segunda-feira, 18 de março de 2013

João do Rio











As Religiões no Rio 
João do Rio

As Religiões no Rio - João do Rio - Editora Nova Aguilar - Coleção Biblioteca Manancial n.º 47 -
1976


ÍNDICE

No Mundo dos Feitiços
A Igreja Positivista
Os Maronistas
Os Fisiólatras
O Movimento Evangélico
O Satanismo
As Sacerdotisas do Futuro
A Nova Jerusalém
O Culto do Mar
O Espiritismo entre os Sinceros
Os Exploradores
As Sinagogas


AS RELIGIÕES NO RIO
Cecy est un livre de bonne foy.
MONTAIGNE
A
MANUEL JORGE DE OLIVEIRA ROCHA

meu amigo.

A religião? Um misterioso sentimento, misto de terror e de esperança, a simbolização
lúgubre ou alegre de um poder que não temos e almejamos ter, o desconhecido avassalador, o
equívoco, o medo, a perversidade.
O Rio, como todas as cidades nestes tempos de irreverência, tem em cada rua um templo e
em cada homem uma crença diversa.
Ao ler os grandes diários, imagina a gente que está num pais essencialmente católico, onde
alguns matemáticos são positivistas. Entretanto, a cidade pulula de religiões. Basta parar em
qualquer esquina, interrogar. A diversidade dos cultos espantar-vos-á. São swendeborgeanos,
pagãos literários, fisiólatras, defensores de dogmas exóticos, autores de reformas da Vida,
reveladores do Futuro, amantes do Diabo, bebedores de sangue, descendentes da rainha de
Sabá, judeus, cismáticos, espíritas, babalaôs de Lagos, mulheres que respeitam o oceano,
todos os cultos, todas as crenças, todas as forças do Susto. Quem através da calma do
semblante lhes adivinhará as tragédias da alma? Quem no seu andar tranqüilo de homens sem
paixões irá descobrir os reveladores de ritos novos, os mágicos, os nevrópatas, os delirantes, os
possuídos de Satanás, os mistagogos da Morte, do Mar e do Arco-Íris? Quem poderá perceber,
ao conversar com estas criaturas, a luta fratricida por causa da interpretação da Bíblia, a luta
que faz mil religiões à espera de Jesus, cuja reaparição está marcada para qualquer destes
dias, e à espera do Anti-Cristo, que talvez ande por aí? Quem imaginará cavalheiros distintos
em intimidade com as almas desencarnadas, quem desvendará a conversa com os anjos nas
chombergas fétidas?
Eles vão por aí, papas, profetas, crentes e reveladores, orgulhosos cada um do seu culto, o
único que é a Verdade. Falai-lhes boamente, sem a tenção de agredi-los, e eles se confessarão
- por que só uma coisa é impossível ao homem: enganar o seu semelhante, na fé.
Foi o que fiz na reportagem a que a Gazeta de Notícias emprestou uma tão larga  hospitalidade e um tão grande ruído; foi este o meu esforço: levantar um pouco o mistério das crenças nesta cidade
Não é um trabalho completo. Longe disso. Cada uma dessas religiões daria farta messe
para um volume de revelações. Eu apenas entrevi a bondade, o mal e o bizarro dos cultos, mas
tão convencido e com tal desejo de ser exato que bem pode servir de epígrafe a este livro a
frase de Montaigne:

Cecy est un livre de bonne foy.
João do Rio


NO MUNDO DOS FEITIÇOS
OS FEITICEIROS

Antônio é como aqueles adolescentes africanos de que fala o escritor inglês. Os
adolescentes sabiam dos deuses católicos e dos seus próprios deuses, mas só veneravam o
uísque e o schilling. Antônio conhece muito bem N. S.ª das Dores, está familiarizado com os
orixálas da África, mas só respeita o papel-moeda e o vinho do Porto. Graças a esses dois
poderosos agentes, gozei da intimidade de Antônio, negro inteligente e vivaz; graças a Antônio,
conheci as casas das ruas de São Diogo, Barão de S. Felix, Hospício, Núncio e da América,
onde se realizam os candomblés e vivem os pais-de-santo. E rendi graças a Deus, porque não
há decerto, em toda a cidade, meio tão interessante.
Vai V.S. admirar muita coisa! - dizia Antônio a sorrir; e dizia a verdade.
Da grande quantidade de escravos africanos vindos para o Rio no tempo do Brasil colônia e
do Brasil monarquia, restam uns mil negros. São todos das pequenas nações do interior da
África, pertencem ao igesá, oié, ebá, aboum, haussá, itaqua, ou se consideram filhos dos
ibouam, ixáu dos gêge e dos cambindas. Alguns ricos mandam a descendência brasileira à
África para estudar a religião, outros deixam como dote aos filhos cruzados daqui os mistérios e
as feitiçarias. Todos, porém, falam entre si um idioma comum: - o eubá.
Antônio, que estudou em Lagos, dizia:
- O eubá para os africanos é como o inglês para os povos civilizados. Quem fala o eubá
pode atravessar a África e viver entre os pretos do Rio. Só os cambindas ignoram o eubá, mas
esses ignoram até a própria língua, que é muito difícil. Quando os cambindas falam, misturam
todas as línguas... Agora os orixás e os alufás só falam o eubá.
- Orixás, alufás? - fiz eu, admirado.
- São duas religiões inteiramente diversas. Vai ver.
Com efeito. Os negros africanos dividem-se em duas grandes crenças: os orixás e os
alufás.
Os orixás, em maior número, são os mais complicados e os mais animistas. Litólatras e
fitólatras, têm um enorme arsenal de santos, confundem os santos católicos com os seus
santos, e vivem a vida dupla, encontrando em cada pedra, em cada casco de tartaruga, em cada
erva, uma alma e um espírito. Essa espécie de politeísmo bárbaro tem divindades que se
manifestam e divindades invisíveis. Os negros guardam a idéia de um Deus absoluto como o
Deus católico: Orixa-alúm. A lista dos santos é infindável. Há o orixalá, que é o mais velho,
Axum, a mãe dágua doce, Ie-man- já, a sereia, Exu, o diabo, que anda sempre detrás da porta,
Sapanam, o Santíssimo Sacramento dos católicos, o Irocô, cuja aparição se faz na árvore
sagrada da gameleira, o Gunocô, tremendo e grande, o Ogum, S. Jorge ou o Deus da guerra, a
Dadá, a Orainha, que são invisíveis, e muitos outros, como o santo do trovão e o santo das
ervas. A juntar a essa coleção complicada, têm os negros ainda os espíritos maus e os heledás
ou anjos da guarda.
É natural que para corresponder à hierarquia celeste seja necessária uma hierarquia
eclesiástica. As criaturas vivem em poder do invisível e só quem tem estudos e preparo pode
saber o que os santos querem. Há por isso grande quantidade de autoridades religiosas. Às
vezes encontramos nas ruas negros retintos que mastigam sem cessar. São babalaôs,
matemáticos geniais, sabedores dos segredos santos e do futuro da gente; são babás que
atiram o endilogum; são babaloxás, pais-de-santos veneráveis. Nos lanhos da cara puseram o
pó da salvação e na boca têm sempre o obi, noz de cola, boa para o estômago e asseguradora
das pragas
Antônio, que conversava dos progressos da magia na África, disse-me um dia que era
como Renan e Shakespeare: vivia na dúvida. Isso não o impedia de acreditar nas pragas e no
trabalhão que os santos africanos dão.
- V. s. não imagina! Santo tem a festa anual, aparece de repente à pessoa em que se quer
meter e esta é obrigada logo a fazer festa; santo comparece ao juramento das Iauô e passa
fora, do Carnaval à Semana Santa; e logo quer mais festa... Só descansa mesmo de fevereiro a
abril.
- Estão veraneando.
- No carnaval os negros fazem ebó.
- Que vem a ser ebó?
- Ebó é despacho. Os santos vão todos para o campo e ficam lá descansando.
- Talvez estejam em Petrópolis.
- Não. Santo deixa a cidade pelo mato, está mesmo entre as ervas.
- Mas quais são os cargos religiosos?
- Há os babalaôs, os açoba, os aboré, grau máximo, as mães-pequenas, os ogan, as
agibonam...
A lista é como a dos santos, muito comprida, e cada um desses personagens representa
papel distinto nos sacrifícios, nos candomblés e nas feitiçarias. Antônio mostra-me os mais
notáveis, os pais-de-santo: Oluou, Eruosaim, Alamijo, Adé-Oié, os babalaôs Emídio, Oloô-teté,
que significa treme-treme, e um bando de feiticeiros: Torquato requipá ou fogo pára-chuva,
Obitaiô, Vagô, Apotijá, Veridiana, Crioula Capitão, Rosenda, Nosuanan, a célebre Chica de
Vavá, que um político economista protege...
- A Chica tem proteção política?
- Ora se tem! Mas que pensa o senhor? Há homens importantes que devem quantias
avultadas aos alufás e babalaôs que são grau 32 da Maçonaria.
Dessa gente, poucos lêem. Outrora ainda havia sábios que destrinçavam o livro sagrado e
sabiam porque Exu é mau - tudo direitinho e claro como água. Hoje a aprendizagem é feita de
ouvido. O africano egoísta pai-de-santo, ensina ao aboré, as iauô quando lhes entrega a
navalha, de modo que não só a arte perde muitas das suas fases curiosas como as histórias são
adulteradas e esquecidas.
- Também agora não é preciso saber o Saó Hauin. Negro só olhando e sabendo o nome da
pessoa pode fazer mal, diz Antônio.
Os orixás são em geral polígamos. Nessas casas das ruas centrais de uma grande cidade,
há homens que vivem rodeados de mulheres, e cada noite, como nos sertões da África, o leito
do babaloxás é ocupado por uma das esposas. Não há ciúmes, a mais velha anuncia quem a
deve substituir, e todas trabalham para a tranqüilidade do pai. Oloô-Teté, um velho que tem
noventa anos no mínimo, ainda conserva a companheira nas delícias do himeneu, e os mais
sacudidos transformam as filhas-de-santo em huris de serralhos.
Os alulás têm um rito diverso. São maometanos com um fundo de misticismo. Quase todos
dão para estudar a religião, e os próprios malandros que lhes usurpam o título sabem mais que
os orixás.
Logo depois do suma ou batismo e da circuncisão ou kola, os alufás habilitam-se à leitura
do Alcorão. A sua obrigação é o kissium, a prece. Rezam ao tomar banho, lavando a ponta dos
dedos, os pés e o nariz, rezam de manhã, rezam ao pôr-do-sol. Eu os vi, retintos, com a cara
reluzente entre as barbas brancas, fazendo o aluma gariba, quando o crescente lunar aparecia
no céu. Para essas preces, vestem o abadá, uma túnica branca de mangas perdidas, enterram
na cabeça um filá vermelho, donde pende uma faixa branca, e, à noite, o kissium continua,
sentados eles em pele de carneiro ou de tigre.
- Só os alufás ricos sentam-se em peles de tigre, diz-nos Antônio.
Essas criaturas contam à noite o rosário ou tessubá, têm o preceito de não comer carne de
porco, escrevem as orações numas taboas, as atô, com tinta feita de arroz queimado, e jejuam
como os judeus quarenta dias a fio, só tomando refeições de madrugada e ao pôr-do-sol.
Gente de cerimonial, depois do assumy, não há festa mais importante como a do ramadan,
em que trocam o saká ou presentes mútuos. Tanto a sua administração religiosa como a
judiciária estão por inteiro independentes da terra em que vivem.

