre
desconhece, o ambíguo homem discorre, com gestos megalômanos, das mortes e das curas
que tem feito, dos seus amores e do assédio das mulheres em torno da sua graça. A conversa
de Saião é um coleio de lesmas com urtigas. Quando fala cuspinhando, os olhitos atacados de
satiríasis, tem a gente vontade de espancá-lo. A casa de Saião é, porém, um centro de
observação. Lá vão ter as cartomantes, os magos, os negros dos ebôs, as mulheres que
partejam, todas as gamas do crime religioso, do sacerdócio lúgubre.
Como, uma certa vez, uma negra estivesse a contar-me as propriedades misteriosas da
cabeça do pavão, eu recordei que o pavão no Curdistão é venerado, é o pássaro maravilhoso,
cuja cauda em leque reproduz o esquema secreto do deus único dos iniciados pagãos.
- O senhor conhece a magia? - fez a meu lado um homem esquálido, com as abas da
sobrecasaca a adejar.
Imediatamente Saião apresentou-nos.
- O Dr. Justino de Moura.
O homem abancou, olhando com desprezo para o erbanário, limpou a testa inundada de
suor e murmurou liricamente.
- Oh! a Ásia! a Ásia...
Eu não conhecia a magia, a não ser algumas formas de satanismo. O Dr. Justino puxou
mais o seu banco e conversamos. Dias depois estava relacionado com quatro ou cinco frustes,
mais ou menos instruídos, que confessavam com descaro vícios horrendos. Justino, o mais
esquisito e o mais sincero, guarda avaramente o dinheiro para comprar carneiros e chupar-lhes
o sangue; outro rapaz magríssimo, que foi empregado dos Correios, satisfaz apetites mais
inconfessáveis ainda, quase sempre cheirando a álcool; um outro moreno, de grandes bigodes,
é uma figura das praças, que se pode encontrar às horas mortas... Se de Satanás eles falavam
muito, quando lhes pedia para assistir à missa-negra, os homens tomavam atitudes de romance
e exigiam o pacto e a cumplicidade.
A religião do Diabo sempre existiu entre nós, mais ou menos. Nas crônicas
documentativas dos satanistas atuais encontrei de envoutement e de malefícios, anteriores aos
feitiços dos negros e a Pedro I. A Europa do século XVII praticava a missa-negra e a missabranca. É natural que algum feiticeiro fugido plantasse aqui a semente da adoração do mal. Os
documentos - documentos esparsos sem concatenação que o Dr. Justino me mostrava de vez
em quando - contam as evocações do Papa Aviano em 1745. Os avianistas deviam ser nesse
tempo apenas clientes, como é hoje a maioria dos freqüentadores dos espíritas, dos magos e
das cartomantes. No século passado o número dos fanáticos cresceu, o avianismo transformouse, adaptando correntes estrangeiras. A princípio surgiram os paladistas, os luciferistas que
admiravam Lúcifer, igual de Adonai, inicial do Bem e deus da Luz.
Esses faziam uma franco-maçonaria, com um culto particular, que explicava a vida de
Jesus dolorosamente. Guardam ainda os satanistas contemporâneos alguns nomes da confraria
que insultava a Virgem com palavras estercorárias: - Eduardo de Campos, Hamilcar Figueiredo,
Téopompo de Sonsa, Teixeira Werneck e outros, usando pseudônimos e compondo um rosário
de nomes com significações ocultistas e simbólicas. Os paladistas não morreram de todo, antes
se transfusaram em formas poéticas. No Paraná, onde há um movimento ocultista acentuado -
como há todas as formas da crença, sendo o povo de poetas impressionáveis -, existem
atualmente escritores luciferistas que estão dans le train dos processos da crença na Europa. A
franco-maçonaria, morto o seu antigo chefe, um padre italiano Vitório Sengambo, fugido da Itália
por crimes contra a moral, desapareceu. No Brasil não andam assim os apóstatas e, apesar do
desejo de fortuna e de satisfações mundanas, é difícil se encontrar um caso de apostasia no
clero brasileiro. Os luciferistas ficaram apenas curiosos relacionados com o supremo diretório de
Charleston, donde partirá o novo domínio do mundo e a sua descristialição.
Os satanistas ao contrário imperam, sendo como são mais modestos.
Sabem que Satã é o proscrito, o infame, o mal, o conspurcador, fazem apenas o
catolicismo inverso, e são supersticiosos, depravados mentais, ou ignorantes apavorados das
forças ocultas. O número de crentes convictos é curto; o número de crentes inconscientes é
infinito.
Seria curioso, neste acordar do espiritualismo em que os filósofos materialistas são
abandonados pelos místicos, ver como vive Satã, como goza saúde o Tentador.
Nunca esse espírito interessante deixou de ser adorado. No início dos séculos, na idade-  média, nos tempos modernos contemporaneamente, os cultos e os incultos veneram-no como a
encarnação dos deuses pagãos, como o poder contrário à cata de almas, como o Renegado. As
almas das mulheres tremem ao ouvir-lhe o nome, as criações literárias fazem-no de idéias frias
e brilhantes como floretes de aço, no tempo do roman
tismo o Sr. Diabo foi saliente. Hoje Satanás dirige as literaturas perversas, as pornografias, as
filosofias avariadas, os misticismos perigosos, assusta a Igreja Católica, e cada homem, cada
mulher, por momentos ao menos, tem o desejo de o chamar para ter amor, riqueza, ciência e
poder. Bem dizem os padres: Satanás é o Tentador; bem o pintou Tintoreto na Tentação, bonito
e loiro como um anjo...