Há em várias tribos vigários gerais ou ladamos, obedecendo ao lemano, o bispo, e a parte
judiciária está a cargo dos alikaly, Juizes, sagabamo, imediatos de juizes, e assivajiú, mestre de
cerimônias.
Para ser alufá é preciso grande estudo, e esses pretos que se fingem sérios, que se casam
com gravidade, não deixam também de fazer amuré com três e quatro mulheres.
- Quando o jovem alufá termina o seu exame, os outros dançam o opasuma e conduzem o
iniciado a cavalo pelas ruas, para significar o triunfo.
- Mas essas passeatas são impossíveis aqui, brado eu.
- Não são. As cerimônias realizam-se sempre nas estações dos subúrbios, em lugares
afastados, e os alufás, vestem as suas roupas brancas e o seu gorro vermelho.
Naturalmente Antônio fez-me conhecer os alufás:
Alikali; o lemano atual, um preto de pernas tortas, morador à rua Barão de S. Félix, que
incute respeito e terror; o Chico Mina, cuja filha estuda violino, Alufapão, Ojó, Abacajebú, Ginjá,
Manê, brasileiro de nascimento, e outros muitos.
Os alufás não gostam da gente de santo a que chamam auauadó-chum; a gente de santo
despreza os bichos que não comem porco, tratando-os de malés. Mas acham-se todos
relacionados pela língua, com costumes exteriores mais ou menos idênticos e vivendo da
feitiçaria. Os orixás fazem sacrifícios, afogam os santos em sangue, dão-lhes comidas, enfeites
e azeite-de-dendê.
Os alufás, superiores, apesar da proibição da crença, usam dos aligenum, espíritos
diabólicos chamados para o bem e o mal, num livro de sortes marcado com tinta vermelha e
alguns, os maiores, como Alikali, fazem até idams ou as grandes mágicas, em que a uma
palavra cabalística a chuva deixa de cair e obis aparecem em pratos vazios.
Antes de estudar os feitiços, as práticas por que passam as iauô nas camarinhas e a
maneira dos cultos, quis ter uma impressão vaga das casas e dos homens.
Antônio levou-me primeiro à residência de um feiticeiro alufá. Pelas mesas, livros com
escrituras complicadas, ervas, coelhos, esteiras, um calamo de bambu finíssimo.
Da porta o guia gritou:
- Salamaleco.
Ninguém respondeu.
- Salamaleco!
- Maneco Lassalama!
No canto da sala, sentado numa pele de carneiro, um preto desfiava o rosário, com os olhos
fixos no alto.
- Não é possível falar agora. Ele está rezando e não quer conversar. Saímos, e logo na rua
encontramos o Xico Mina. Este veste, como qualquer de nós, ternos claros e usa suíças
cortadas rentes. Já o conhecia de o ver nos cafés concorridos, conversando com alguns
deputados. Quando nos viu, passou rápido.
- Está com medo de perguntas. Chico gosta de fingir.
Entretanto, no trajeto que fizemos do Largo da Carioca à praça da Aclamação,
encontramos, a fora um esverdeado discípulo de Alikali, Omancheo, como eles dizem, duas
mães-de-santo, um velho babalaô e dois babaloxás.
Nós íamos à casa do velho matemático Oloô-Teté.
As casas dos minas conservam a sua aparência de outrora, mas estão cheias de negros
baianos e de mulatos. São quase sempre rótulas lobregas, onde vivem com o personagem
principal cinco, seis e mais pessoas. Nas salas, móveis quebrados e sujos, esteirinhas, bancos;
por cima das mesas, terrinas, pucarinhos de água, chapéus de palha, ervas, pastas de oleado
onde se guarda o opelé; nas paredes, atabaques, vestuários esquisitos, vidros; e no quintal,
quase sempre jabotis, galinhas pretas, galos e cabritos.
Há na atmosfera um cheiro carregado de azeite-de-dendê, pimenta-da-costa e catinga. Os
pretos falam da falta de trabalho, fumando grossos cigarros de palha. Não fosse a credulidade,
a vida ser-lhes-ia difícil, porque em cada um dos seus gestos revela-se uma lombeira secular.
Alguns velhos passam a vida sentados, a dormitar.
- Está pensando! - dizem os outros.

De repente, os pobres velhos ingênuos acordam, com um sonho mais forte nessa confusa
existência de pedras animadas e ervas com espírito.
- Xangô diz que eu tenho de fazer sacrifício!
Xangô, o deus do trovão, ordenou no sono, e o opelê, feito de cascas de tartaruga e
batizado com sangue, cai na mesa enodoada para dizer com que sacrifício se contenta Xangô.
Outros, os mais malandros, passam a existência deitados no sofá. As filhas-de-santo,
prostitutas algumas, concorrem para lhes descansar a existência, a gente que as vai procurar
dá-lhes o supérfluo. A preocupação destes é saber mais coisas, os feitiços desconhecidos, e
quando entra o que sabe todos os mistérios, ajoelham assustados e beijam-lhe a mão,
soluçando:
- Diz como se faz a cantiga e eu te dou todo o meu dinheiro!
À tarde, chegam as mulheres, e os que por acaso trabalham em alguma pedreira. Os
feiticeiros conversam de casos, criticam-se uns aos outros, falam com intimidade das figuras
mais salientes, do país, do imperador, de que quase todos têm o retrato, de Cotegipe, do barão
de Mamanguape, dos presidentes da República.
As mulheres ouvem mastigando obi e cantando melopéas sinistramente doces. Essas
melopéas são quase sempre as preces, as evocações, e repetem sem modalidade, por tempo
indeterminado, a mesma frase.
Só pelos candomblés ou sessões de grande feitiçaria, em que os babalaôs estão atentos e
os pais-de-santo trabalham dia e noite nas camarinhas ou fazendo evocações diante dos
fogareiros com o tessubá na mão, é que a vida dessa gente deixa a sua calma amolecida de
acassá com azeite-de-dendê.
Quando entramos na casa de Oloô-Teté, o matemático macróbio e sensual, uma velha
mina, que cantava sonambulicamente, parou de repente.
- Pode continuar.
Ela disse qualquer coisa de incompreensível.
- Está perguntando se o senhor lhe dá dois tostões, ensina-nos Antônio.
- Não há dúvida.
A preta escancara a boca, e, batendo as mãos, põe-se a cantar:
Baba ounlô, ó xocotám, o ilélê.
- Que vem a ser isso?
- É o final das festas, quando o santo vai embora. Quer dizer: papai já foi, já fez, já acabou;
vai embora!
Eu olhava a réstia estreita do quintal onde dormiam jabotis.
- O jaboti é um animal sagrado?
- Não, diz-nos o sábio Antônio. Cada santo gosta do seu animal. Xangô, por exemplo, come
jaboti, galo e carneiro. Abaluaié, pai de varíola, só gosta de cabrito. Os pais-de-santo são
obrigados pela sua qualidade a fazer criação de bichos para vender e tê-los sempre à
disposição quando precisam de sacrifício. O jaboti é apenas um bicho que dá felicidade. O
sacrifício é simples. Lava-se bem, às vezes até com champanha, a pedra que tem o santo e
põe-se dentro da terrina. O sangue do animal escorre; algumas das partes são levadas para
onde o santo diz e o resto a roda come.
- Mas há sacrifícios maiores para fazer mal às pessoas?
- Há! para esses até se matam bois.
- Feitiço pega sempre, sentencia o ilustre Oloô-Tetê, com a sua prática venerável. Não há
corpo-fechado. Só o que tem é que uns custam mais. Feitiço para pegar em preto é um instante,
para mulato já custa, e então para cair em cima de branco a gente sua até não poder mais. Mas
pega sempre. Por isso preto usa sempre o assiqui, a cobertura, o breve, e não deixa de mastigar
obi, noz de cola preservativa.
Para mim, homem amável, presentes alguns companheiros seus, Oloô-Tetê tirou o opelé
que há muitos anos foi batizado e prognosticou o meu futuro.
Este futuro vai ser interessante. Segundo as cascas de tartaruga que se voltavam sempre
aos pares, serei felicíssimo, ascendendo com a rapidez dos automóveis a escada de Jacó das
posições felizes. É verdade que um inimigozinho malandro pretende perder-me. Eu, porém, o
esmagarei, viajando sempre com cargos elevados e sendo admirado.

Abracei respeitoso o matemático que resolvera o quadrado da hipotenusa do desconhecido.
- Põe dinheiro aqui - fez ele.
Dei-lhe as notas. Com as mãos trêmulas, o sábio a apalpou longamente.
- Pega agora nesta pedra e nesta concha. Pede o que tiveres vontade à concha, dizendo
sim, e à pedra dizendo não.
Assim fiz. O opelé caiu de novo no encerado. A concha estava na mão direita de Antônio, a
pedra na esquerda, e Oloô tremia falando ao santo, com os negros dedos trêmulos no ar.
- Abra a mão direita! ordenou.
Era a concha.
- Se acontecer, ossumcê dá presente a Oloô?
- Mas decerto.
Ele correu a consultar o opelé. Depois sorriu.
- Dá, sim, santo diz que dá. - E receitou-me os preservativos com que eu serei invulnerável.
Também eu sorria. Pobre velho malandro e ingênuo! Eu perguntara apenas,
modestamente, à concha do futuro se seria imperador da China... Enquanto isso, a negra da
cantiga entoava outra mais alegre, com grande gestos e risos.
O loô-ré, xa-la-ré
Camurá-ridé
O loô-ré, xa-la-ré
Camurá-ridé
- E esta, o que quer dizer?
- É uma cantiga de Orixalá. Significa: O homem do dinheiro está aí. Vamos erguê-lo...
Apertei-lhe a mão jubiloso e reconhecido. Na alusão da ode selvagem a lisonja vivia o
encanto da sua vida eterna...

AS IAUÔ

A recordação de um fato triste - a morte de uma rapariga que fora à Bahia fazer-santo -
deu-me ânimo e curiosidade para estudar um dos mais bárbaros e inexplicáveis costumes dos
fetiches do Rio.
Fazer-santo é a renda direta dos babaloxás, mas ser filha-de-santo é sacrificar a liberdade,
escravizar-se, sofrer, delirar.
Os transeuntes honestos, que passeiam na rua com indiferença, não imaginam sequer as
cenas de Salpetrière africana passadas por trás das rótulas sujas.
As iauô abundam nesta Babel da crença, cruzam-se com a gente diariamente, sorriem aos
soldados ébrios nos prostíbulos baratos, mercadejam doces nas praças, às portas dos
estabelecimentos comerciais, fornecem ao Hospício a sua quota de loucura, propagam a
histeria entre as senhoras honestas e as cocottes, exploram e são exploradas, vivem da
crendice e alimentam o caftismo inconsciente. As iauô, são as demoníacas e as grandes
farsistas da raça preta, as obsedadas e as delirantes. A história de cada uma delas, quando não
é uma sinistra pantomima de álcool e mancebia, é um tecido de fatos cruéis, anormais, inéditos,
feitos de invisível, de sangue e de morte. Nas iauô está a base do culto africano. Todas elas
usam sinais exteriores do santo, as vestimentas simbólicas, os rosários e os colares de contas
com as cores preferidas da divindade a que pertencem; todas elas estão ligadas ao rito
selvagem por mistérios que as obrigam a gastar a vida em festejos, a sentir o santo e a respeitar
o pai-de-santo.
Fazer-santo é colocar-se sobre o patrocínio de um fetiche qualquer, é ser batizado por ele,
e por espontânea vontade dele. As negras, insensíveis a quase todas as delicadezas que
produzem ataques na haute-gomme, são, entretanto, de uma impressionabilidade mórbida por
tudo quanto é abusão. Da convivência com os maiores nesse horizonte de chumbo, de
atmosfera de feitiçarias e pavores, nasce-lhes a necessidade iniludível de fazer também o santo;
e não é possível demovê-las, umas porque a miragem da felicidade as cega, outras porque já  estão votadas à loucura e ao alcoolismo. Entre as tribos do interior da África, há o sacrifício do
agamum, em que se esmagam vivas as crianças de seis meses. Ao Moloch das vesânias a raça
preta sacrifica aqui uma quantidade assustadora de homens e de mulheres.
Antônio, que me mostrara a maior parte das casas-de-santo, disse-me um dia:
- Vou levá-lo hoje a ver o 16.º dia de uma iauô.
Para que uma mulher saiba a vinda do santo, basta encontrar na rua um fetiche qualquer,
pedra, pedaço de ferro ou concha do mar. De tal maneira estão sugestionadas, que vão logo
aos babalaôs indagar do futuro. Os babalaôs, a troco de dinheiro, jogam o edilogum, os búzios,
e servem-se também por aproximação dos signos do zodíaco.
- O mês do Capricórnio - diz Antônio - compreende todos os animais parecidos, a cabra, o
carneiro, o cabrito, e segundo o cálculo do dia e o animal preferido pelo santo, os matemáticos
descobrem quem é.
Quando já sabe o santo, babalaô atira a sorte no obelê para perguntar se é de dever fazê-
lo. A natureza mesmo do culto, a necessidade de conservar as cerimônias e a avidez de ganho
da própria indolência fazem o sábio obter uma resposta afirmativa.
Algumas criaturas paupérrimas batem então nas faces e pedem:
- Eu quero ter o santo assentado!
É mais fácil. Os pais-de-santo dão-lhe ervas, uma pedra bem lavada, em que está o santo,
um rosário de contas que se usa no pescoço depois de purificado o corpo por um banho.
Nessas ocasiões o vadio invisível contenta-se com o ebó, despacho, algumas comedorias com
azeite-de-dendê, ervas e sangue, deixadas na encruzilhada dos caminhos.
Quase sempre, porém, as vitimas sujeitam-se, e não é raro, mesmo quando são pobres os
pais, a aceitarem o trabalho com a condição de as vender em leilão ou serem servidos por elas
durante longo tempo. Como as despesas são grandes, as futuras iauô levam meses fazendo
economias, poupando, sacrificando-se. E de obrigação levar comidas, presentes, dinheiro ao
pai-de-santo para a sua estada no ylê ache-ó-ylê-orixá, estada que regula de 12 a 30 dias.
- Isto acontece só para as iauô dos orixás, - diz Antônio.
- Há outras?
- Há as dos negros cambindas. Também essa gente é ordinária, copia os processos dos
outros e está de tal forma ignorante que até as cantigas das suas festas têm pedaços em
português.
- Mas entre os cambindas tudo é diferente?
- Mais ou menos. Olhe por exemplo os santos.
Orixalá é Ganga-Zumba, Obaluaci, Cangira-Mungongo, Exu, Cubango, Orixá-oco,
Pombagira, Oxum, a mãe d'água, Sinhá Renga, Sapanam, Cargamela. E não é só aos santos
dos orixás que os cambindas mudam o nome, é também aos santos das igrejas. Assim S.
Benedito é chamado Lingongo, S. Antônio, Verequete, N. Senhora das Dores, Sinhá Samba.
Para os cambindas serve para santo qualquer pedra, os paralelepípedos, as lascas das
pedreiras e esses pretos sem-vergonha adoram a flor do girassol que simboliza a lua...
Eu estava atônito. Positivamente Antônio achava muito inferiores os cambindas.
- As iauô?
- As filhas-de-santo macumbas ou cambindas chegam a ter uma porção de santos de cada
vez, manifestando-se na sua cabeça. Sabe V.S. o que cantam eles quando a yauô está com a
crise?