A nossa terra sofre cruelmente da crendice dos negros, agarra-se aos feiticeiros e faz a
prosperidade das seitas desde que estabeleçam o milagre. Satanás faz milagres a troco de
almas. Quem entre nós ainda não teve a esperança ingênua de falar ao Diabo, à meia-noite,
mesmo acreditando em Deus e crendo na trapaça de Fausto? Quantos, por conselhos de
magos falsos, em noites de trovoada, não se agitaram em lugares desertos à espera de ver
surgir o Grande Rebelde? Há no ambiente uma predisposição para o satanismo, e como,
segundo o Apocalipse, é talvez neste século que Satanás vai aparecer, o número dos satanistas
autênticos, conhecedores da Cabala, dos fios imantados, prostituidores da missa, aumentou. Há
hoje para mais de cinqüenta.
Quarta-leira santa encontrei o Dr. Justino no Saião. O pobre estava mais pálido, mais
magro e mais sujo, levando sempre o lenço à boca, como se sentisse gosto de sangue.
Continua nas suas cenas de vampirismo? - sussurrei eu. Nos olhos do Dr.
Justino uma luz de ódio brilhou.
- Infelizmente o senhor não sabe o que diz! Deu dois passos agitados, voltou-se, repetiu:
infelizmente não sabe o que diz! O vampirismo! alguém sabe o que isto é? Não se faça de
cético. Enquanto ri, a morte o envolve. Agora mesmo está sentado num molho de solanéas.
Eu o deixara dizer, subitamente penalizado. Nunca o vira tão nervoso e com um cheiro tão
pronunciado de álcool.
- Não ria muito. O vampirismo como a sua filosofia cooperam para a vitória definitiva de
Satanás... Conhece o Diabo?
A pergunta feita num restaurant bem iluminado seria engraçada. Naquele ambiente de
herbanário, e na noite em que Jesus sofria, fez-me mal.
- Não. Também como o conhecer, sem o pacto?
- O pacto é conhecimento de causa.
Passeou febrilmente, olhando-me como a relutar com um desejo sinistro. Por fim agarroume o pulso.
- E se lhe mostrasse o Diabo, guardaria segredo?
- Guardaria! - murmurei.
- Então venha.
E bruscamente saímos para o luar fantástico da rua. Esta cena abriu-me de repente um
mundo de horrores. O Dr. Justino, médico instruído, era simplesmente um louco. No bonde,
aconchegando-se a mim, a estranha criatura disse o que estivera a fazer antes do nosso
encontro. Fora beber o seu sanguezinho, ao escurecer, num açougue conhecido. Como todos
os degenerados, abundou nos detalhes. Mandava sempre o carneiro antes; depois, quando as
estrelas luziam, entrava no pátio, fazia uma incisão no pescoço do bicho e chupava, sorvia
gulosamente todo o sangue, olhando os olhos vítreos do animal agonizante.
Não teria eu lido nunca o livro sobre o vampirismo, a possessão dos corpos? Pois o
vampirismo era uma conseqüência fatal dessa legião de antigos deuses pagãos, os sátiros e os
faunos, que Satanás atirava ao mundo com a forma de súcubos e incubos. O Dr. Justino era
perseguido pelos incubos, não podia resistir, entregava-se...
Já não tinha espinha, já não podia respirar, já não podia mais e sentia-se varado pelos
símbolos fecundos dos incubos como as feiticeiras em êxtase, nos grandes dias de sabbat.
Sacudi a cabeça como quem faz um supremo esforço para não soçobrar também.
O cidadão com quem falava era um doido atacado do solitário vício astral! Ele, entretanto,
febril, continuava a descrever o poder de Satã sobre os cadáveres, a legião que acompanhou o
Supremo e o inebriamento sabático.
- Mas, doutor, compreendamos. O sabbat em plena cidade? As feiticeiras de Shakespeare   no Engenho Novo?
- Satã continua cultuado, por mais que o mundo se transforme. O sabbat já se fez até nos
telhados. Os gatos e os morcegos, animais de Satã, vivem entre as telhas.
Lembrei-me de um caso de loucura, um estudante que recebia o diabo pelos telhados, e
morrera furioso. Não me pareceu de todo falso. O sabbat, porém, o sabbat clássico, a festa
horrenda da noite, o delírio nos bosques em que as árvores parecem demônios, a ronda
detestável das mulheres nuas, subindo aos montes, descendo as montanhas, a fúria necrófila
que desenterrava cadáveres e bebia álcool com sangue extinguiu-se. A antiga orgia, a
comunicação imunda com o Diabo não passa de contos de demonógrafos, de fantasias de
curiosos. Satã vive hoje em casa como qualquer burguês. Esse cavalheiro poderoso, o Tinhoso,
não vai mais para trás das ermidas oficiar, as fúrias desnudas não espremem mais o suco da
vida, rolando nas pedras, sob a ventania do cio. Todo o mal que a Deus fazem é em casa, nos
deboches e na prostituição da missa.
E que vida a deles! Agora que o bonde passava pelo canal do Mangue e a lua batia na
coma das palmeiras, o pobre homem, tremendo, contava-me as suas noites de agonia. Sim, o
Dr. Justino temia os lêmures e as larvas, dormia com uma navalha debaixo do travesseiro, a
navalha do Cambucá, um assassino que morrera de um tiro. As larvas são fragmentos de idéias,
embriões de cóleras e ódios, restos de raivas danadas que sobem do sangue dos criminosos e
do sangue regular das esposas e virgens aos astros para envolver as criaturas, são os
desesperos que se transformam em touros e elefantes, são os animais da luxúria. E esses
animais esmagavam-no, preparando-o para o grande escândalo dos incubos.
- Mas certamente, fiz para acalmá-lo, Satã, desde que se faz com o inferno um pacto e
uma aliança com a morte, dá o supremo poder de magia, o quebranto, a bruxaria, o malefício, o
envolver das vontades...
Ele sorriu tristemente, tiritando de febre.
- A magia está muito decaída, eivada de costumes africanos e misturadas de pagés.