Maria Mucangué
Lava roupa de sinhá,
Lava camisa de chita,
Não é dela, é de yayá.
- Quer ouvir outra?


Bumba, bumba, ó calunga,
Tanto quebra cadeira como quebra sofá
Bumba, bumba, ó calunga.

Houve uma pausa e Antônio concluiu:
- Por negro cambinda é que se compreende que africano foi escravo de branco.
Cambinda é burro e sem-vergonha!
Disse e voltou à narrativa da iniciação das iauô.
Antes de entrar para camarinha, a mulher, predisposta pela fixidez da atenção a todas as
sugestões, presta juramento de guardar o segredo do que viu, toma um banho purificador e à
meia-noite começa a cerimônia. A iauô senta-se numa cadeira vestida de branco com o ojá
apertando a cintura. Todos em derredor entoam a primeira cantiga a Exu.

Echu tiriri, lô-nam bará ô bebê.
Tiriri lo-nam Echu tiriri.

O babaloxá pergunta ao santo para, onde deve ir o cabelo que vai cortar à futura filha, e,
depois de ardente meditação, indica com aparato a ordem divina. Essas descobertas são
fatalmente as mesmas no centro de uma cidade populosa como a nossa. Se o santo é a mãe
d'agua doce, Oxum, o cabelo vai para a Tijuca, a Fábrica das Chitas; se é Ié-man-ja fica na praia
do Russel, em Santa Luzia; se é outro santo qualquer, basta um trecho de praça em que as ruas
se cruzem.
As rezas começam então; o pai-de-santo molha a cabeça da iauô com uma composição de
ervas e com afiadíssima navalha faz-lhe uma coroa, enquanto a roda canta triste.
Orixalá otô ô yauô!
Essa parte do cabelo é guardada eternamente e a iauô não deve saber nunca onde a
guardam, porque lhe acontece desgraça. Em seguida, o lúgubre barbeiro raspa-lhe
circularmente o crânio, e quando a carapinha cai no alguidar, a operada já perdeu a razão.
Babaloxá, lava-lhe ainda a cabeça com o sangue dos animais esfaqueados pelos ogans, e
as iauô antigas levam-na a mudar a roupa, enquanto se preparam com ervas os cabelos do
alguidar.
Daí a momentos a iniciada aparece com outros fatos, pega no alguidar e sai acompanhada
das outras, que a amparam e cantam baixo o ofertório ao santo. Em chegando ao lugar
indicado, a hipnotizada deixa a vaso, volta e é recebida pelo pai, que entorna em frente à porta
um copo d'água.
A nova iauô vai então descansar, enquanto os outros rezam na camarinha em frente ao
estado-maior.
- O estado-maior? - indago eu, assustado com o exército misterioso. O estado-maior é a
coleção de terrinas e sopeiras colocadas numa espécie de prateleiras de bazar. Nas sopeiras
estão todos os santos pequenos e grandes. Há desde as terrinas de granito às de porcelanas
com frisos de ouro, rodeando armações de ferro, onde se guarda o Ogum, o São Jorge da
África.
No dia seguinte à cerimônia, a iauô lava-se e vai à presença do pai para ver se tem
espíritos contrários.
Se os espíritos existem, o pai poderoso afasta a influência nefasta por meio de ebós e
ogunguns. A iauô é obrigada a não falar a ninguém: quando deseja alguma coisa, bate palmas e
só a ajuda nesses dias a mãe-pequena ou Iaque-que-rê. As danças para preparo de santo
realizam-se nos 1.º, 3.º, 7
.º,12.º, e no 16.º dia o santo revela-se.
- Mas que adianta isso às iauô?
- Nada. O pai-de-santo domina-as. O erô ou segredo que lhe dá, pode retirá-lo quando lhe
apraz; o poder de as transformar e fazer-lhes mal está em virar o santo sempre que tem
vontade.
- E quando essas criaturas morrem?

- Faz-se a obrigação raspando um pouco de cabelo para saber se o santo também vai, e o
babaloxá procura um colega para lhe tirar a mão do finado.
As cerimônias das iauô renovam-se de resto de seis em seis meses, de ano em ano, até à
morte. São elas que em grande parte sustentam o culto.
Quando a iauô não tem dinheiro, ou o pai vende-a em leilão ou a guarda como serva. Desta
convivência é que algumas chegam a ser mães-de-santo, para o que basta dar-lhe o babaloxá
uma navalha.
- E há muita mãe-de-santo?
- Umas cinqüenta, contando com as falsas. Só agora lembro-me de várias: a Josefa, a Calu
Boneca, a Henriqueta da Praia, a Maria Marota, que vende à porta do Glacier, a Maria do
Bonfim, a Martinha da rua do Regente, a Zebinda, a Chica de Vavá, a Aminam pé-de-boi, a
Maria Luiza, que é também sedutora de senhoras honestas, a Flora Coco Podre, a Dudu do
Sacramento, a Bitaiô, que está agora guiando seis ou oito filhas, a Assiata.
Esta é de força. Não tem navalha, finge de mãe-de-santo e trabalha com três ogans falsos
- João Ratão, um moleque chamado Macário e certo cabra pernóstico, o Germano. A Assiata
mora na rua da Alfândega, 304. Ainda outro dia houve lá um escândalo dos diabos, porque a
Assiata meteu na festa de Iemanjá algumas iauô feitas por ela. Os pais-de-santo protestaram, a
negra danou, e teve que pagar a multa marcada pelo santo. Essa é uma das feiticeiras de
embromação.
Nesse mesmo dia Antônio veio buscar-me à tarde.
- A casa a que vai V.S. é de um grande feiticeiro; verá se não há fatos verdadeiros.
Quando chegamos, a sala estava enfeitada. Em derredor sentavam-se muitos negros e
negras mastigando olobó, ou cola amargosa, com as roupas lavadas e as faces reluzentes. A
um canto, os músicos, fisionomias estranhas, faziam soar, com sacolejos compassados, o
xequerêe, os atabaques e ubatás, com movimentos de braços desvairadamente regulares. Não
se respirava bem.
A cachaça, circulando sem cessar, ensangüentava os olhos amarelos dos assistentes.
- As vezes tudo é mentira, à custa de cachaça e fingimento - diz Antônio. Quando o santo
não vem, o pai fica desmoralizado. Mas aqui é de verdade...
Olhei o célebre pai-de-santo, cujas filhas são sem conta. Estava sentado à porta da
camarinha, mas levantou-se logo, e a negra iniciada entrou, de camisola branca, com um leque
de metal chocalhante. Fula, com uma extraordinária fadiga nos membros lassos, os seus olhos
brilhavam satânicos sob o capacete de pinturas bizarras com que lhe tinham brochado o crânio.
Diante do pai estirou-se a fio comprido, bateu com as faces no assoalho, ajoelhou e beijou-lhe a
mão. Babaloxá fez um gesto de bênção, e ela foi, rojou-se de novo diante de outras pessoas. O
som do agogó arrastou no ar os primeiros batuques e os arranhados do xequeré. A negra
ergueu-se e, estendendo as mãos para um e para outro lado, começou a traçar passos, sorrindo
idiotamente. Só então notei que tinha na cabeça uma esquisita espécie de cone.
- É o ado-chú, que faz vir o santo - explica Antônio. - É feito com sangue e ervas. Se o adochú cai, santo não vem.
A negra, parecia aos poucos animar-se, sacudindo o leque de metal chocalhante.
Em derredor, a música acompanhava as cantigas, que repetiam indefinidamente a mesma
frase.
As dança dessas cerimônias é mais ou menos precipitada, mas sem os pulos satânicos dos
Cafres e a vertigem diabólica dos negros da Luisiania. É simples, contínua e insistente,
horrendamente insistente. Os passos constantes são o alujá, em roda da casa, dando com as
mãos para a direita e para a esquerda, e o jêquedê, em que ao compasso dos atabaques, com
os pés juntos, os corpos se quebram aos poucos em remexidos sinistros. Não sei se o
enervante som da música destilando aos poucos desespero, se a cachaça, se o exercício, o fato
é que, em pouco, a iauô parecia reanimar-se, perder a fadiga numa raiva de louca. De cada
xequexé-xequexé que a mão de um negro sacudia no ar, vinha um espicaçamento de urtiga,
das bocas cusparinhentas dos assistentes escorria a alucinação. Aos poucos, outros negros,
não podendo mais, saltaram também na dança, e foi então entre as vozes, as palmas e os
instrumentos que repetiam no mesmo compasso o mesmo som, uma teoria de cara bêbedas
cabriolando precedidas de uma cabeça colorida que esgareiava lugubremente. A loucura
propagou-se. No meio do pandemônio vejo surgir o babaloxá com um desses vasos furados em
que se assam castanhas, cheio de brasas.