Conhece o malefício do ódio, a boneca de cera virgem? Esmagava-se a cera, modelava-se um
boneco parecido com o odiado, com um dente, unhas e cabelos seus. Depois vestiam-lhe as
roupas da pessoa e no batismo dava-se-lhe o seu próprio nome. Por sobre a boneca o mago
estendia uma corda com um nó, símbolo da sua resolução e exclamava: - Arator, Lepidator,
Tentador, Soniator, Ductor, Comestos, Devorator, Seductor, companheiros da destruição e do
ódio, semeadores da discórdia que agitam livremente os maléficos, peço-vos e conjuro-vos que
admitais e consagreis esta imagem...
- E a cera morna...
- Animado do seu ódio, o mago dominava as partículas fluídicas do odiado, e praguejando
acabava atirando a boneca ao fogo, depois de trespassá-la com uma faca. Nessa ocasião o
odiado morria.
- E o choque de volta?
- Quando o enfeitiçado percebia, em lugar de consentir nas perturbações profundas do
seu ser, aproveitava os fluídos contra o assassino e havia conflagração.
O mágico, porém, podia envenenar o dente da pessoa, distender-se no éter e ir tocá-la.
Havia ainda o envoutement retangular...
Hoje, os feiticeiros são negros, os fluídos de uma raça inferior destinados a um domínio
rápido. Os malefícios satânicos estão inundados de azeite-de-dendê e de ervas de caboclos.
Então, encostado a mim, com mau hábito, enquanto o bonde corria, o Dr. Justino deu-me
várias receitas. Como se estuda nesse receituário macabro o temor de várias raças, desde os
ciganos boêmios até os brancos assustadiços! O sangue é o seu grande fator: cada feitiço é um
misto de imundície e de infâmia. Para possuir, para amar, para vencer, os satanistas usam,
além das receitas da clavícula, de morcegos, porcos-da-índia, pós, ervas, sangue mensal das
mulheres, ratos brancos, produto de espasmos, camundongos, rabos de gatos, moedas de ouro,
fluidos, carnes, bolos de farinha com óleos, e para abrir uma chaga empregam, por exemplo, o
ácido sulfúrico...
- Com o poder do Horrendo, fez subitamente o médico numa nova crise, é lá possível
temer esse idiota que morreu na cruz? Sabe que os talmudistas negam a ressurreição?
Levantou-se titubeante, saltamos. O bonde desapareceu. Embaixo, no leito do caminho de
ferro, os rails de aço branquejavam, e, no ar, morcegos faziam curvas sinistras. O Dr. Justino
ardia em febre. De repente ergueu os pulsos.

- Impostor! Torpe! Salafrário! - ganiu aos céus estrelados.
- Onde vamos?
- À missa-negra...
- Onde?
- Ali.
- Estendeu a mão, veio-lhe um vômito, emborcou no meu braço que o amparava, golfando
num estertor pedaços de sangue coagulado.
Ao longe ouviu-se o silvo da locomotiva.
Então, como possuído do Diabo nos braços eu bati à porta dos satanistas, ouvindo a sua
desgraçada vida e a dor infindável da morte.

A MISSA-NEGRA

Atravessamos uma aléia de sapucaias. O terreno enlameado pegava na sola dos sapatos.
Justino ia à frente, com um preto que assobiava, dois cães sujos e magros. Por entre os
canteiros incultos crescia a erva daninha, e os troncos das árvores, molhados de luar, pareciam
curvar-se.
- Entramos no inferno?
- Vamos ao sabbat moderno.
Tínhamos chegado ao velho prédio, que emergia da sombra. O negro empurrou a porta e
todos três, misteriosamente, penetramos numa saleta quase escura, onde não havia ninguém.
Justino lavou as mãos, respirou forte e, abrindo uma outra porta, sussurrou:
- Entre.
Dei numa vasta sala cheia de gente. Candeeiros de querosene com refletores de folha
pregados às paredes pareciam uma fileira de olhos, de focos de locomotiva golpeando as trevas
numa pertinaz interrogação. A atmosfera, impregnada de cheiros maus de pó de arroz e de
suor, sufocava. Encostei-me ao portal indeciso. Remexia e gania entre aquelas quatro paredes o
mundo estercorário do Rio. Velhos viciados à procura de emoções novas, fufias histéricas e
ninfomaníacas, mulatas perdidas, a ralé da prostituição, tipos ambíguos de calças largas e
meneios de quadris, caras lívidas de rôdeurs das praças, homens desbriados, toda essa massa
heteróclita cacarejava impaciente para que começasse a orgia. Os velhos tinham olhares
cúpidos, melosos, os tipos dúbios tratavam-se entre si de comadres, com as faces pintadas, e a
um canto o empregado dos Correios, esticando o pescoço depenado de condor, fixava na
penumbra a presa futura. Não era uma religião; era um começo de saturnal.
Senti que me tocavam no braço. Voltei-me. Era um poeta muito vermelho, que cultivara
outrora, numa revista de arte, o satanismo literário. Desequilibrado, matóide, o Carolino estava
ali em parada íntima de perversão poética.
- Também tu? - fez apertando-me a mão entre as suas viscosas de suor. - Curioso, hein?
Mas palhaçada, filho, palhaçada. É a segunda a que eu assisto. Uma missa-negra de jornal de
Paris com ilustrações ao vivo... Imagina que nem há padres. O oficiante é o degenerado que
anda à noite pelas praças.
- E as hóstias?
- As hóstias, essas ao menos são autênticas, roubadas às igrejas. Dizem até... - esticouse, colocou a boca ao meu ouvido como quem vai fazer uma espantosa revelação: - dizem até
que há um sacristão na cidade a mercadejá-las. É para quem quer... hóstias a dez tostões. É
boa!
Mas que diferença, meu caro, da missa antiga, da verdadeira!
- Não se mata ninguém?
- É lá possível! E a polícia? Já não estamos no tempo de Gilles de Rais nem de
Montespan... Bom tempo esse!
Pousou os dedos no peito, revirou os olhos saudosos. Era como se tivesse tido relações
pessoais com o Gilles e a Montespan.
A turba entretanto continuava a piar. Todas as janelas fechadas faziam da sala um forno.
Carolino encostou-se também e deu-me informações curiosas. Estava vendo eu uma rapariga  loura, com uma fístula no queixo e óculos azuis? Era uma troteuse da praça Tiradentes. Certo
homem pálido, que corcovava abanando-se, era artista peladanista, outro gordo e flácido fazia
milagres e intitulava-se membro da Sociedade de Estudos Psíquicos. Havia de tudo... Uma
senhora, vestida de negro, passou por nós grave, como cansada.
- E esta?
- É a princesa... Uma mulher original, estranha, que já adorou o fogo...
- Mas você está fazendo romance. Isso é literatura.
- Tudo é literatura! A literatura é o mirífico agente do vício. Porque estou eu aqui? A
literatura, Huysmans, o cônego Doere do Là-Bas, os livros enervadores. Os que arranjaram
estas cenas, o rapaz dos Correios, o Justino, o Bode...
- O Bode?
É o nome satânico do sacerdote... tem o cérebro como um sanduíche de literatura.
- Mas o resto, estas quarenta pessoas que eu vejo, tenho a certeza de ver e que
encontrarei talvez amanhã nas ruas?
- Em ruas más... São depravados, pervertidos, doentes, endemoinhados! Satã, meu
amigo, Satã, que os padres arrancam dos corpos das mulheres no Rio de Janeiro, a varadas.
- É sempre o melhor meio.
- O único eficaz - mas que nos tira a ilusão e a fantasia... Confesse. É um gozo a descida
ao abismo da perdição como Deus do Mal, este banho de gosma em que, de irreais as cenas,
não as acreditam os nossos olhos, ao vê-las, nem os nossos ouvidos ouvindo-as. Começa a
cerimônia... Entremos. Só falta aqui o falecido coronel...
Abrira-se uma porta, a da casa de jantar, e a crápula entrava aos encontrões dando-se
beliscões, com o olhar guloso e devasso. Entramos também.
Como era razoável a desilusão de Carolino! A missa-negra a que eu assisti, era uma
paródia carnavalesca e sádica, uma mistura de várias missas com invenções pessoais do
sacerdote. Havia frases do ofício da Observância, trechos sacrílegos do abade Guibourg, a
missa de Vintras, esse doido formidável, aparatos copiados aos Ansanés da Síria e um
desmedido deboche, o deboche do teatro São Pedro em noite de carnaval, se à polícia não
contivesse o desejo e as portas se fechassem. Carolino tinha razão.
O erotismo ambicioso de outrora devia ser mais interessante. Guibourg aspergindo de
água benta o corpo nu da Montespan deitada nos evangelhos dos reis, os pombos queimados, a
paixão de Nossa Senhora lida com os pés dentro de água, o cibório cheio de sangue inocente
no centro das sensações, tinham um fim. A missa de Ezequiel, o ofício supremo em que, além
de Satã, aparecem Belzebu, Astarob, Asmodeu, Belial, Moloch e Baal-Phagor, era
religiosamente terrível. A que os meus olhos viam, não passava de fantasia de debochadas e
histéricas necessitando do rifle policial e do chicote.
A casa de jantar estava transformada numa capela. Ao fundo levantava-se o altar-mor,
ladeado de um pavão empalhado com a cauda aberta - o pavão simbólico do Vício Triunfal. Nos
quatro cantos do teto, morcegos, deitados em corações de papelão vermelho, pareciam
assustados. Panos pretos com cruzes de prata voltadas cobriam as janelas e as portas.
Do altar-mor, que tinha três degraus cobertos por um pelego encarnado, descia, abrindo
em forma de leque, um duplo renque de castiçais altos, sustentando tochas acesas de cera
vermelha. Era essa toda a luz da sala. O bando tomou posições. Alguns riam; outros, porém,
tinham as faces pálidas, olheirentas, dos apavorados. Nós, eu e o poeta, ficamos no fim. Um
silêncio caiu. Do alto, pregado a cruz tosca, uma escultura infame pretendia representar Cristo,
o doce Jesus! Era um boneco torpe, de bigodes retorcidos, totalmente excitado, que olhava os
fiéis com um olhar trocista e o beicinho revirado.
- É horrendo.
- Se estamos na casa do horrendo! Guarde a sua emoção. Tudo isso é religião. O mesmo
fazem com Iscariote no sábado de Aleluia os meninos católicos.
Guardei. Vinham aparecendo aos saltinhos, num andar de marrecos presos, quatro
sacristãos com as sotainas em cima da pele. Esses efebos diabólicos, de faces carminadas e
sorrizinhos equívocos, passeavam pela sala como ménagêres preocupadas com um jantar de
cerimônia, dando a última de mão à mesa. Depois surgiu um negrinho de batina amarela, com
os pés nus, e as unhas pintadas de ouro. Trazia os braseiros para o incenso e quando passava
pelos homens erguia devagar o balandrau cor de enxofre. A princesa, adoradora do fogo, olhou-  o com gula e ia talvez falar, quando apareceu o sacerdote acompanhado de um outro sacristão
exótico. À luz dos círios que estalidavam, nessa luz vacilante e agônica, o mulato era teatral.
Alto, grosso, com o bigode trincado, as olheiras papudas, os beiços sensuais pendentes, fez a
aparição de capa encarnada e báculo de prata, com os símbolos de Shiva potente.
- Esse homem é doido?
- Um sádico inteligente. Tem como prazer único o crime de um príncipe que há um ano
agitou a moral arquiduvidosa de Londres... Ainda não conversou com ele? Muito interessante.
Há tempos inventou a divina junção dos sexos num tipo único, o andrógino satânico. É
admirável...
- A literatura! - fiz.
- O Mal! retrucou o poeta cínico, e apontou o Dr. Justino.
O pobre médico encostado a uma das cruzes batia palmas clamando.
- Satanás! Satanás! Nosso Senhor! Acode!
O sacerdote virou-se. A cauda estrelada de um pavão cobria-lhe o peito da túnica.