 - Que vai ele fazer?
- Cala, cala... é o pai, é o pai grande - balbucia Antônio.
As cantigas redobram com um furor que não se apressa. São como uma ânsia de
desesperado essas cantigas, como a agonia de um mesmo gesto arrancando dos olhos a
mesma lâmina de faca, são atrozes! O babaloxá coloca o cangirão ardente na cabeça da iauô,
que não cessa de dançar delirante, insensível, e, alteando o braço com um gesto dominador e
um sorriso que lhe prende o beiço aos ouvidos, entorna nas brasas fumegantes um alguidar
cheio de azeite-de-dendê.
Ouve-se o chiar do azeite nas chamas, a negra, bem no meio da sala, sacoleja-se num
jequedé lancinante, e pela sua cara suada, do cangirão ardente, e que não lhe queima a pele,
escorrem fios amarelos de azeite...
Ie-man-já atô cuaô.
continuava a turba.
- Não queimou, não queimou, ele é grande - fez Antônio.
Eu abrira os olhos para ver, para sentir bem o mistério da inaudita selvageria. Havia uma
hora, a negra dançava sem parar; pela face o dendê quente escorria benéfico aos santos. De
repente, porém ela estacou, caiu de joelhos, deu um grande grito.
- Emim oiá bonmim'. - Bradou.
- É o nome dela, o santo disse pela sua boca o nome que vai ter.
A sala rebentou num delírio infernal. O babaloxá gritava, com os olhos arregalados,
palavras guturais.
- Que diz ele?
- Que é grande, que vejam como é grande!
Criaturas rojavam-se aos pés do pai, beijando-lhes os dedos, negras uivavam, com as
mãos empoladas de bater palmas; dois ou três pretos aos sons dos xequerês sacudiam-se em
danças com o santo, e a iauô revirava os olhos, idiota, como se acordasse de uma grande e
estranha moléstia.
- Que vai ela fazer agora, Deus de misericórdia! - murmurei saindo.
- Vai trabalhar, pagar no fim de três meses a sua obrigação, ochu meta, dar dinheiro a paide-santo, ganhar dinheiro...
- Sempre o dinheiro! - fiz eu olhando a velha casaria.
Antônio parou e disse:
- Não se engana V.S.
E limpando o suor do rosto, o negro concluiu com esta reflexão profunda:
- Neste mundo, nem os espíritos fazem qualquer coisa sem dinheiro e sem sacrifício!
Fomos pela rua estreita com a visão sinistra da pobre mártir aos pulos, dessa cabeça
pintada, entre os chocalhos e os atabaques, que dançava e gritava horrendamente...