Curvou-se, juntou as mãos, e a paródia da missa católica começou, em latim, mudando
apenas Deus pelo Diabo. Era tal qual, curvaturas, gestos, toques de campainha, resposta de
sacristãos, tudo. De repente, porém, o homem desceu os três degraus, Os sacristãos surgiram
com turíbulos enormes, e ele, despregando a casula surgiu inteiramente nu, com o cavanhaque
revidado, a mão na anca, cruel como o próprio Rebelde. As mulheres, os pequenos equívocos,
o ocultista arrancaram as roupas, rasgaram-se enquanto o seu dorso reluzente e suado curvavase diante dos incensos. Depois de novo, com uma voz do metal bradou:
- Senhor! Satã! Glória da terra! Tu que aclaras os pobres homens, Fonte de ouro,
misterioso Guarda das criptas e dos antros; Tu que moras na terra onde o ouro vive; Causa dos
pecados; Amparo da carne; Delírio único; Fim da vida; - deixa que te adoremos! Não te
exterminaram as sotainas baratas, não te perdeu o Outro, não se acabará nunca o teu poderoso
império, ó Lógica da Existência! Satanás, estás em toda a parte, és o Desejo, a Razão de Ser, o
Espasmo! Ouve-nos, aparece, impera! Não vês na cruz o larápio que roubou a tua lábia e o teu
saber?
- Deus! - murmurei.
- Guarde a sua emoção, meu amigo. É do rito. Eles dizem que Jesus foi a principio, de
Lúcifer.
- É preciso encarnar o mágico - continuava o homem - neste pedaço de pão; é preciso
magoá-lo, fazê-lo sofrer, mostrar-lhe que és único, impassível e admirável. Que seria da
humanidade se não fosse o teu Auxílio, ó Portador dos gozos, ó Desmascarador das
hipocrisias? Todo o mundo soluça o teu Nome, a Pérsia, a Caldeia, o Egito, a Grécia, a Roma
dos roubadores da tua Pompa. Olha pelo mundo a vitória, os filósofos, os sábios, os médicos, as
mulheres. Os filósofos desviam o amor do Outro, os sábios alugam a crença, os médicos
arrancam dos ventres a maternidade, fazem as assexuadas delirantes, esmagam as crianças,
as mulheres escorrem a lascívia e o ouro! Nós todos prostrados adoramos-te, diante do
impostor, do mentiroso, desse que aconselha a renunciar à Carne! Que venha o dinheiro, que
venha a Carne! que se esmague os seios das mulheres e se lhes crave o punhal da luxúria em
frente ao impostor... Jesus há de descer à hóstia; tu queres!
Deixou cair o braço. Na face dos erotômanos a loucura punha ritos de angústia.
O sacerdote espumava, e a fumaça dos incensários de tão espessa parecia envolver-lhe a
indecorosa nudez numa clamide de cinza, estrelada de círios.
- Ó Rei poderoso das satisfações, os que te acreditam, abandonam as cobardias da
vergonha, as pregas do pavor e a estupidez da resignação. Envia-nos Astaroh, dá-nos o amor,
faze-nos gozar o prazer, faze-nos.
Um palavrão silvou, sagrado como a Bíblia. Houve um complexo de urros e guinchos.
- Amém! - cacarejavam os pequenos.
- Tu que és o Vício Amplo, ajuda-nos a violar o Nazareno para a glória imensa.
Outro palavrão estalou. Metade do grupo não compreendia o galimatias blasfemo, mas as
frases indignas eram como varadas acendendo a lubricidade, e a gentalha então, como o gesto
lúbrico dos macacos, cuspinhava impropérios.
O sacerdote não descansou. Atirada a palavra, trepou os degraus, colocou uma mitra
imoral no crânio, e, estendendo entre os dedos uma hóstia branca de neve, encostou-se ao altar  vacilante.
- Que vai ele fazer?
- Vai ao sinistro banal...
Que Deus seria esse? Ia perguntar ao poeta, mas não tive tempo. Um dos sacristãos
trepara ao altar, com o cálice na mão. Como coroado pelos pés do Cristo, o pequeno com
tremores pelo corpo, tiques bruscos, garrões de nervos, o olhar embaciado sujeitava-se à
estripação do batismo da hóstia, e enquanto o braço do sacerdote num movimento cruel
sacudia-o, a sua voz ia dizendo:
- Que Satã o faça encarnar.
De repente o braço estacou. O pequeno tombara babando. Houve então a apoteose. Com
a hóstia poluída, o homem nu desceu gritando; os braseiros caíram por terra, os homens
ambíguos com gargalhadas infames rolavam; mulheres estrábicas trepavam pelo altar de quatro
pés, querendo comer as migalhas da hóstia úmida. A rapariga de óculos azuis com os cabelos
presos a um círio estendia o corpo convulsionado; o ocultista gordo gania, em torno do malandro
nu, o sacerdos; uma teoria de sátiros e fúrias hidrófobas mastigava enojada os pedaços de
hóstia que o rapaz de pescoço de condor cuspinhara. A fumaça dos círios sufocava, alguns
castiçais tinham caído.
- Hein? - fez o poeta, por pose. Mas tinha os olhos injetados e tremia.
Então, agarrei-o, passamos à sala em que os corpos redemoinhavam promiscuamente no
mais formidável dos deboches entre os círios tombados. Dois sinetas puxaram-no. Claudino
amparou-o no pedestal do pavão, o Vício Triunfal rolou. Demos na sala dos refletores,
desesperados. A sala parecia na sua solidão uma gare de crime deserta. Entramos na outra em
que Justino rolava num canapé sob a pressão de incubos suficientes e reais. O negro abriu meia
porta:
- Não querem a água maldita?
- Não.
- V. S. vai assustado. Não diga nada, meu senhor. Deus lá em cima é que lhes dá esse
castigo.