O FEITIÇO

Nós dependemos do Feitiço.
Não é um paradoxo, é a verdade de uma observação longa e dolorosa. Há no Rio magos
estranhos que conhecem a alquimia e os filtros encantados, como nas mágicas de teatro, há
espíritos que incomodam as almas para fazer os maridos incorrigíveis voltarem ao tálamo
conjugal, há bruxas que abalam o invisível só pelo prazer de ligar dois corpos apaixonados, mas
nenhum desses homens, nenhuma dessas horrendas mulheres tem para este povo o
indiscutível valor do Feitiço, do misterioso preparado dos negros.
É provável que muita gente não acredite nem nas bruxas, nem nos magos, mas não há
ninguém cuja vida tivesse decorrido no Rio sem uma entrada nas casas sujas onde se enrosca
a indolência malandra dos negros e das negras. É todo um problema de hereditariedade e
psicologia essa atração mórbida. Os nossos ascendentes acreditaram no arsenal complicado da  magia da idade média, na pompa de uma ciência que levava à forca e às fogueiras sábios
estranhos, derramando a loucura pelos campos; os nossos avós, portugueses de boa fibra,
tremeram diante dos encantamentos e amuletos com que se presenteavam os reis entre
diamantes e esmeraldas. Nós continuamos fetiches no fundo, como dizia o filósofo, mas
rojando de medo diante do Feitiço africano, do Feitiço importado com os escravos, e indo buscar
trêmulos a sorte nos antros, onde gorilas manhosos e uma súcia de pretas cínicas ou histéricas
desencavam o futuro entre cágados estrangulados e penas de papagaio!
Vivi três meses no meio dos feiticeiros, cuja vida se finge desconhecer, mas que se
conhece na alucinação de uma dor ou da ambição, e julgo que seria mais interessante como
patologia social estudar, de preferência, aos mercadores da paspalhice, os que lá vão em busca
de consolo.
Vivemos na dependência do Feitiço, dessa caterva de negros e negras, de babaloxás e
iauô, somos nós que lhe asseguramos a existência, com o carinho de um negociante por uma
amante atriz. O Feitiço é o nosso vício, o nosso gozo, a degeneração. Exige, damos-lhes;
explora, deixamo-nos explorar, e, seja ele maitre-chanteur, assassino, larápio, fica sempre
impune e forte pela vida que lhe empresta o nosso dinheiro.
Os feiticeiros formigam no Rio, espalhados por toda a cidade, do cais à Estrada de Santa
Cruz.
Os pretos, alufás ou orixás, degeneram o maometismo e o catolicismo no pavor dos
aligenum, espíritos maus, e do exu, o diabo, e a lista dos que praticam para o público não acaba
mais. Conheci só num dia a Isabel, a Leonor, a Maria do Castro, o Tintino, da rua Frei Caneca; o
Miguel Pequeno, um negro que parece os anões de D. Juan de Byron; o Antônio, mulato
conhecedor do idioma africano; Obitaiô, da rua Bom Jardim; o Juca Aboré, o Alamijo, o Abede,
um certo Maurício, ogan de outro feiticeiro - o Brilhante, pai-macumba dos santos cabindas; o
Rodolfo, o Virgílio, a Dudu do Sacramento, que mora também na rua do Bom Jardim; o Higino e
o Breves, dois famosos tipos de Niterói, cuja crônica é sinistra; o Oto Ali, Ogan-Didi, jogador da
rua da Conceição; Armando Ginja, Abubaca Caolho, Egidio Aboré, Horácio, Oiabumin, filha e
mãe-de-santo atual da casa de Abedé; Ieusimin, Torquato Arequipá, Cipriano, Rosendo, a Justa
de Obaluaei, Apotijá, mina famoso pelas suas malandragens, que mora na rua do Hospício, 322
e finge de feiticeiro falando mal do Brasil; a Assiata, outra exploradora, a Maria Luiza, sedutora
reconhecida, e até um empregado dos Telégrafos, o famoso pai Deolindo...
Toda essa gente vive bem, à farta, joga no bicho como Oloô-Teté, deixa dinheiro quando
morre, às vezes fortunas superiores a cem contos, e achincalha o nome de pessoas eminentes
da nossa sociedade, entre conselhos às meretrizes e goles de parati. As pessoas eminentes
não deixam, entretanto, de ir ouvi-los às baiucas infectas, porque os feiticeiros que podem dar
riqueza, palácios e eternidade, que mudam a distância, com uma simples mistura de sangue e
de ervas, a existência humana, moram em casinholas sórdidas, de onde emana um
nauseabundo cheiro.
Para obter o segredo do feitiço, fui a essas casas, estive nas salas sujas, vendo pelas
paredes os elefantes, as flechas, os arcos pintados, tropeçando em montes de ervas e lagartos
secos, pegando nas terrinas sagradas e nos obélês, cheios de suor.
- V. S., se deseja saber quais são os principais feitiços, é preciso acostumar-se antes com
os santos, dizia-me o africano.
Acostumei-me. São inumeráveis. As velhas que lhes discutem o preço em conversa, até
confundem as histórias. Em pouco tempo estava relacionado com Exu, o diabo, a que se
sacrifica no começo das funçanatas, Obaluaiê, o santo da varíola, Ogum, o deus da guerra,
Oxóocí, Eíulé, Oloro-quê, Obalufan, Orixá-agô, Exu-maré, Orixá-ogrinha Aíra, Orominha, Ogodô,
Oganju, Baru, Orixalá, Bainha, Dadá, Percuã, Coricotó, Doú, Alabá, Ari e as divindades
beiçudas, esposas dos santos - Aquará, Oxum-gimoun, Aíá-có, a mãe da noite, Inhansam, Obiam, esposa de Orixá-lá; Orainha, Ogango, Jená, mulher de Elôquê; Io-máo-já, a dona de
Orixáocô; Oxum de Xangô e até Obá, que, príncipe neste mundo, é no éter hetairia do
formidável santo Ogodô.
Os fetiches contaram-me a história de Orixá-alum, o maior dos santos que aparece raras
vezes só para mostrar que não é de brincadeiras, e eu assisti às cerimônias do culto, em que
quase sempre predomina a farsa pueril e sinistra. Diante dos meus olhos de civilizado,
passaram negros vestidos de Xangô, com calça de cor, saiote encarnado enfeitado de búzios e
lantejoulas, avental, babadouro e gorro; e esses negros dançavam com Oxum, várias negras
fantasiadas, de ventarolas de metal na mão esquerda e espadinha de pau na direita. Concorri   para o sacrifício de Obaluaiê, o santo da varíola, um negro de bigode preto com a roupa de
Polichinelo e uma touca branca orlada de urtigas. O santo agitava uma vassourinha, o seu
xaxará, e nós todos em derredor do babaloxá víamos morrer sem auxílio de faca, apenas por
estrangulamento, uma bicharada que faria inveja ao Jardim Zoológico.
Os africanos porém continuavam a guardar o mistério da preparação.
- Vamos lá, dizia eu, camarário, como é que faz para matar uni cidadão qualquer?
Eles riam, voltavam o rosto com uns gestos quase femininos.
- Sei lá!
Outros porém tagarelavam:
- V. S. não acredita? É que ainda não viu nada. Aqui está quem fez um deputado! O...
Os nomes conhecidos surgiam, tumultuavam, empregos na polícia, na Câmara, relações no
Senado, interferências em desaguisados de famílias notáveis.
- Mas como se faz isso?
- Então o senhor pensa que a gente diz assim o seu meio de vida?
E imediatamente aquele com quem eu falava, descompunha o vizinho mais próximo -
porque, membros de uma maçonaria de defesa geral, de que é chefe o Ojó da rua dos
Andradas, os pretos odeiam-se intimamente, formam partidos de feiticeiros africanos contra
feiticeiros brasileiros, e empregam todos os meios imagináveis para afundar os mais
conhecidos.
Acabei julgando os babaloxás sábios na ciência da feitiçaria como o Papa João XXII e não
via negra mina na rua sem recordar logo o bizarro saber das feiticeiras de d'Annunzio e do Sr.
Sardou. A lisonja, porém, e o dinheiro, a moeda real de todas as maquinações dessa ópera
pregada aos incautos, fizeram-me sabedor dos mais complicados feitiços.
Há feitiços de todos os matizes, feitiços lúgubres, poéticos, risonhos, sinistros. O feiticeiro
joga com o Amor, a Vida, o Dinheiro e a Morte, como os malabaristas dos circos com objetos de
pesos diversos. Todos entretanto são de uma ignorância absoluta e afetam intimidades
superiores, colocando-se logo na alta política, no clero e na magistratura. Eu fui saber, aterrado,
de uma conspiração política com os feiticeiros, nada mais nada menos que a morte de um
passado presidente da República. A principio achei impossível, mas os meus informantes
citavam com simplicidade nomes que estiveram publicamente implicados em conspirações,
homens a quem tiro o meu chapéu e aperto a mão. Era impossível a dúvida.
- O presidente está bem com os santos, disse-me o feiticeiro, mas bastava vê-lo à janela do
palácio para que dois meses depois ele morresse.
- Como?!
- E difícil dizer. Os trabalhos dessa espécie fazem-se na roça, com orações e grandes
matanças. Precisa a gente passar noites e noites a fio diante do fogareiro, com o tessubá na
mão, a rezar. Depois matam-se os animais, às vezes um boi que representa a pessoa e é logo
enterrado. Garanto-lhe que dias depois o espírito vem dizer ao feiticeiro a doença da pessoa.
- Mas por que não matou?
- Porque os caiporas não me quiseram dar sessenta contos.
- Mas se você tivesse recebido esse dinheiro e um amigo do governo desse mais?
- O feitiço virava. A balança pesa tudo e pesa também dinheiro. Se Deus tivesse permitido a
essa hora, os somíticos estariam mortos.
Esse é o feitiço maior, o envoutement solene e caro. Há outros, porém, mais em conta.
Para matar um cavalheiro qualquer, basta torrar-lhe o nome, dá-lo com algum milho aos
pombos e soltá-los numa encruzilhada. Os pombos levam a morte... É poético. Para ulcerar as
pernas do inimigo um punhado de terra do cemitério é suficiente. Esse misterioso serviço
chama-se etu, e os babaloxás resolvem todo o seu método depois de conversar com os iffá,
uma coleção de 12 pedras. Quando os iffá estão teimosos, sacrifica-se um cabrito metendo as
pedras na boca do bicho com alfavaca de cobra.
Os homens são em geral volúveis. Há o meio de os reter per eternum sujeitos à mesma
paixão, o effifá, uma forquilha de pau preparada com besouros, algodão, linhas e ervas, sendo
que durante a operação não se deve deixar de dizer o ojó, oração. Se eu amanhã desejar a
desunião de um casal, enrolo o nome da pessoa com pimenta-da-costa, malagueta e linha
preta, deito isso ao fogo com sangue, e o casal dissolve-se; se resolver transformar Catão, o  honesto, no mais desbriado gatuno, arranjo todo esse negócio apenas com um bom tira, um rato
e algumas ervas! E maravilhoso.
Há também feitiços porcos, o mantucá, por exemplo, preparado com excremento de vários
animais e coisas que a decência nós salva de dizer; e feitiços cômicos como o terrível
xuxuguruxu... Esse faz-se com um espinho de Santo Antônio besuntado de ovo e enterra-se à
porta do inimigo, batendo três vezes e dizendo:
- Xuxuguruxu io le bará....
Para ô homem ser absolutamente fatal, D. Juan, Rotschild, Nicolau II e Morny, recolhi com
carinho uma receita infalível; É mastigar orobó quando pragueja, trazer alguns tiras ou breves
escritos em árabe na cinta, usar do ori para o feitiço não pegar, ter aléni do xorá, defesa própria,
o essiqui, cobertura e o irocó, defumação das roupas, num fogareiro cm que se queima azeitede-dendê, cabeças de bichos e ervas, visitar os babaloxás e jogar de vez em quando o até ou a
praga. Se apesar de tudo isso a amante desse homem fugir, há um supremo recurso: espera-se
a hora do meio-dia e crava-se um punhal detrás da porta.
Mas o que não sabem os que sustentam os feiticeiros, é que a base, o fundo de toda a sua
ciência é o Livro de S. Cipriano. Os maiores alufás, os mais complicados pais-de-santo, têm
escondida entre os tiras e a bicharada uma edição nada fantástica do S. Cipriano. Enquanto
criaturas chorosas esperam os quebrantos e as misturadas fatais os negros soletram o S.
Cipriano, à luz dos candeeiros...
O feitiço compõe-se apenas de ervas arrancadas ao campo depois de lá deixar dinheiro
para o saci, de sangue, de orações, de galos, cabritos, cágados, azeite-de-dendê e do livro
idiota. É o desmoronamento de um sonho!
Os feiticeiros, porém, pedem retratos, exigem dos clientes coisas de uma depravação sem
nome para agir depois fazendo o egum, ou evocação dos espíritos, o maior mistério e a maior
pândega dos pretos; e quase todos roubam com descaro, dando em troco de dinheiro sardinhas
com pó-de-mico, cebolas com quatro pregos espetados, cabeças de pombo em salmoura para
fortalecer o amor, uma infinita série de extravagâncias. Os trabalhos são tratados como nos
consultórios médicos: a simples consulta de seis a dez mil réis, a morte de homem segundo a
sua importância social e o recebimento da importância por partes. Quando é doença, paga-se
no ato - porque os babaloxás são médicos, e curam com cachaça, urubus, penas de papagaio,
sangue e ervas.
A policia visita essas casas como consultante. Soube nesses antros que um antigo
delegado estava amarrado a uma paixão, graças aos prodígios de um galo preto. A polícia não
sabe pois que alguns desses covis ficam defronte de casas suspeitas, que há um tecido de
patifarias inconscientes ligando-as. Mas não é possível a uma segurança transitória acabar com
um grande vício como o Feitiço. Se um inspetor vasculhar amanhã os jabotis e as figas de uma
das baiúcas, à tarde, na delegacia os pedidos choverão...
Eu vi senhoras de alta posição saltando, às escondidas, de carros de praça, como nos
folhetins de romances, para correr, tapando a cara com véus espessos, a essas casas; eu vi
sessões em que mãos enluvadas tiravam das carteiras ricas notas e notas aos gritos dos negros
malcriados que bradavam.
- Bota dinheiro aqui!
Tive em mãos, com susto e pesar, fios longos de cabelos de senhoras que eu respeitava e
continuarei a respeitar nas festas e nos bailes, como as deusas do Conforto e da Honestidade.
Um babaloxá da costa da Guiné guardou-me dois dias às suas ordens para acompanhá-lo aos
lugares onde havia serviço, e eu o vi entrar misteriosamente em casas de Botafogo e da Tijuca,
onde, durante o inverno, há recepções e conversationes às 5 da tarde como em Paris e nos
palácios da Itália. Alguns pretos, bebendo comigo, informavam-me que tudo era embromação
para viver, e, noutro dia, tílburis paravam à porta, cavalheiros saltavam, pelo corredor estreito
desfilava um resumo da nossa sociedade, desde os homens de posição às prostitutas
derrancadas, com escala pelas criadas particulares. De uma vez mostraram-me o retrato de
uma menina que eu julgo honesta.
- Mas para que isso?
- Ela quer casar com este.
Era a fotografia de um advogado.
- E vocês?
- Como não quer dar mais dinheiro, o servicinho está parado. A pequena já deu trezentos e  cinqüenta.
Tremi romanticamente por aquela ingenuidade que se perdia nos poços do crime à procura
do Amor...
Mas esse caso é comum. Encontrei papelinhos escritos em cursivo inglês, puro Coraçãode-Jesus, cartões-bilhetes, pedaços de seda para misteres que a moralidade não pode
desvendar. Eles diziam os nomes com reticências, sorrindo, e eu acabei humilhado,
envergonhado, como se me tivessem insultado.
- A curiosidade tem limites, disse a Antônio que desaparecera havia dias para levar aos
subúrbios umas negras. Se eu dissesse metade do que vi, com as provas que tenho!...
Continuar é descer o mesmo abismo vendo a mesma cidade misteriosamente rojar-se diante do
Feitiço... Basta!
- V. S. não passou dos primeiros quadros da revista. É preciso ver as loucuras que o Feitiço
faz, as beberagens que matam, os homicídios nas camarinhas que nunca a polícia soube; é
preciso chegar à apoteose. Venha...
E Antônio arrastou-me pela rua, do General Gomes Carneiro.

A CASA DAS ALMAS

Os negros "cambindas" do Rio guardam com terror a história de um branco que lhes
apareceu certa vez em pleno sertão africano. Quando o rei deu por ele, que por ali vinha calmo,
com as suas barbas de sol, precipitou-se mais a tribo em atitude feroz. O branco tirou da cinta
um pequeno feitiço de metal e prostrou morto, golfando sangue, o babaláo.
- Exu! Exu! ganiu a tribo, recuando de chofre.
- Quem és tu, santo que eu não conheço? perguntou trêmulo o poderoso rei.
- Sou o que pode tudo, bradou o branco. Vê.
Estendeu a mão de novo e matou outros negros.
- Só te deixarei em paz se me mostrares todos os teus feitiços.
Sua Majestade, apavorada, levou-o à tenda real e durante o dia e durante a noite, sem
parar, lhe deu tudo quanto sabia.
- Perdôo-te, disse o branco. Adeus! Levo para o mistério a rainha.
Aconchegou o feitiço, que parecia egum, o deus da guerra, no seio da preferida, deixou-a
cair, e partiu devagar pela estrada a fora...
Não precisei dos meios violentos do Caramuru da África, para saber do mais terrível
mistério da religião dos minas: - o egum ou evocação das almas. Naquela mesma noite em que
encontrara Antônio, o negro serviçal levou-me a uma casa nas imediações da praia de Santa
Luzia.
- Em tudo é preciso mistério, dizia ele. V. S. vai à casa do babaloxá, finge acreditar e depois
é convidado para uma cerimônia na casa das almas. Poderá então ver o segredo da pantomima.
Quem descobre o segredo do egum, morre. Eu me arrisco a morrer.
A sua voz era trêmula.
- Tens medo?
- Não, mas se morrer amanhã, todos os feiticeiros dirão que foi o feitiço. Do egum depende
toda a traficância. O negro parou. Não imagina! Abubáca Caolho, que mora na rua do Resende,
é um dos tais. Quando há uma morte, vai logo dizer que foi quem a fez. Se fôssemos acreditar
nas suas mentiras, Abubáca tinha mais mortes no costado que cabelos na cabeça. V. S. já o viu.
É um negro que usa gravata do lado e pontas - as roupas velhas dos outros... Apotijá é outro.
- Mas há desse gênero de morte, Antônio? indaguei eu acendendo o cigarro com um gesto
shakespereano.
- Ora se há! Vou provar quando quiser. De morte misteriosa lembro a Maria Rosa Duarte,
sogra do mama Pão Baltazar, alufá muito amigo de um político conhecido; o Salvador Tapa, a
Esperança Laninia, Larê-quê, Fantuchê, o Jorge da rua do Estácio, Ougu-olusaim... Todos
morreram por ter descoberto o egum. Na Bahia, então, esses assassinatos são comuns. Hei de
lembrar sempre o velho feiticeiro Aguidi, coitado! Era dos que sabem. Um dia, farto de viver,
descobriu a traficância e logo depois morria no incêndio do Tabão, com os braços cruzados,
impassível e a sorrir. Aguidi na minha língua significa: - o que quer morrer... Ele quis.