Deixei-o falar, deitei a correr como um doido, na noite enluarada. Ouro, prostituição,
infâmia, canalhice, sacrilégio, vergonha! Mas que é tudo isso diante da castidade imaculada dos
elementos? Dos altos céus imensos que as estrelas cravejam de glória, a lua derramava por
sobre a calma da noite um manto inconsútil de cristal e ouro, e a terra inteira, cheia de paz e
doçura, abria em perfume sob o sudário de luz, infinitamente casta...
E foi como se, arrancado ao inferno de um pesadelo lôbrego de nojo e perversão, eu
voltasse à realidade misericordiosa de bondade da vida.

OS EXORCISMOS

- "Houve um grande combate nos céus. Miguel e os anjos combatiam contra o dragão que
lutava com os seus. Estes, porém, não tiveram a vitória e desde então foi impossível reachar o
lugar nos céus. O dragão, a antiga serpente chamada diabo ou sedutor do universo, foi
precipitado com os maus anjos sobre a terra. E esse dragão tinha sete cabeças, dez cornos,
sete diademas e a sua cauda arrastou a terça parte das estrelas
Assim fala São João de Patimos. O dragão e as estrelas fazem o mundo diabólico,
inspiram o mal, arrastam a teoria furiosa das histéricas e mais do que em qualquer outra terra
fazem aqui as endemoninhadas. Pela classe baixa, nas ruas escusas, as possessas abundam.
De repente criaturas perfeitamente boas caem com ataques, escabujam, arquejam, cusparam
uma baba espessa, com os cabelos tesos e os olhos ardentes. Vêm os médicos chamam a isso
histeria, vêm os espíritas, dão outra explicação, mas as criaturas só tornam à vida natural
quando um sacerdote as exorcisma. Já vi na Gamboa uma mulher que ficava dois palmos acima
do solo, com os braços em cruz, gargolejando injúrias ao Criador; tenho a história de uma outra
que babava verde e passava horas e horas enrodilhada, com soluços secos, e atirava punhadas
aos crucifixos numa ânsia incrível. São sem conta os casos de possessas.
- E toda essa gente é exorcismada?
- Às vezes.
O amigo com quem eu falava era um médico católico.

O exorcismo pode ser feito por qualquer?
- Hoje não. Atualmente é preciso ser um homem destituído das vaidades do mundo, é
preciso ser velho e puro, dotado de uma força imperecível. O bispo faz tocar ao padre exorcista
o livro das fórmulas, dizendo: "Accipe et commenda memorae, et habem potestatem imponendi
manus super energumenos..." Aqui no Rio há exorcistas falsos, malandros exploradores, há os
jesuítas, alguns lazaristas e o superior da ordem dos Capuchos que têm licença do bispo.
Conhece frei Piazza? É uma excelente criatura, feita de bondade e de paz. Nunca recebe mal.
Para cada injúria tem um carinho e guarda como máxima a grande verdade de que um frade
vale por um exército. Que figuras! Ele pelo menos vale por um exército com a sua carícia e a
sua força. É um desses entes que não param, um militante. Anda, sai, indaga, conversa,
protege, ajuda, converte, exorcisma. Já o vi uma vez vaiado por alunas de uma escola e rapazes
grosseiros, à toa, sem razão de ser, apenas porque era frade. Frei Piazza, muito calmo,
agradecia com beijos a vaia e cada beijo seu no ar petrificava a boca de um dos impudentes
insultadores. É o nosso primeiro exorcista, o grande combatente dos Diabos... Vá interrogá-lo de
preferência a outro qualquer.
Mas há diabos?
- Um recrudescimento apenas. O catolicismo explica o inexplicável. Quem faz a
cosmolatria? Satanás! a necrolatria, o mal de Deus enfim? Satanás, sempre Satanás! Qual o
meio de acabar com o Diabo? o exorcismo.
O Rio de Janeiro é uma tenda de feiticeiros brancos e negros, de religiões de animais, de
pedras animadas, o rojar de um povo inteiro diante do amanhã,
Spectre toujours mas qué qui nous suit cote a cote
Et qu'on nomme Demam...
Às cenas da missa-negra, dos satanistas, dos magos, é preciso juntar a missa vermelha, e
os exorcismos.
- Mas nós estamos no século XX!
- Meu caro, o mundo não varia olhando o invisível. Há sempre de um lado os espíritos
bons, os anjos que se demonstram pela teurgia, e os espíritos maus, as larvas, os demônios,
isto é, de um lado as teofanias, de outro as fúrias. Ultimamente, porém, casos incríveis, lendas
antiqüíssimas deram para reaparecer. Os agentes do Diabo, as sereias, os faunos, os gigantes,
os tritões surgem de novo. O João catraeiro, ali do cais dos Mineiros, já viu passeando na água
uma dama de vermelho com homens de barbas verdes que riam e assobiavam... Porque
havemos de banir fatos? Eu, e dou-lhe como testemunha o Dr. Rafael Pinheiro e outras pessoas
conhecidas, já tive uma doente que frei Piazza pôs boa. A mulher delirava, tinha ataques
formidáveis, eu tratava-a segundo Charcot. Uma vez ela disse: eu tenho o diabo no corpo. Pois
vá ao Castelo! Foi e ficou boa. Era um médico que me dizia o assombro. Nesse mesmo dia subi
ao Castelo.
Pelas pedras do morro iam homens carregando baldes de água; mulherios estendiam
roupas na relva; embaixo, a cidade num vapor branco parecia uma miragem sob o chuveiro de
luz. Em torno do convento saltavam cabras. Pendurei-me de um condão à porta carcomida,
como um viajante medieval. Muito tempo depois apareceu um frade italiano de barba negra.
- O Superior?
Abriu a porta, fez-me entrar para uma sala paupérrima, onde havia um altar com imagens
grosseiras e paramentos de missa. Pelas paredes, ordens do arcebispo, tabelas dos dias de
jejum. Através das outras portas abertas viam-se salas abobadadas, onde as alpercatas
sacerdotais punham um brando rumor de intimidade.
Dois minutos depois, frei Piazza aparecia. Muito jovial e muito simples. Eu queria uma
informação; ele dava-a. Sempre que Deus lhe fazia a graça de poder ser útil, ficava contente. A
impressão desse homem, com os flocos de neve de sua barba escorrendo de uma face cheia de
vitalidade, é a de um ser definitivamente certo de seu fim, a quem as injúrias, as intrigas, os
elogios ou os males não atingem. Viu-me um curioso mundano, impôs-me a sua crença com
delicadeza.
- O senhor é jornalista! ah! os jornalistas!... Se eles dissessem apenas o que vêm, seriam
os melhores homens do universo... Mas quase nunca dizem. O príncipe de Crayemberg tinha
um temor muito justo. Olhe o que ainda há pouco fizeram com a princesa russa.

Estávamos sentados num duro banco, diante de Deus e dos santos, como em poltronas
confortáveis. Ele tinha entre as barbas um sorriso de sutil ironia.
- Superior - confessei eu -, tenho nestes últimos tempos visto de perto os males do Diabo.
Disseram-me que frei Piazza exorcisma.
- Sim, filho, há alguns anos. Todas as sextas-feiras das 4 da manhã às 4 da tarde,
trabalho sem descanso. Só no ano de 1903 exorcismei mais de 300 demoníacas. Esses
exorcismos são feitos de preferência na igreja, mas quando me chamam, vou também à casa
dos pacientes. Satã mais do que nunca ameaça Deus. Esse macaco do Divino, como diz o
padre Goud, arrasta as criaturas para as profundas do inferno, que a ciência considera um
centro de fogo no meio da terra, autor dos vulcões e do abalo das montanhas... Ah! meu filho, é
uma vida bem dura!
- O exorcismo é público?
- Nem sempre. O diabo pela boca dos possessos conta a vida de todos, injuria os
presentes. Não é conveniente. Ficam alguns amigos que sejam sérios e piedosos.
- E como se praticam os exorcismos?
- Segundo o Rituale.
- Contam tanta coisa...
- É bem simples. Leio-lhe a cerimônia.
Foi-se com o seu passo apressado, voltou trazendo os óculos e um livro de marroquim
vermelho com letras de ouro.
- Está escrito que o homem não viverá só de pão, mas das palavras de Deus, disse São
Paulo.
Sentamo-nos. Frei Piazza abriu o Rituale, escrito em vermelho e negro...
O ofício de exorcismo começa com as litanias normais e o salmo LII. Depois, o sacerdote
dirige-se ao Energúmeno.
- Quem quer que sejas, ordeno-te, espírito imundo, como aos teus companheiros, que
obedeçam a este servidor de Deus, em nome dos mistérios da Encarnação, da Paixão, da
Ressurreição e da Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo, em nome do Espírito Santo, que
digas o teu nome e indiques por um sinal qualquer o dia e a hora em que entraste neste corpo,
ordeno-te que me obedeças, a mim, ministro indigno de Deus, e proíbo-te que ofendas esta
criatura assim como aos presentes.
Depois o exorcista procede à leitura dos Evangelhos, segundo São João, São Marcos,
São Lucas, evoca o Cristo, faz o sinais-da-cruz no possesso, envolve-lhe o pescoço num
pedaço de estola e com a mão direita na cabeça do rebelde, diz:
- Eu te exorcismo, imundo espírito, fantasma legião, em nome de N. S. J. C., ordeno-te
que abandones esta criatura feita por Deus com terra. Deus, o mesmo que do alto dos Céus te
precipitou nas profundezas, é quem te ordena. Aquele que manda nos mares, nos ventos e na
terra. Ouve e treme de pavor, Satã, inimigo da fé, inimigo do gênero humano, mensageiro da
morte, ladrão da vida, opressor da justiça, raiz de todos os males, sedutor dos homens, traidor
de todas as nações, origem da avareza, inventor da inveja, causa das discórdias e das dores.
Por que ficas? por que resiste? Temes o que te imolou por Isaac vendido por José, morto por
um anho e que acabou por triunfar do Inferno?
E fazendo sinais-da-cruz na cabeça, no ventre, no peito e no coração do paciente, o
sacerdote, com os paramentos roxos, continua:
- Abjuro-te, serpente antiga, em nome dos julgamentos dos vivos e em nome dos mortos,
em nome do teu Criador e do Criador dos mundos, Daquele que tem o poder de te enviar ao
Inferno, - de sair imediatamente com o teu furor desse servidor de N. S., refugiado no seio da
Igreja. Esconjuro-te de novo, não em nome da minha fraqueza, mas em nome do Espírito Santo.
Sai desse servidor de Deus, criado à sua imagem; obedece, não a mim, mas ao ministro de
Cristo. A força Daquele que te submeteu à sua cruz, ordena-te. Teme o braço do que conduz as
almas à luz, após ter vencido os gemidos do inferno. Que o corpo dessa criatura te cause medo,
que a imagem de Deus te apavore. Não resistas. Apressa-te, porque Cristo deseja habitá-lo.
Deus, a majestade do Senhor, o Espírito Santo, o sacramento da cruz, a fé dos santos apóstolos
Pedro e Paulo e dos outros santos, o sangue dos mártires, a intervenção dos santos e das
santas, os mistérios da fé cristã, ordenam-te que obedeças. Sai, violador da lei, sai, sedutor
cheio de manhas e de enganos, inimigo da virtude, perseguidor dos inocentes. Por que resistes?
Por que temerariamente recusas?
A imprecação continua formidável até o hiato suave de uma nova oração. Depois o padre
lê o último e mais tremendo exorcismo.
- Abjuro-te, omnis immundissime, deerissime, fantasma, enviado de Satã, em nome de J.