Pela praia de Santa Luzia o luar escorria silenciosamente, e de leve o vento, sacudindo as
folhas das árvores em melancólico sussurro, entristecia Antônio.
- Ah! meu senhor. Não é só por causa do egum que negro mata. Quando as iauô não
andam direito, quando não fingem bem, quase nunca escapam de morrer. Há vários processos
de morte, a morte lenta, com beberagens e feitiços diretos, a morte na camarinha por
sufocação... Muitos negros apertam uma veia que a gente tem no pescoço e dentro de um
minuto qualquer pessoa está morta. Outros dependuram as criaturas e elas ficam bracejando no
ar com os olhos arregalados.
A Morte e a Loucura nem sempre se limitam ao estreito meio dos negros. As beberagens e
o pavor atuam suficientemente nas pessoas que os freqüentam. A Assiata, uma negra baixa,
fula e presunçosa, moradora à rua da Alfândega, dizem os da sua roda que pôs doida na Tijuca
uma senhora distinta, dando-lhe misturadas para certa moléstia do útero. Apotijá, o malandro da
rua do Hospício, que aproveita os momentos de ócio para descompor o Brasil, tem também uma
vastíssima coleção de casos sinistros.
A Morte e todas as vesânias não são apenas os sustentáculos dos seus ritos e das suas
transações religiosas, são também o meio de vida extra-cultual, o processo de apanhar
heranças. Alikali, lemamo atual dos alufás, e Amando Ginja, cujo nome real é Fortunato
Machado, quando morre negro rico vão logo à polícia participar que não deixou herdeiros. Alikali
é testamenteiro de quase todos e bicho capaz de fazer amuré com as negras velhas, só para
lhes ficar com as casas. A certidão de óbito é dada sem muitas observações.
- Mas, você conhece mais feiticeiros, Antônio?
- Pois não! O João Mussê, alufá feiticeiro tremendo, que mora na rua Senhor dos Passos,
222 e é respeitado por todos; Obalei-ié, Obio Jamin, Ochu-Toqui, Ochu-Bumin, Emin-Ochun,
Oumigi, Obitaiô-homem, Obitaiô-mulher, Ochu Taiodé, a Ochu-boheió, da rua do Catete, Siê,
Xangô-Logreti, Ajagum-baru, Eçu-hemin, Angelina, o ogan Conrado... Mais de cem feiticeiros,
mais cem.
- Quase todos com os nomes dos santos...
- Os negros usam sempre o nome do santo que têm no corpo...
Mas de repente Antônio parou entre as árvores.
- Temos ebó de iê-man-já. A negralhada vem ..... Se quer ver, esconda-se detrás de algum
tronco.
Com efeito, sentiam-se vozes surdas ao longe, cantando.
O despacho, ou ebó, da mãe-d'Água salgada, é um alguidar com pentes, alfinetes, agulhas,
pedaços de seda, dedais, perfumes, linhas, tudo o que é feminino.
Detrás da árvore, pouco depois eu vi aparecer no plenilúnio a teoria dos pretos. À frente
vinha uma com o alguidar na cabeça, e cantavam baixo.
Baô de ré se equi je-man-já
Pelé bé Apotá auo yo tô toro fym la cho
Ere...
Era o ofertório. Ao chegar à praia, na parte em que há uns rochedos, a negra desceu,
depositou o alguidar. Uma onda mais forte veio, bateu, virou o vaso de barro, quebrou-o, levou
as linhas e todos balbuciaram, rojando:
- Iê-man- já!
A santa aparecera na fosforescência lunar, agradecendo...
Depois os sacerdotes ergueram-se, reuniram e nós ficamos de novo sós, enquanto o
oceano rugia e, ao longe, tristemente a canzoada ladrava.
- Ainda apanhamos o candomblé, disse Antônio. É preciso que o babaloxá convide V. S.
para o egum...
Noutro dia, pouco mais ou menos à meia-noite, estávamos no ilê-saim ou casa das almas.
O egum é uma cerimônia quase pública, a que os feiticeiros convidam certos brancos para
presenciar a pantomima do seu extraordinário poder. Esses curiosos fetiches, que para fazer o
guincho de santo Ossaim amarram nas pernas bonecas de borracha, com assobio; cujos santos
são uni produto de bebedeiras e de hipnose, têm na evocação dos espíritos a máxima  encenação da sua força sobre o invisível. Quando morre alguém, quando todos estão diante do
corpo, um dos pretos esconde-se e dá um grito. No meio da confusão geral, então, mudando a
voz, esse negro grita:
- Emim, toculoni mopé, cá-um-pé, emim! Eu que morri hoje, quero que chamem por mim.
Os donos do defunto arranjam o dinheiro para a evocação, pessoas estranhas ajudam
também com a sua quota para aproveitar e saber do futuro. O babaloxá não faz o egum
enquanto não tem pelo menos trezentos mil réis. Arranjada a quantia, começa a cerimônia.
Quando entramos na sala das almas, à luz fumarenta dos candeeiros a cena era estranha.
Havia brancas, meretrizes de grandes rodelas de carmim nas faces, mulatas em camisa,
mostrando os braços com desenhos e iniciais em azul dos proprietários do seu amor, e negros,
muitos negros. Estes últimos, sentados em roda do assoalho, estavam quase nus, e algumas
negras mesmo inteiramente nuas com os seios pendentes e a carapinha cheia de banha.
- Por que estão eles assim?
- Para mais facilmente receber o espírito.
Junto à porta do fundo, três negros de vara em punho quedavam-se estáticos. Eram os
annichans, que faziam guarda ao saluin ou quarto-dos-espíritos. Ouvi dentro do saluin um
barulho de pratos, de copos tocados, de garrafas desarrolhadas; um momento pareceu-me ouvir
até o estouro forte do champanha barato.
- Há gente lá dentro?
- As almas. Está-se banqueteando. O banquete foi pago pelos presentes. Mas, psiu! Daqui
a pouco começarão as cantigas, que ninguém compreende. Os africanos inventam nomes para
a cena parecer mais fantástica.
Com efeito, minutos depois, aos primeiros sons dos atabaques, as negras bradaram:
- Aluá! o espírito! e romperam uma cantiga assustadora e trôpega.
Anu-ha, a o ry au od á
San-ná-elê-o ou baba
Locá-aló
A porta continuava fechada, mas eu vi surgir de repente um negro vestido de dominó com
os pés amarrados em panos. Os três annichans ergueram as varas, o dominó macabro
começou a bater a sua no chão, os xeguedês sacudiram-se, e outra cantiga estalou medrosa:
Lou-â gége ou-rou ó uá
Xó la-ry la-ry lary
Que què oura ô uchô
La-ry la mamau rú nam babá
Quando o santo aos pulos aproximava-se de alguma mulher, ela recuava bradando com
desespero:
- Afapão!
- Vão aparecer as almas, avisou Antônio, a cantiga diz: Procuramos a alma de Fulano e de
Sicrano e não a encontramos dormindo. Cansamos sem saber o mistério que a envolvia. A alma
está aqui e entrou pela porta do quintal.
- Mas quem é este dominó?
- É Baba-Egum. As almas têm vários cargos. O que traz uma gamela chama-se Ala-té-
orum, o 2.º Opocó-echi, o 3.º Eguninhansan, e no meio de sete espíritos aparece o invocado.
Entretanto o dominó Baba-Egum batia furiosamente no chão com a sua vara de marmelo, e
no alarido aumentado apareceu aos pulos outro dominó, o Alabá, que por sua vez também se
pôs a bater. Era o ritual da entrega das almas. Por fim apareceu Ousaim, enfiado numa fantasia
de bebê, de xadrez variado, com duas máscaras: uma nas costas, outra tapando o rosto.
- Quem é esse?
- O Bonifácio da Piedade, um malandro de cavaignac, que faz sempre de Eruosaim.
Eruosaim também dançava. Entre as cantigas, os annichans ergueram de novo as varas, a   porta abriu-se, dois negros ficaram um de cada lado, o atafim, ou confidente, e o anuxam,
secreta. De dentro saíram mais três dominós cheios de figas e espelhinhos, com os pés
embrulhados nos trapos. As negras aterrorizadas uivavam, com o amarelo dos olhos virados e
os espíritos, naquela algazarra, pareciam cambalear. Havia gente porém que os reconhecia.
- Eles fingem os gestos dos mortos, segredou-me Antônio. Palmas ressoavam estridentes
saudando a chegada do invisível, as varas de marmelo lanhavam o ar e as almas, e naquele
círculo silvante, ao som dos xeguedés e dos atabaques batiam surdamente no chão aos pulos
da dança demoníaca.
Um dos espíritos, porém, sentiu-se numa espécie de trono de mágica. Como por encanto a
dança cessou e naquela pávida atmosfera, em que o medo gemia, as mulheres de borco, os
homens contorsionados, o negro fantasiado guinchou do alto.
- Guilhermina ocê percisa gostá de Antônio... José tem que fazê ebô para espírito mau.
Chica, um home há de vi aí, ocê vai com ele...
- Veja V. S. a chantage, murmurou Antônio. Os negros recebem dinheiro antes dos homens
e obrigam as criaturas pelo terror a tudo quanto quiserem. Por isso quem descobre o egum,
morre.
A Chica, uma mulatinha, coitada! tremia convulsivamente, mas já outras, nuas, em camisa,
sacudindo os membros lassos, ganiam de longe, batendo as varas num terror exaustivo.
- E eu? e eu?
- E eu? e eu?
- Ocê tá dereita, sua vida vai pr'a frente.
- E eu? e eu? gargolejaram outras bocas em estertores.
- Ocê está pra traz, percisa ebô.
Aproximei-me de um dos espíritos; cheirava a espírito de vinho; estava literalmente bêbedo.
Quando a cerimônia atingia ao desvario e já os espíritos tinham pastosidade na voz, caiu na
sala, como um bedengó, Inhansam, um negro fingindo de santo materializado e, em meio do
pavor geral, ao som das cantigas, esticou a mão sinistra, foi pedindo a cada criatura 16 obis, 16
orobôs, 16 galos, 16 galinhas, 16 pimentas-de-costa, 16 mil réis, um cabrito, um carneiro. Ao
chegar às meretrizes brancas, Inhansam ferozmente exigia peças de chita, fazendas e objetos
caros. A turba gritava toda: Inhansam! Inhansam! gente nova entrava na sala, e de repente,
como todos se voltassem a um grito da porta, os espíritos desapareceram... Tinham fugido
tranqüilamente pelo corredor.
- Está acabado, fez Antônio. Os espíritos vão se despir, e voltam daí a pouco para ver se o
pessoal acreditou mesmo...
A cena mudara entretanto. Dissipado o sudário apavorado, todas aquelas carnes
hiperestizadas erguiam-se ainda vibrantes para a bacanal.
O álcool e a queda na realidade estabeleciam o desejo. Negros arrastavam-se para quintal,
para os cantos, longos sorrisos lúbricos abriam em bocejos as bocas espumantes, risinhos
rebentavam e negros fortes, estendidos no chão, rolavam as cabeças numa sede de gozo.
Há entre as negras uma propensão sinistra para o tribadismo. Em pouco, naquela casinhola
suja e mal-cheirosa, eu via como uma caricatura horrenda as cenas de deboche dos romances
históricos em moda. Mais dois negros entraram.
- Então egum esteve bom?
- E eu que não cheguei em tempo...
- Veja, mostrou Antônio, lá está o Bonifácio Eruosaim, vendo se causou efeito fantasiado de
bebê. Venha até o quarto do banquete.
Fomos. Antônio empurrou uma porta e logo nos achamos numa sala com garrafas pelo
chão, pratos servidos, copos entornados, rolhas, os destroços de uma fome voraz. Num canto a
Chica dizia baixinho para um lindo rapaz de calças bombachas:
- É você que o espírito disse?...
Quando reaparecemos o babaloxá murmurava:
- A festa está acabada, companheiros... É não deixar de trazer o que Inhansam pediu.
Saímos então. Vinha pelo céu raiando a manhã. Palidamente, na calote cor de pérola, as
estrelas tremiam e desmaiavam. Antônio cambaleava. Chamei um carro que passava, meti-o   dentro. Em torno tudo dizia o mistério e a incompreensão humana, o éter puro, os vagalhões do
mar, as árvores calmas. Tinha a cabeça oca, e, apesar dos assassinatos, dos roubos, da
loucura, das evocações sinistras, vinha da casa das almas julgando babalaôs, babaloxás, mãesde-santo e feiticeiros os arquitetos de uma religião completa. Que fazem esses negros mais do
que fizeram todas as religiões conhecidas?
O culto precisa de mentiras e de dinheiro. Todos os cultos mentem e absorvem dinheiro. Os
que nos desvendaram os segredos e a maquinação morreram. Os africanos também matam.
E eu, perdoando o crime desse sacerdócio mina, que se impõe e vive regaladamente, tive
vontade de ir entregar Antônio negro e a dormir à casa de Ojô, para que nunca mais
desvendasse a ninguém o sinistro segredo da casa das almas.

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