C., o Nazareno, que foi, conduzido ao Deserto depois do Batismo de São João e que te venceu
na tua habitação. Cessa de obsedar esta criatura, que Deus, para sua honra, tirou do limo da
terra. Treme, não da sua fragilidade humana, mas da imagem do Todo Poderoso. Cede a Deus
que te precipitou no abismo a ti e a tua infâmia, na pessoa de Faraó, por intermédio do seu
servidor Moisés; cede a Deus que te condenou no traidor Iscariote.
A imprecação torna-se de uma solenidade colossal. O sacerdote ergue o livro sobre o
desventurado possuído:
- Os vermes esperam-te a ti e aos teus. Um fogo devorador está preparado por toda a
eternidade, porque tu és a causa do homicídio maldito, o organizador do incesto, o organizador
dos sacrilégios, o instigador das piores ações, o que ensina a heresia, o inventor de tudo quanto
é obsceno. Sai, ímpio, sai, celerado, sai com as tuas mentiras, porque Deus quis fazer seu
templo deste corpo. Obedece ao Deus diante do qual se ajoelham os homens: cede o lugar a N.
S. J. C. que derramou o seu sangue sagrado pela humanidade; cede ao Espírito Santo, que
pelos seus bem-aventurados apóstolos venceu-te no mago Simon, que condenou as tuas
infâmias em Ananias e Safira, que te curvou em Herodes, que te cegou no mago Elima. Sai
agora, sai, sedutor. O deserto é a tua morada, a serpente a tua habitação. Eis que aparece
Deus, o Senhor; o fogo arderá os inimigos se não fugirem. Se pudeste enganar um homem, não
poderás embair Deus. Escorraçar-te-á O que tem tudo em seu poder, far-te-á sair. O que
preparou a geena eterna. Aquele de cuja boca sai o gládio agudo, que virá julgar os vivos, os
mortos e o século pelo fogo.
E, enquanto as endemoninhadas, flexuosas, praguejando, batendo com o crânio,
expectoram Satanás, os pater, os salmos envolvem-na. Quando ela cai prostrada, salva, o
triunfador grita:
- Eis-te refeita santa. Deixa de pecar para que te não aconteçam outros desastres. Vai
para casa e anuncia aos teus as grandes coisas que Deus fez por ti e toda a sua misericórdia..
Eu tinha acabado de ler o latim iluminado. Frei Piazza, muito doce, murmurava:
- Há outras formas de exorcismo que invocam os Santos, a Virgem...
- Mas, Superior, há mesmo muitos casos aqui?
- Não imagina! Principalmente nas classes baixas, sem limpeza. O diabo ama a imundície.
É quase incrível. Esses fenômenos, que a espiritolatria tem por novos, são nossos conhecidos,
há muito tempo explicados. Há criaturas que se dobram em dois, que se tornam sábias de
repente, gritam em línguas desconhecidas, têm uma força enorme. Ainda há dias tive dois
casos. Não acredita?
- Se eu conheço o caso da Gamboa em que um sacerdote não se pode aproximar da
possessa, de tal modo ela coleava!
- A mim aconteceu fato idêntico. Era uma virgem. Cuspia no Crucificado, com os braços
em cruz, dobrava em dois, dizia a vida dos outros e de repente começou a arregalar os olhos...
Ficaram como duas brasas os olhos, as pálpebras a dilatarem-se, dilatarem-se. Eu estava-as
vendo arrebentar, mas tão horrível era o quadro que não tive coragem... Cada palavra do Ritual
arregalava-lhe mais o olhar pavoroso. É um capitulo infindável a peregrinação pelos bairros
pobres. Casos estranhos! Não conhece a Cabocla, uma mulher que comanda 250 espíritos?
Esta criatura, onde está, os móveis caem, há rumores, quebram-se os vasos. Também não
pára. Ela diz que já nasceu com os espíritos e não os quer tirar. Ainda outro dia encontrei-a em
Catumbi...
Eu já conhecia esse ser satânico e inédito, a Cabocla, já a vira escabujando enquanto os
móveis caíam e as portas fechadas abriam-se com estridor. Era verdade.
- Mas há amuletos preservativos do Diabo? - perguntei tremendo.
- Basta a cruz de São Bento. As iniciais da medalha dizem ao alto: Ipse Venena Bibus; do
lado esquerdo; sunt mal, quae libas; do lado direito: vade retro, Satanás; em baixo: non suads
mihi vana. Ao centro a frase: non draco sit mihi dux - da esquerda para a direita, em forma
vertical, de cima para baixo: crux sancta mihi lux, e nos quatro cantos: crux, sanctis, patris,
benedicti...
Estava dando uma hora. Através do convento os relógios repetiam interminavelmente a  hora solitária. Erguemo-nos, e ainda algum tempo ouvi embevecido a pureza da crença.
Na sexta-feira, porém, de madrugada, fui outra vez ao Castelo certificar-me. Vinha
nascendo o dia. No éter puro os sinos desfiavam as notas claras e era como se os sons fossem
acordando pela montanha os ecos da vida. Cabras surgiam das sombras, mastigando a relva
úmida, e no alto uma estrela ardia a morrer. Vi então subindo a encosta, desde essa hora, a
teoria das beatas, homens amparando mulheres de faces maceradas, mantilhas pretas
escondendo rostos dolorosos, corpos dobrados em dois tremendo, o bando das possessas
modernas galgando o cimo do monte para arrancar a alma a Satanás, o delírio diabólico, a fé, a
angústia, o mal... E na Cor suave da aurora, aquele convento simples, donde saía a harmonia
dos sinos, surgiu-me como o bálsamo do Bem, o gládio do Senhor solitário e único em meio da
Descrença Universal - último auxilio de Deus às almas do Diabo...
Quando descia, outros crentes, outras demoníacas iam subindo na luz do sol para a
Lourdes espiritual que os sinos proclamavam. E, recordando a visão tenebrosa desse turbilhão
angustioso que escabuja nas casas espíritas e nas igrejas sob o domínio de Satanás, ergui os
olhos ao céu, e louvei a glória de Deus no seu imperecível fulgor...

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